A história de resistência de quem mora no assentamento Terra Prometida, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais
Verônica Pragana, Asacom, Felisburgo
Durante um breve período dos seus 20 anos, Maíra morou em Belo Horizonte, capital mineira, para estudar. Hoje, reside com os pais agricultores na zona rural de um pequeno município de Minas Gerais. D. Modesta, 80, vive sem os filhos que migraram para os centros urbanos. Hélio, mais conhecido como Toquinho, 24, luta para ter condições dignas de criar seus filhos – André de quatro anos e Emanuel de quase dois – no campo.
Maíra, D. Modesta e Toquinho escolheram viver na zona rural. Eles remam contra a maré num país de histórica concentração de terras e prevalência do poder nas mãos de quem tem dinheiro. O Estado que devia servir ao cidadão brasileiro, muitas vezes lhe dá as costas. Essa omissão, bem conhecida deles, tem servido de estímulo para assumirem sua identidade de ‘sem terra’.
Juntos, os três fazem parte do assentamento Terra Prometida, no município de Felisburgo, na região do Vale de Jequitinhonha. Outras 147 pessoas estão assentadas na antiga fazenda Nova Alegria, alojadas com seus pertences em pequenas casas de taipa, um tipo de moradia que reflete a evolução da confiança na posse definitiva da terra. Antes, as casas já foram barracos de lona preta. E um dia se transformarão em casas de tijolo e cimento.
“Estou enfrentando minha sina”, assegura com naturalidade D. Modesta e completa: “Minha família fugiu da seca e veio abrir a mata. Meus tios já falavam da terra como uma herança perdida do nosso povo e sempre diziam que, quem for vivo e tiver coragem, vai receber esta terra de volta”.
O assentamento Terra Prometida já podia ter se tornado Terra Conquistada há muito tempo. Se não fosse a demora no trâmite dos processos judiciais que afetam os interesses dos, desde sempre, donos de terras no Brasil. No dia 20 de agosto de 2009, foi publicado no Diário Oficial da União o decreto de desapropriação da antiga Fazenda Nova Alegria, sob justificativa de crime ambiental. Mas a posse da terra pelas famílias ainda não saiu.
A desapropriação aconteceu quase cinco anos após o Massacre de Felisburgo, que tirou a vida de cinco pais de família, feriu fisicamente outras 12 pessoas e causou traumas psicológicos em crianças, adultos e idosos que ocupavam a fazenda improdutiva.
O mandante confesso do massacre é o antigo proprietário da fazenda, Adriano Chafik, que mesmo respondendo a processo criminal conjuntamente com os pistoleiros, ainda consegue impedir a realização do sonho das famílias da Terra Prometida, porque entrou com um recurso na Justiça Federal contestando a desapropriação da fazenda.
A data do massacre é emblemática: 20 de novembro. Nesse mesmo dia, no ano de 1965, morreu em defesa do quilombo dos Palmares, o seu líder Zumbi, que dedicou sua vida contra a opressão. A data da morte de Zumbi virou dia de celebração da Consciência Negra. Assim como o dia 20 de novembro se tornou para as famílias do assentamento no Vale do Jequitinhonha uma data para celebrar a luta pela Terra Prometida.
Recomeço – Após a tragédia, dezenas de famílias sentiram-se ameaçadas e sem estrutura emocional de continuar no local. Mas o assentamento não se desfez. Pelo contrário. Com a solidariedade e ajuda das famílias acampadas em outras áreas do Estado, a bandeira de luta do Movimento Sem Terra continuou hasteada em outra área da fazenda para ajudar a superar o trauma.
“Quando cheguei ao acampamento e vi a destruição, pensei que tinha acabado [o projeto]. Foi quando uma mulher acompanhada de crianças molhadas da chuva pediram para hastear a bandeira do MST”, relembra Maria Eni, uma liderança no Terra Prometida.
Com o passar do tempo, o Terra Prometida virou símbolo de resistência e referência de acolhimento para as famílias despejadas de acampamentos em municípios vizinhos. “Tal como na Bíblia, o assentamento tem um simbolismo muito forte como um lugar onde se acolhe”, ressalta a religiosa Reginalda Barbosa que acompanha o assentamento há dois anos.
D. Modesta e a família de Toquinho fazem parte da formação do assentamento pós-massacre. Eles vieram do acampamento de Palmópolis, município a 50 km de Felisburgo, despejado três vezes por ordem da justiça.
Já Maíra, que faz parte de uma família que está no acampamento desde o início da ocupação, presenciou as cenas da destruição que não conseguiram apagar o brilho de seu olhar quando fala da sua opção em morar no assentamento. Integrante do MST desde os 10 anos, Maíra conta que desacostumou a viver só e se identifica com a vida em comunidade: “O problema de um é também seu. Isto torna [o problema] mais fácil de resolver e, ao mesmo tempo, mais difícil”. Ela é professora de adultos na escola improvisada no acampamento.
Assim como Maíra, Toquinho passou quase metade da sua vida na luta pela conquista de terra. Desde os 14 anos em acampamentos do MST, essa vivência o fez desenvolver disciplina e respeito pelo outro. “Ali me senti gente”, traduz em palavras o sentimento de pertencimento ao movimento que mobiliza pessoas para conquistar condições de vida digna na área rural.
Mulher feita de coragem
Ao chegarmos em Terra Prometida, o primeiro pouso foi a casa de Maíra. Quem nos recebeu foi sua mãe Maria Gomes, a conhecida Eni, mulher de fala segura e tranquila que não esconde que aprendeu a ser forte por necessidade e ideal. Desde o assentamento provisório em 2002, Eni divide com Jorge a liderança do grupo de famílias.
Depois de trocar algumas palavras com os visitantes, Eni aproveitou a participação da filha Maíra na conversa pra passar o café. Tentou fazer mais fraco que de costume, mas apesar do ensejo, o café saiu – nas suas palavras – “corajoso”.
Coragem é um nome frequente no coração e mente de Eni, tanto que repetiu várias vezes durante a entrevista. Também, pudera. Já enfrentou muitas situações em que pessoas de coragem fraca não aguentariam. Ameaças de pistoleiros, perdeu até as contas de quantas recebeu. Apesar do medo, a “sede de ver acontecer a justiça”, segundo suas próprias palavras, a faz seguir firme em seu propósito. “Se parar, é discriminado. Se lutar, também. A gente morrer na luta é melhor do que morrer de fome.”
Começou a desenvolver seu forte senso de justiça desde pequena quando perdeu o pai aos 11 anos. Como filha mais velha, teve que assumir a criação dos quatro irmãos mais novos e precisou trabalhar em casa de família, sem direito a estudar e com salário pouco. Iniciou sua jornada de militante na igreja, depois no sindicato até chegar ao Movimento dos Sem Terra (MST), em 2000.