Raul do Valle, ISA
Hoje, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai retomar o julgamento do caso da demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (RR). Embora o caso concreto já tenha em grande parte se resolvido – a terra foi oficialmente reconhecida em área contínua e os ocupantes foram retirados – ainda pendem de análise embargos de declaração, que versam sobre pontos da decisão que podem afetar não só esse caso concreto, mas muitos outros Brasil afora.
Quando do julgamento, os ministros do STF se depararam com um conflito muito acirrado. De um lado, as comunidades indígenas, que há mais de 30 anos lutavam para ver reconhecido o seu direito à terra há séculos tradicionalmente ocupada. De outro lado, um grupo heterogêneo de atores que defendia, por razões diversas, a demarcação da área em ilhas, com a manutenção dos fazendeiros que ali haviam se estabelecido, e que se subtraíssem as áreas em faixa de fronteira.
Diante dessa situação, e da complexidade da questão, os ministros da época resolveram adotar uma solução salomônica: reconheceram a legalidade da demarcação em área contínua, mas estipularam uma série de ressalvas, várias delas sem uma correspondência muito clara com o texto constitucional. Como nenhuma dessas ressalvas, ou “condicionantes”, estava presente no pedido feito na ação original – que se restringia ao reconhecimento ou não da área como terra indígena – e tendo elas surgido no voto do ex-ministro Meneses de Direito como uma tentativa de conciliação, os demais ministros não tiveram condições de analisá-las, e praticamente não houve debate sobre elas.
Como algumas das condições inovam na ordem jurídica, mas foram enunciadas de forma muito genérica, inclusive com posicionamento divergente de ministros que acabaram apoiando-as, uma grande confusão foi armada. A primeira: ao criar novas regras, algo que não é propriamente sua função, o STF estaria estendendo essa decisão a outros casos? Ou essas condições deveriam valer apenas àquele caso concreto, cheio de peculiaridades?
A Confederação Nacional de Agricultura (CNA) que vem realizando uma verdadeira cruzada contra as terras indígenas, rapidamente entrou com um pedido para que o STF reconhecesse a “repercussão geral” do caso, o qual foi rechaçado. O que mais lhe interessa é transformar em regra geral a teoria do “fato indígena”, apoiada por alguns poucos ministros durante a votação, segundo a qual o marco temporal para reconhecer o direito indígena à terra deveria ser a data da promulgação da Constituição Federal. Embora não tenha sido bem debatida, essa tese leva a crer que os índios só teriam direito às terras efetivamente ocupadas em outubro de 1988. Mas a própria decisão ressalvou o caso daqueles povos que tenham saído de suas terras, anteriormente a essa data, contra a sua própria vontade. Como praticamente todos os povos que reclamam por seus territórios tradicionais deles saíram por circunstâncias alheias a seu livre arbítrio, a questão não ficou esclarecida. Essa a razão dos embargos que serão julgados: explicar o que está confuso.
E há outros pontos que precisam ser esclarecidos. Um deles estipula que “a expansão estratégica da malha viária” e a “exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico”, tal como definido pelo Conselho de Defesa Nacional (CDN), serão implantados sem consulta às comunidades afetadas. Essa condição, além de transparecer autoritarismo, contrariando inclusive o próprio texto constitucional (art.231,§3o), suscita dúvidas quanto a seu alcance. Pode o CDN, que se reúne apenas excepcionalmente, definir que uma estrada que corta uma terra indígena é “estratégica” ao país, porque vai baratear o escoamento de soja, por exemplo, tolhendo assim o direito de algumas comunidades de serem consultadas? Ou isso vale apenas para as estradas de uso militar em faixa de fronteira, como as existentes na Raposa?
Por essas e outras que a decisão do STF sobre os embargos é tão importante, o que, aliás, vem se tornando comum. Delimitar o alcance da decisão e esclarecer o que cada condição quer realmente dizer será um grande serviço ao país. Os 11 ministros estarão decidindo, no fundo, qual valor deve pautar a relação entre o Estado brasileiro e os povos indígenas: o da submissão ou o do respeito. Isso dirá muito sobre a democracia que queremos ser.