Por Najar Tubino
Da Carta Maior
O assentamento de Milagres não é um projeto de resistência armada. Muito pelo contrário, é totalmente pacífico. Na verdade, é o primeiro assentamento do país totalmente saneado, que usa a água das casas e da fossa, depois de tratada para irrigar vários tipos de plantio: mamão, milho, pimenta, forrageiras para os animais.
Talvez seja o único no mundo. Não tem muriçoca, mosquito, barata, não tem água empoçada no inverno, foi implantado totalmente pela comunidade, que construiu desde as valas para os canos até a estação de tratamento. Um projeto desenvolvido pelo professor Miguel Ferreira, da Universidade Federal Rural do Semiárido (Unifersa), antiga Escola Superior de Agronomia de Mossoró.
A Chapada do Apodi conta com 15 assentamentos do INCRA e pelo menos maisimplantados pelo governo do Estado, através do crédito fundiário.
Certamente é a região com o maior número de assentamentos do país. Ao mesmo tempo, ainda apresenta aquele quadro deprimente de barracos na beira da estrada, com centenas de famílias aguardando pela posse da terra. Possui o maior acampamento do Movimento dos Sem Terra (MST) no país, o Edivan Pinto, com mais de mil famílias. No dia 25, todas as rotas da Caravana Agroecológica lá se encontraram para um ato de solidariedade. Na ocasião também participou João Pedro Stédile, da coordenação nacional do Movimento dos Sem Terra.
Quintal verde
A solidariedade é por conta das desapropriações e despejos iniciados pelo Departamento de Obras Contra a Seca (Dnocs) no chamado Projeto da Morte: um novo perímetro irrigado na bacia do rio Apodi, tendo a Barragem Santa Cruz como fornecedora de água.
Primeiro vou seguir com o trabalho realizado no Projeto Assentamento Milagres, a 18 km de Apodi, estrada de chão batido, caatinga totalmente seca. Milagres tem fartura de água, um poço profundo com três caixas que abastece as 28 casas, de 26 famílias e seus agregados – os filhos que já casaram. Movimentam 60 mil litros por dia nas casas, esta é uma das razões para o aproveitamento e reutilização da água doméstica.
É preciso ter volume de água para conseguir fazer o tratamento, além da concentração de casas. No caso de Milagres, o modelo é de agrovila, onde os antigos posseiros moram perto, tem cerca de três hectares individualizados, uma reserva de 97 ha e uma área cultivada de 54 ha.
No total, em torno de 130 pessoas vivem na agrovila. Tem uma escola de ensino fundamental com biblioteca. Todas as casas têm cisterna. E um quintal produtivo inacreditável no cenário atual do semiárido. Tudo é verde, o caju está maduro, a carambola idem, a manguá quase no ponto, tem macaxeira, pimenta, cana para os animais, acerola e por aí vai. É outro mundo. Como diz seu Maurício de Oliveira, o seu Zito, ex-presidente da comunidade durante oito anos: “quem tem água tem fartura”.
Doutor trabalhando como extensionista Voltando ao trabalho do professor Miguel Ferreira, que se chama: “Saneamento Básico em Comunidade Rural e a reutilização de Efluentes na Agricultura”, realizado com a equipe da Unifersa e da engenharia sanitária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A verba para implantação veio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), por intermédio de um edital em nome de Miguel Ferreira.
Um detalhe: depois de acabar seu doutorado na área de irrigação na Universidade de São Paulo, ele voltou a Natal e foi trabalhar como assessor técnico na comunidade de Canto da Ilha de Cima, no município de São Miguel do Gostoso, um cargo exercido por técnicos de nível médio. Até conseguir aprovar a pesquisa e iniciar o projeto no assentamento Milagres. Recebeu várias negativas para seguir o trabalho. A verba liberada pelo CNPQ foi de R$108 mil, mas o custo da obra é de R$64 mil.
