Por Guilherme Balza, do UOL, em São Paulo
A Força Nacional de Segurança montou nesta terça-feira (20) uma base em Buerarema (450 km de Salvador) para evitar novos atos de violência em protestos organizados por produtores rurais contra a demarcação da terra indígena Tupinambá de Olivença, área de 47,4 mil hectares (474 km²) que se estende por partes dos municípios de Una, Ilhéus e Buerarema.
A tropa desembarcou em Ilhéus e se reuniu com representantes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Militar para definir as estratégias de atuação na região. A previsão de permanência é de 90 dias, prorrogáveis se necessário. A Força Nacional fará patrulhamento ostensivo em vias não pavimentadas e pontos de bloqueios nos principais acessos de Buerarema.
Os atos de violência começaram na quarta-feira passada (14), quando um caminhão que transportava estudantes da Escola Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro foi alvejado por tiros. Ninguém foi baleado, mas os estudantes não indígenas Lucas Araújo dos Santos, 18, e Rangel Silva Calazans, 25, foram atingidos por estilhaços de vidro.
Segundo a Tupinambá Magnólia Jesus da Silva, professora e diretora da escola estadual indígena, ambos passam bem, mas Lucas permanece com um estilhaço de vidro próximo ao olho direito. “Não podemos levar o garoto ao hospital porque corremos risco.”
Na sexta-feira (16), produtores rurais e moradores de Buerarema bloquearam a BR-101 por várias horas. Pelo menos três carros de órgãos governamentais foram incendiados pelos manifestantes. Uma agência do Banco do Brasil foi depredada e uma unidade da Ebal (Empresa Baiana de Alimentos), estatal que comercializa alimentos a famílias de baixa renda, foi saqueada.
Na madrugada de sábado (17), um ônibus utilizado para levar crianças até a escola indígena também foi incendiado em Una, quando estava estacionado. Na manhã desta terça-feira (20), mais três carros de órgãos governamentais, entre eles um da Funasa (Fundação Nacional de Saúde), foram incendiados em Buerarema.
De acordo com Magnólia, fazendeiros da região estão ameaçando os tupinambás que moram na área urbana de Buerarema e obrigando comerciantes a fechar as portas. “Se não fechar, eles mandam saquear. Eles dizem que, se os índios forem para cidade, vão morrer. Quem tem casa em Buerarema, eles estão invadindo. A gente está na aldeia, não está saindo.”
Os produtores rurais da região responsabilizam os tupinambás pelos atos de violência, embora imagens divulgadas pela imprensa local mostrem que as ações não foram praticadas pelos indígenas. “O conflito está sendo causado pelos índios, que estão expulsando os agricultores familiares das áreas. Estamos aguardando uma posição do governo com relação a essas ações desordenadas”, afirmou o produtor Zenilton Rosa, diretor do Sindicato dos Produtores Rurais de Una.
A reportagem entrou em contato com a Polícia Federal em Ilhéus, mas não conseguiu localizar o delegado Mário Lima, o único autorizado a falar sobre o assunto, segundo informou outro policial federal.
Demarcação da terra indígena
Segundo dados da Funasa de 2009, cerca de 4.700 tupinambás vivem na região em processo de demarcação, agrupados em mais de 20 comunidades dispersas. O processo de identificação da terra indígena começou em 2004. Cinco anos depois, a Funai (Fundação Nacional do Índio) aprovou o relatório que delimitou a área da terra dos tupinambás.
Donos de fazenda, hotéis e prefeituras da região apresentaram quase 6.000 páginas de contestações à área delimitada pela Funai, mas o órgão julgou improcedente todos os apelos. Atualmente, os indígenas aguardam que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assine a portaria de declaração da terra indígena. Após esta etapa, faltará a homologação da área pela Presidência da República e o registro nos cartórios da região.
“A gente está aguardando eles assinarem a portaria declaratória. Os produtores, em vez de protestar contra nós, deveriam exigir que o governo indenize as terras”, afirmou Magnólia.
Os produtores, entretanto, não reconhecem a terra indígena. “Não há demarcação, há um estudo. A Funai acha que ali pode ser uma área indígena, mas não tem definição, não tem coisa concreta. Até o momento não tem nada juridicamente legal”, disse Rosa.
Retomada do território
Os tupinambás reclamam da lentidão no processo de demarcação de terras, o que motivou várias ações do MPF (Ministério Público Federal) nos últimos anos, incluindo pedido de indenização aos indígenas.
Para a cientista social Daniela Alarcon, que neste ano concluiu pesquisa de mestrado pela UnB (Universidade de Brasília) sobre a retomada do território pelos tupinambás, a lentidão na demarcação da terra é responsável pelo conflito no sul baiano.
“A nossa Constituição garante os direitos territoriais indígenas e o Brasil é signatário de tratados internacionais que vão na mesma direção. Ao violar sistematicamente os prazos legais para a conclusão da demarcação, deixando índios e não índios desassistidos, o Estado brasileiro contribui para o agravamento das tensões na região”, disse.
Os indígenas começaram a perder suas terras no final do século 19, com a expansão agrícola na região. No auge do ciclo do cacau, entre os anos 1920 e 40, a expropriação dos índios se intensificou. Os tupinambás que não migraram para cidades se mantiveram em territórios diminutos ou então se tornaram funcionários dos fazendeiros. Em muitos casos, passaram a trabalhar como meeiros, doando metade da produção aos proprietários, ou em condições análogas à escravidão.
Cansados da demora no processo de demarcação da terra indígena, eles decidiram se organizar e ocupar, a partir de 2004, as áreas reivindicadas, acirrando o conflito com os fazendeiros.
“As retomadas de terras têm o intuito de pressionar o Estado para fazer o processo de demarcação avançar, mas também foram realizadas para resolver problemas concretos das famílias, que em alguns casos viviam em situação de pobreza extrema, passando fome. Além disso, elas atendem a princípios da cosmologia dos tupinambás, que entendem que naquelas áreas moram entidades conhecidas como ‘encantados’ e que os indígenas têm o dever de proteger o território”, afirmou a cientista social.
A assessoria de imprensa do Ministério da Justiça, órgão ao qual a Funai é subordinada, afirmou que a pasta não irá se posicionar, neste momento, a respeito do processo de demarcação.