Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental
No dia 7 de outubro, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) enviou ofício para o Secretário Especial de Saúde Indígena, Antônio Alves, com cópia para a Coordenadora do Distrito Sanitário Especial de Saúde Yanomami e Ye’kuana (Joana Claudete) e o Coordenador Regional da Missão Evangélica Caiuá (Ismael Cardeal), exigindo, entre outras providências urgentes, a demissão da Coordenadora. O documento com as acusações da Hutukara pode ser lido em Denúncia de supostas ligações entre políticos locais e gestores do Distrito Sanitário Yanomami para garantir contrato com empresa terceirizada responsável pela contratação dos funcionários.
Quatro dias depois, na sexta-feira última, 11, o Instituto Socioambiental postou matéria de Lidia Montanha de Castro, por nós reproduzida na mesma data, na qual consta o seguinte trecho: “O representante da Missão Evangélica Caiuá, Daniel Fogaça, relatou que a organização tem 17 convênios com o Ministério da Saúde, que atendem aproximadamente 555 mil indígenas em todo o Brasil. Para isso contam com um quadro de mais de oito mil funcionários, dos quais 53% são indígenas. Fogaça informou ainda que além da saúde, a Caiuá atua na área de educação e evangelização“.
O fato de uma mesma organização atender a cerca de 50% dos indígenas do País, através de 17 convênios, já é algo de se estranhar, seja ela ou não Evangélica. Agora, saber que ela informa que também “atua na área de educação e evangelização” me parece totalmente inadmissível, para não dizer criminoso, uma vez que constitucionalmente vivemos num estado laico. Estamos usando dinheiro público, dos nossos impostos, para financiar a ‘evangelização’ dos povos originários? É isso? Se essas questões já mereceriam um discurso inteiro, notícias enviadas do Maranhão, relativas aos povos Awá e Ka’apor, tornam a situação ainda mais complicada.
Nos documentos abaixo publicados, os Ka’apor da Terra Indígena Alto Turiaçu fazem denúncias ainda mais graves com relação aos desmandos de técnicos da Missão Evangélica Caiuá na Casai de Zé Doca, que envolveriam não só maus tratos aos doentes como corrupção e roubo. Entre outros exemplos, a alimentação para os indígenas internados seria limitada ao almoço, como refeição única; pacientes eram deixados na área externa do Posto, expostos ao sol e à chuva, assim como a mosquitos e outros animais; o uso do banheiro e do chuveiro era restrito aos funcionários, tendo os indígenas que utilizar o mato como sanitário e a caixa d’água como chuveiro; as instalações são infectas; e, como se não bastasse, o tratamento recebido dos funcionários é desrespeitoso.
Mas as denúncias tornam-se ainda mais complicadas: os dois motoristas contratados para o Posto trabalhariam na verdade dirigindo veículos para madeireiros. E, como se não bastasse, os cartões para recebimento das aposentadorias de diversos indígenas haviam sido ‘confiscados’ por uma enfermeira do posto, que recebia os pagamentos e dividia o dinheiro com outros funcionários, eventualmente entregando aos indígenas cestas básicas. Um dos casos citados envolve uma conta não movimentada, na qual havia um valor acumulado de R$ 18 mil reais. E os Ka’apor anexaram os recibos bancários.
O total descalabro e desrespeito ao Direito à Saúde dos indígenas, que vem sendo denunciado pelos Ka’apor desde 2009/2010, está sendo combatido pelo Ministério Público Federal. Em 5 de setembro de 2012, o Procurador Alexandre Silva Soares deu entrada numa Ação Civil Pública contra a União: Inquérito Civil Público PR/MA n° 1.19.000.000672/2011-59 – Pedido de Antecipação de Tutela – Deficiente prestação de serviços de saúde à população indígena das etnias Awá e Ka’apor. A Ação é um documento extremamente respeitoso em relação aos indígenas, e não só comprova todas as queixas por eles feitas como levanta diversas outras questões, incluindo a ação de madeireiros e outros invasores nos seus e em outros territórios.