No caso, a ideia do professor era contar com o apoio da comunidade, mas também utilizar os próprios assentados como trabalhadores da construção. Uma empresa realizaria a obra em dois ou três meses. Lá levou nove meses. Todo dia visitavam o canteiro. Começaram abrindo valas para os canos na frente das casas, primeira etapa da coleta, para dirigir toda a água e o esgoto para a estação – ou tanque séptico, como definem.
Depois construíram o tanque, com duas câmaras de alvenaria e uma terceira saída com tijolos de oito furos. O processo de decantação do esgoto é natural. Na primeira etapa agem as bactérias aeróbicas. Depois, o material sobe para a última decantação, sem luz e sem oxigênio. Passa para um processo anaeróbico.
Quando a água é liberada, está 70% tratada. No caso deles fazem uma mistura em duas cisternas para manter uma proporção que será usada na fertilização e irrigação. Não é uma água comum, ela tem nutrientes. A proporção é porque não se pode utilizar água de tratamento de esgoto em cultivo de alimentos. Precisa da mistura. Imaginem que no meio do trabalho uma rádio de Apodi, cidade de quase 40 mil habitantes no coração da Chapada, anunciar que os assentados do Milagres vão vender hortaliças na feira de sábado, irrigadas com água de esgoto. Foi um desastre, tiveram que chamar o professor Miguel Ferreira para explicar que todo o processo é analisado em laboratório. Inclusive o mamão produzido tinha menos bactérias que o da Ceasa em Natal.
Violência e expurgo
A oligarquia nordestina é conhecida historicamente pelo poder absoluto que mantém sobre os estados. No caso do Rio Grande do Norte a família Alves, do presidente da Câmara dos Deputados, que indica os nomeados para dirigir o Departamento Nacional de Controle das Secas. No caso do RN, indicou o sobrinho, Eduardo Alves Wanderley, filho de sua irmã gêmea, Ana Catarina.
A obra do perímetro de irrigação da Barragem Santa Cruz está sendo tocada rapidamente, na abertura do canal principal, bem ao lado do assentamento Edivan Paiva, na BR-405. Apodi é um território da agricultura familiar e agroecológica. São projetos que envolvem no máximo 30 famílias. Por enquanto, o rumo do canal está contornando os assentamentos do INCRA, o que não acontece com os do governo estadual. A pressão para tirar as comunidades do caminho é tradicionalmente conhecida – na base da violência, do expurgo e pagando uma mixaria pelas propriedades.
O clima é de tensão. Dona Antônia Oliveira, presidenta do Assentamento
Milagres, explica.
“Antes eu tinha um sonho de ter um pedaço de terra. Agora, depois de quase 20 anos instalados aqui, e muito sofrimento, nós mesmos construímos as casas, não deixamos o INCRA contratar ninguém, vem esta notícia do perímetro de irrigação. Já temos um plantio de melão de uma empresa do agronegócio na frente das nossas casas – Angel Agrícola. Sentimos o cheiro forte do veneno e do enxofre. Agora parece que mal acordamos do sonho e enfrentamos um pesadelo. Porque, se implantarem o projeto de irrigação, outras empresas de fruticultura virão e uma hora nós seremos obrigados a ir embora”.
Perto da barragem, sem acesso a água
Primeiro o governo federal e estadual instalam as famílias, dão título, financiamento, os assentados trabalham muito, constroem sua história, produzem alimentos. Todas as agricultoras do Milagres são apicultoras – fizeram curso no SEBRAE -, ou seja, um investimento público de milhões de reais, que agora vai para a lata do lixo simplesmente.
Serão instalados 324 lotes de oito hectares para pequenos irrigantes; 48 lotes de 16 hectares para técnicos agrícolas; 25 lotes de 24 ha para agrônomo; 5 lotes de 48 ha para médios empresários. Pelo menos, é o que está previsto no projeto do DNOCS para a primeira etapa de três mil hectares que serão irrigados.
No Vale do Açu, perto da Chapada do Apodi, há outra barragem e um projeto que era para ser executado em duas etapas. Só a primeira foi implantada com três mil hectares. Uma parte – 500 hectares – está abandonada. Outra parte parou na mão dos especuladores imobiliários.
