Em nova crônica, Claret Fernandes tenta decifrar o caderno de preços divulgado pela Norte Energia para fins de indenização dos atingidos por Belo Monte. E conclui: “Por essa fórmula, não seria absurdo do ponto de vista ‘técnico’ que o atingido, expulso sumariamente de sua casa, ainda ficasse devendo para a empresa.”
Por Antônio Claret Fernandes*
Conta-se que um fazendeiro em MG, com quase uma centena de agregados e grande criação de porcos, fazia o acerto com o camponês a cada ano. Durante doze meses, o trabalhador e sua família estavam à disposição da fazenda e, no seu armazém, buscavam o seu alimento. Na época do cultivo, o trabalhador dispunha de um tempo, alguns dias por semana, para tocar a roça plantada à meia: milho, feijão e arroz! Após a colheita, toda a produção ia para o terreiro da fazenda. Depois de dividida, o fazendeiro chamava o coitado do agregado ao escritório, pegava uma caderneta e começava a fazer as contas.
O fazendeiro, sentado na cadeira, olhava o trabalhador aflito, de pé, e lhe perguntava: ‘ainda tem milho no terreiro’? ‘Tem’, respondia. O fazendeiro continuava suas contas num resmungo, e esse ritual continuava até que não restasse um grão sequer de milho, feijão ou arroz para o trabalhador. Nunca ninguém levava nada para casa, e a maioria ainda ficava devendo. Era um ritual de exploração! Assim, o fazendeiro garantia energia para sua força de trabalho, fornecendo ao trabalhador o alimento que ele mesmo plantara, criava seus capados, e perpetuava, desse modo, aquela estrutura feudal.
A Norte Energia está fazendo algo semelhante com as famílias atingidas por Belo Monte nas áreas urbanas de Altamira. Ao invés de caderneta, agora é o Caderno de Preços, uma obra mal feita, de ficção, através do qual a empresa busca transformar uma questão financista e política em questão técnica, tornando o direito ao reassentamento um bom negócio. Ao invés da estrutura feudal, agora é a fina flor do capitalismo. A sua obrigação de garantia do direito vira uma oportunidade a mais de lucro. Incrivelmente, o Caderno de Preços, aguardado há tanto tempo, não tem o preço da casa, do terreno; o que ele tem é uma fórmula de ilusão e engano. E só foi liberado porque uma mulher atingida ameaçou entrar na Justiça.
A Norte Energia faz um levantamento a partir do mercado e chega a padrões de casas, de “A” a “F”, 6 de alvenaria e 6 de madeira. Em cada um dos 12 padrões, existe o que ela chama de ‘composição unitária’: uma lista de mais de 50 itens, cada um com seu preço. Curiosamente, os preços são salgados! Por quê? Eles funcionam como ‘fator regressão’.
Vamos a um caso concreto! Dona Joana, uma atingida, vai ao escritório da empresa, e vê em qual dos padrões sua casa se encaixa. Em seguida, a empresa aplica o fator de regressão: todo item que o padrão ideal tem e a casa de dona Joana não tem, a empresa desconta. Um Box acrílico presente no padrão ‘a’ e ausente na casa de verdade significa uma pancada de R$ 440,20 para baixo. Ao final da ‘negociação’, uma casa de madeira que no padrão ‘f’ em R$ 25.214,34 pode sair por menos de 8 mil reais. Por essa fórmula, não seria absurdo do ponto de vista ‘técnico’ que o atingido, expulso sumariamente de sua casa, ainda ficasse devendo para a empresa. Tudo depende do tamanho do fator de regressão.
Em relação aos terrenos, os elementos usados para a definição da fórmula mágica é periferia/centro, risco, padrão alto/baixo, presença de infraestrutura pública e outros. Quando mais abandonado o terreno, menos valor! A lógica da empresa é a construção de uma fórmula a partir da negação histórica do direito para negar o direito. Com um agravante para os terrenos em áreas inundáveis, divididos em três categorias, com os devidos descontos: 10% a menos para os terrenos em áreas inundáveis, 30% para os terrenos em áreas periodicamente inundáveis e 40% para áreas permanentemente inundadas.
Também as plantas têm seus preços a partir de arrazoados aparentemente técnicos. A empresa até faz um minucioso estudo do Cacau, e de suas doenças, para chegar, ao fim, a preços irrisórios: um pé de abacateiro nativo são R$ 16,49; um pé de açaizeiro tradicional são R$ 24,99; um pé de cacaueiro nativo são R$ 6,33; um pé de Cupuaçu nativo são R$ 13,10. Quantos picolés, por exemplo, daria apenas um Cupuaçu? E ontem, enquanto aguardava ônibus em Altamira para Brasil Novo, comprei o bendito picolé por um real!
A exploração presente na caderneta do fazendeiro em MG e no Caderno de Preços da Norte Energia é o alimento dos capitalistas, apelidados de diferentes nomes, com diferentes mercadorias. Em MG se tratava de milho e capado, e, aqui, se trata de água e energia elétrica. Lá era quase uma centena de famílias, aqui são milhares. Apenas nas áreas urbanas de Altamira o número passa de 30 mil pessoas na iminência de serem expulsas de suas moradias, sem garantia de direitos, por causa do lago da barragem de Belo Monte, que poderá ser fechado em janeiro de 2015. Os estragos são grandes, as vítimas são muitas e, mais uma vez, o peso maior recai sobre os empobrecidos.
O Caderno de Preços tem cheiro de chibata. Aquele mesmo instrumento de tortura que acerta o dorso, o estômago ou a cabeça do escravo, deixando-lhe vergões e cicatrizes. Antes feito de couro de boi ou arame, hoje sua matéria prima são as letras, as palavras. Antes os capatazes é que davam as chibatadas, hoje são doutores, que escolhem o local e a intensidade do golpe.
A troca (injusta) de Belo Monte por política pública é balela do governo federal e da Norte Energia. A lógica capitalista embutida no Caderno de Preços demonstra apenas, mais uma vez, esse fato inarredável. Nesse contexto, a luta pelo direito é uma luta nobre, e somente vai avançar com trabalho de base, com a organização das famílias, com força popular. Fotos bonitas e falas nervosas têm a sua importância, mas não são suficientes.
*Antônio Claret Fernandes, militante do MAB e missionário na Prelazia do Xingu.