A constatação de “prédios sem estrutura física, equipamentos básicos e higienização necessárias, quantidade de medicamentos e insumos insuficientes, fornecimento insuficiente de refeições ofertadas aos indígenas em atendimento médico, tudo resultando em atenção básica deficitária”, numa situação que se repete “nos Postos de Saúde localizados nas diversas aldeias”, levou o MPF a determinar a interdição das unidades, até que os problemas fossem sanados, estabelecendo prazos para cada um dos itens, desde obras diversas até o fornecimento de três refeições diárias e, evidentemente, de remédios aos pacientes.
Um ano mais tarde, o Procurador Alexandre Silva Soares iria verificar que a União se mostrara surda, cega e muda em relação às exigências. Embora uma firma tenha sido contratada (e paga) para realizar as obras, o que Ministério Público Federal concluiu, após receber um Relatório Técnico de Inspeção e uma Representação dos Ka’apor, datada de 14 de setembro de 2013 e reproduzida abaixo, foi que o acordo não havia sido absolutamente cumprido pelo Departamento Especial de Saúde Indígena (DSEI) e pelas firmas terceirizadas por ele contratadas. O que levou o MPF a oficiar ao Juiz da 5ª Vara Civil do Estado do Maranhão, em 26 de setembro de 2013, solicitando “a intimação da União para dar cumprimento integral às medidas que foram acordadas” (documento também reproduzido ao final).
O Procurador solicita ainda “a expedição de comunicação direta ao Secretário Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Dr. Antônio Alves – Secretaria Especial de Saúde Indígena no Ministério da Saúde – Esplanada dos Ministérios, Bloco G, Brasília/DF), dando-lhe ciência da não implementação das medidas acordadas e concitando-o a efetivar as providências necessárias à satisfação das medidas assumidas em audiência”.
Na mensagem através da qual nos encaminhou esses três documentos, um antropólogo que há nove anos realiza trabalhos de campo na região, cujo nome prefiro omitir, afirma:
“Felizmente os Ka’apor cansaram de ser humilhados, maltratados, enganados, roubados, aliciados moralmente por servidores e gestores dessa missão. Fizeram uma representação no MPF São Luis contra a empresa. O Processo está sendo monitorado pelo Procurador Alexandre Soares. Os Ka’apor pediram a demissão, a saída da empresa da Gestão do Polo Base de Saúde Indígena de Zé Doca e destituição de toda equipe multidisciplinar; os técnicos de enfermagem estão entrando com uma representação no Ministério Público do Trabalho por viverem situações análogas a escravidão. Enfim, os Ka’apor, mesmo tomando essa decisão que não vem sendo respeitada, continuam recebendo assédio moral por parte de gestores de São Luis. As enfermeiras que cometeram uma série de crimes contra indígenas foram simplesmente transferidas do Polo Base de Zé Doca para a CASAI em São Luis, sem responderem pelos crimes. Continuam impunes, com a conivência da Empresa Caiowá”.
Considerando a situação dos Yanomami, denunciada no início deste texto, a dos Ka’apor e outras que bem sabemos se repetem Brasil afora, parece-nos mais que urgente o estabelecimento de uma ampla investigação, que não só incorpore todas as denúncias feitas pelos indígenas, como verifique de que forma são feitas licitações que permitem que 555 mil dos 900 mil indígenas existentes no País, segundo os últimos dados do IBGE tenham sua saúde (?) entregue a uma mesma instituição, que aparentemente está mais preocupada em ‘catequizá-los’, se é que assim devemos chamar tudo isso.
Abaixo, a Representação dos Ka’apor, seguida do ofício do Procurador Alexandre Silva Soares ao Juiz da 5ª Vara Civil do Estado do Maranhão. A ACP por ele encaminhada em 5 de setembro de 2012 (documento que vale ser lido inclusive pelas importantes denúncias que faz) pode ser acessada clicando na referência feita a ela, acima.
Seguem duas outras páginas, com mais 66 assinaturas de lideranças Ka’apor.
Abaixo, o ofício do Procurador Alexandre Silva Soares, 26 de setembro de 2013:
Uma observação final: Foi exatamente para o Posto de Zé Doca que o Ministério da Saúde encaminhou o médico cubano Juan Melquiades Delgado, que se tornou lamentavelmente famoso pela forma particularmente hostil com que foi recebido no aeroporto de Fortaleza por alguns ‘colegas de profissão’. Veja mais em A triste sina de um médico cubano no Brasil.