Racismo ambiental – a difícil vida de quilombolas, indígenas e comunidades tradicionais no ES

Por Henrique Alves, no Século Diário (Fotos: Rogério Medeiros)

Estudiosa de comunidades tradicionais há duas décadas, especialmente quilombolas, a professora titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Simone Batista, considera delicada a atual situação dessas comunidades no Espírito Santo. No norte capixaba, o quadro é de desencanto. A expansão por diversos municípios da celulose, pela Aracruz Celulose (Fibria), do petróleo e gás, pela Petrobras, a insistência do projeto de mineração do porto da Manabi, em Linhares, o advento de terminais portuários e a consumação do Estaleiro Jurong, em Aracruz, amedrontam quilombolas, índios e pescadores artesanais.

A boa notícia é que a resistência não se restringe às comunidades já politicamente estabelecidas de quilombolas e índios Tupinikim e Guarani. Novos focos estão aflorando. A professora identifica um processo de etnogênese, fenômeno em que novos grupos étnicos nascem ou etnias já conhecidas renascem. De outro modo, ela aponta a emergência de outras categorias de “sujeitos de direito”.

“Isso é muito interessante, comunidades que há até bem pouco tempo estavam escondidas, ninguém sabia que eram comunidades tradicionais. Elas existiam, mas não em categorias de comunidades tradicionais, de sujeito de direitos”, explica. Mas, conhecidasou não, com direitos ou não, o progresso devastador do desenvolvimentismo à capixaba não quer saber. Petrobras, Aracruz Celulose (Fibria), Jurong e a Manabi avançam inapelavelmente.

Neste contexto de expansão desenvolvimentista, a discussão vai além de quilombolas e índios Tupinikim e Guarani. “A gente vê surgir um monte de comunidade tradicional que está mostrando a cara”, diz Simone, graduada em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) em 1995, com uma monografia sobre o Quilombo do Jabaquara, em Santos (SP).

O município de Linhares dá alguns exemplos. Coordenadora do Observatório de Conflitos no Campo (Occa), projeto de pesquisa e extensão que reúne professores e estudantes de diversos cursos da universidade, Simone conta que em 2013 chegou-lhe a notícia de que as cerca de 20 famílias de uma comunidade ribeirinha instalada próximo à foz do Rio Doce, em Regência, estavam sob a ameaça de perder o pequeno pedaço de terra em que viviam.

Empresa sediada na Barra do Jucu, em Vila Velha, já estava cercando o local, despejando entulhos, espalhando gado para destruir o plantio da comunidade, derrubando casas, expulsando moradores. Pediram ajuda pelo endereço eletrônico da Rede Alerta Contra o Deserto Verde. Simone ofereceu a elaboração de um estudo sobre a ocupação tradicional da comunidade e a conseguinte criação de um documento. Os ribeirinhos aceitaram na hora: não dispunham de nada que atestasse suas tradições.

É um grupo que reúne pescadores e agricultores que não estabelecem uso constante das terras, mas já usam o local para pesca e agricultura – plantio de cacau, por exemplo. Batizaram a comunidade de Caboclo Bernardo, em referência ao herói botocudo de Regência. A União Engenharia, por sua vez, forçava a porta na região por estratégia: produtora de tubos metálicos, buscava comodidade para oferecer seus préstimos tanto ao Estaleiro Jurong, em Aracruz, quanto ao Porto da Manabi, em Linhares.

Descobriu-se um sem-número de travessuras. A principal: a aquisição das terras fizera-se por funcionários de outra empresa da região em um leilão na Justiça do Trabalho. Mas escritura que é bom, não havia. O estudo de Simone e equipe foi entregue ao Ministério Público Federal (MPF). A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) também entrou na história e decidiu: a terra é da União e, tendo comunidade tradicional em terras da União, a prioridade de uso é das comunidades e não de empresas.

Mas como na região o abuso e a afronta brotam como eucaliptos e dutos da Petrobras, outra demanda surgiu enquanto o grupo cuidava dos ribeirinhos de Regência.

Próximo a Regência, a comunidade de Areal está no caminho dos dutos da Petrobras. É uma nesga de terra requerido ainda nos anos 70 por um ancestral das 60 famílias que vivem na localidade. É um território já violentado pela agropecuária e agora repartido por um gasoduto da petrolífera. Membros de Areal souberam do trabalho científico desenvolvido com os ribeirinhos e requereram o mesmo estudo. “A gente quer um estudo desses também, temos origem botocuda, entramos em contato com a Funai, que não apareceu”, disseram a Simone. Ou seja, pediram revisão de identidade à Fundação Nacional do Índio.