Quem produz em 48,6% da área reclama do preço da energia para irrigar bombas elétricas. E 37,85% foram invadidos. Os agricultores que venderam e foram indenizados viraram boias-frias novamente. A área está totalmente degradada do ponto de vista ambiental. Uma das rotas da Caravana visitou os locais. Pior: perto da Barragem Santa Cruz vivem 22 comunidades. Elas não têm acesso à água, embora a barragem tenha 600 milhões de metros cúbicos de água. As comunidades serão desapropriadas.
Total estupidez
Em suma, a situação é a seguinte: o eficiente e competente órgão responsável pela irrigação, também conhecido por desviar milhões de reais de outros projetos em Fortaleza e por ter milhares de lotes vazios nos perímetros irrigados, quer prejudicar 800 famílias, para “beneficiar” menos de 400 irrigantes, contando as empresas.
Como saldo, teremos a destruição dos programas agroecológicos e de produção orgânica justamente quando o governo federal lança o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, em evento ocorrido 10 dias atrás, em Brasília. Durante a cerimônia, a presidenta Dilma Rousseff fez um apaixonado discurso abordando a produção orgânica de alimentos e o Programa de Aquisição de Alimentos, abastecido com 30% da agricultura familiar.
Como diz um velho ditado, “tem boi na linha”. Na prática, a oligarquia nordestina quer manter o seu poder, quer fazer mais uma demonstração histórica de que está se lixando para a população pobre.
A governadora Rosalba Ciarlini Rosado faz parte de uma família que exerce o poder na região de Mossoró há mais de um século. Ela mesma foi prefeita três vezes. E o senador Agripino Maia, comenta o povo dos assentamentos, é sócio formal ou informal da empresa contratada para executar as obras do DNOCS. Nenhuma novidade para quem conhece as manobras espúrias da elite nordestina.
Mas, sinceramente, não existe como qualificar esta situação a não ser pela absoluta falta de bom senso, total estupidez ou apenas encobrimento de mais uma grande maracutaia.
Ao invés de divulgar e disseminar uma tecnologia nacional, produzida coletivamente no semiárido brasileiro, a região mais populosa do planeta neste ambiente, outro órgão do governo federal chega detonando tudo. Mais do que isso: existem cálculos da UFRN segundo os quais a Barragem Santa Cruz não tem como abastecer a cidade de Mossoró e as outras dezenas de cidades previstas no processo, além de distribuir água aos irrigantes.
FHC inaugurou a Barragem Santa Cruz
Para completar a história. A barragem foi inaugurada em 2002 pelo ex-presidente Fernando Henrique, em um evento fechado, controlado pelo Exército, que montou barreiras nas estradas duas semanas antes da inauguração.
Próxima comparação. No dia 8 de março de 2005, o presidente Lula comemorou o Dia Internacional da Mulher no assentamento Milagres, onde as catracas registraram a presença de 16 mil pessoas. Na região, muitos não acreditavam que o presidente da República entraria em um assentamento. E o motivo era especial: a abertura da linha de crédito PRONAF Mulher.
João Pedro Stédile deu um recado curto e direto no ato de solidariedade ao acampamento Edivan Pavan: no MST, só conseguiu terra quem resistiu, quem foi teimoso. Para isso, é preciso reunir o máximo de apoio, quanto mais gente melhor, e se possível protestar em Brasília, ocupando o Ministério da Integração Nacional ou a Secretaria Nacional de Irrigação. Em segundo lugar, é preciso parar as máquinas de alguma forma. Enfim, a estupidez está assumindo proporções maiores. Se não for negociada, vai criar outro foco de conflito, onde 800 famílias já avisaram que não entregarão a Chapada do Apodi para o agronegócio.
Na entrada da cidade há um outdoor, do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras de Apodi, que registra: “a Chapada do Apodi é território da agricultura familiar camponesa”.