“Eles têm parentesco com Comboios e Caieiras Velhas [ambas em Aracruz]. Era um grande território indígena que foi sendo expropriado na ditadura militar. Essas comunidades não tinham título da terra, nenhum documento que atestasse posse”, explica. Os estudos em Areal foram iniciados efetivamente em maio deste ano, com entrevistas e elaboração de genealogias.

Em 31 de janeiro, Simone esteve em Degredo, distrito em que a Manabi vislumbra um porto, para debater o processo de reconhecimento quilombola da comunidade. Moradores trouxeram parentes do Rio de Janeiro e Minas Gerais para participar. Simone até pensou em explicar conceitos, estudos, trâmites, entraves. Não foi preciso. Queriam reconhecimento de quilombola. “Já tinham conversado entre si, perceberam toda a questão. Eles já são organizados como pescadores. Foi surpreendente”, diz, as sobrancelhas arqueadas.

Técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) já rejeitaram a construção do porto da Manabi. Os pareceres apontam ameaça a várias espécies, entre elas, as tartarugas-marinhas, e às unidades de conservação, tanto no Espírito Santo quanto em Minas Gerais.

Mas além da questão ambiental, Simone considera que a resistência à Manabi deve levantar também a questão cultural. O licenciamento do porto não cita comunidades tradicionais, pesqueiras ou quilombolas. “Você produz uma invisibilidade nos EIA-Rimas [estudo e relatório de impactos ambientais], que são receitas de bolo para licenciar um empreendimento. O processo de licenciamento ambiental virou uma mesa de negociação de impactos”, analisa.

“Além de tartaruga-marinha, que será muito impactada, tem comunidade tradicional nesse território. E o estado brasileiro criou leis para garantir esses territórios. Não dá para licenciar empreendimento sem considerar isso”, completa.

Foto: Rogério Medeiros
Foto: Rogério Medeiros

A questão do reconhecimento quilombola em Degredo foi encaminhada à Fundação Cultural Palmares (FCB), entidade vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), emissora das certificações que reconhecem os direitos das comunidades quilombolas.

Desta vez não houve condições materiais para o grupo de pesquisa elaborar um estudo sobre Degredo.  Foi acionada a Sexta Câmara de Coordenação e Revisão do MPF para a confecção de laudo emergencial sobre a comunidade. Via assessoria de imprensa, o órgão informou que o laudo ainda não foi iniciado. O MPF aguarda a ratificação do parecer técnico do Ibama de rejeição ao porto pela presidência do instituto para ir até o local e realizar a perícia antropológica.

O Occa também projeta um trabalho de cartografia de territórios pesqueiros com os pescadores de Barra do Riacho, em Aracruz, para conferir visibilidade às perdas provocadas pelos grandes empreendimentos. Os pescadores, já atingidos pela Aracruz Celulose e pelo Estaleiro Jurong, serão ainda mais constrangidos pela instalação, na margem direita do Rio Riacho, do porto da Imetame, para atender a Petrobras, e da expansão de Portocel, porto da Aracruz Celulose; e, à margem esquerda, do porto daNutripetro, para atender plataformas de petróleo.

A bandeira desse conjunto de atrocidades culturais é erguida pelo Plano ES 2030, formulado pela ONG empresarial Espírito Santo em Ação, que reúne a elite econômica local, e legitimado pelos sucessivos governos capixabas, desde o primeiro ciclo PauloHartung, em 2003. Trata-se de um projeto de desenvolvimento econômicO de corpo progressista, mas de alma colonialista, além de maquiado e perfumado de construção coletiva.

O ES 2030 celebra a participação do setor industrial no Produto Interno Bruto (PIB) capixaba: as grandes plantas exportadoras nos setores de mineração, siderurgia, celulose e petróleo representaram 36% do PIB estadual em 2010. Celebra também o Espírito Santo como o segundo maior produtor de petróleo e gás natural do país, representando cerca de 15% da produção nacional.

Mas, ainda por trás do ES 2030, vislumbra-se a Iirsa (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana), projeto de integração da América do Sul à dinâmica do capitalismo financeiro mundial. O continente está retalhado em eixos segundo as potencialidades regionais para receber portos, rodovias, ferrovias, e hidrelétricas projetadas no continente inteiro para facilitar a circulação de capital.

As comunidades tradicionais capixabas têm uma luta hercúlea pela frente, sobretudo os quilombolas. Em que pese o Decreto 4.887/03, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas quilombolas, uma década depois nenhum território foi titulada no Espírito Santo. Nem os oriundos de herança, comprovada em documentos, como o de Retiro de Mangaraí, em Santa Leopoldina. Corre aí o claro temor de abrir precedentes em vista das muitas comunidades quilombolas do Espírito Santo.

Se o problema fosse a morosidade ou mesmo a inação, ok. Mas há um grave indício de que o processo de reconhecimento quilombola no Espírito Santo experimenta uma fase de franco retrocesso, como mostram certos êxitos judiciais da Aracruz Celulose. Em franca expansão de seus eucaliptais, a empresa vem derrubando um a um cada relatório de reconhecimento quilombola produzido por um projeto de extensão da Ufes, fruto de convênio entre a instituição e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

São estudos realizados com rigor técnico, precisão científica, quadro qualificado e dinheiro público, envolvendo uma equipe multidiscplinar da universidade e do órgão federal entre professores, técnicos, pesquisadores e estudantes.

Foto: Rogério Medeiros
Foto: Rogério Medeiros

O relatório sobre a Comunidade Quilombola de Linharinho foi o primeiro judicialmente abatido. Um trabalho de fôlego que consumiu um ano de estudos e pesquisas. O mesmo trabalho foi feito na comunidade de São Jorge. De novo a Justiça celebrou o eucalipto. Por fim, o grupo se debruçou sobre a comunidade de São Domingos, localizado entre São Mateus e Conceição da Barra. Aqui a equipe aumentou, a estrutura técnica cresceu, a condição de trabalho melhorou. Nasceu um relatório ainda mais elaborado e consistente. Em vão. A Aracruz Celulose suplantou mais este.

Esta é apenas uma das estratégias da Aracruz Celulose. A professora da Ufes detecta outra, mais sutil, suave e sofisticada, mas não menos nociva e cancerosa. Saíram os tratores de esteiras que arrasaram casas e terras de índio e quilombolas quando a empresa chegou décadas atrás. Saiu a violência policial de 2009, que reuniu a Polícia Militar do Espírito Santo e milicianos da Garra, segurança armada da empresa, em operação contra um suposto roubo de eucalipto em São Domingos, que culminou na prisão arbitrária de 32 quilombolas.

A injustiça enverga agora as vestes da diplomacia. A Aracruz Celulose se aproxima das comunidades e as convida a um passeio pelo bosque florido e verdejante dos programas de relacionamento social. Segundo o site da empresa, o modelo de relacionamento com as comunidades vizinhas ampara-se nos pilares do diálogo, da agenda presencial e do engajamento. Comovente.

Não que a empresa tenha renunciado a métodos que lhe são caros de intimidação. Mas umas das armas de que tem se valido são os contratos de comodato das terras em litígio, com a ressalva de que o contratado não pode se identificar como quilombola, mas como agricultor, produtor rural ou ocupação semelhante. Ceder a tal expediente significaria reconhecer a posse de terra pela empresa e abdicar de uma luta de décadas pelo reconhecimento de que eles, os quilombolas, são seus proprietários legítimos. Este é o argumento de quem não aceita o contrato.

O problema é que para muitos tais contratos são a luz do fim do túnel de uma situação desesperadora. Nas comunidades de Angelim I e Angelim II, em Conceição da Barra, há certa divisão: um grupo quer, outro não. “Ninguém assinou, a proposta ainda está em discussão na comunidade”, afirma João Batista Guimarães, liderança de Angelim I. José Mateus dos Santos, de Angelim II, não sabe se alguém cedeu: “Tem gente que quer e que não quer”.

Aos poucos, a Aracruz Celulose vai conseguindo o que deseja: rachar internamente as comunidades, comprometer a unidade do movimento. Os contratos de comodato também foram oferecidos em São Domingos e em Roda D’Água (Conceição da Barra).

“Aí você dilui conflitos e aproxima empresa das comunidades. Como você vai bater na empresa que está financiando sua produção? Você não briga por território, briga por uma nesga de terra para plantar sua mandioca. E daqui a 10 anos você não sabe o que vai ser, a terra é da empresa, o poder está todo na mão dela. Não é mais o direito ao território, é de favor que a empresa está fazendo àquelas famílias”, analisa Simone.

Localizada na estrada que liga São Mateus a Boa Esperança, a comunidade quilombola de São Jorge é acossada por eucaliptais. Já registrou caso de criança envenenada pelos agrotóxicos aplicados na plantação, uma história que foi parar na Justiça, mas perdeu-se nas gavetas do judiciário. Recentemente, foi a Petrobras que protagonizou um episódio hediondo de violência cultural.

A estatal instalou um gasoduto no pátio da escolinha da comunidade. A brutalidade virou sadismo: logo depois ofereceu uma oficina de educação ambiental para alertar as crianças de que não poderiam mais brincar ali, que é perigo, pode explodir. Um exemplo cristalino de racismo ambiental de quem já chafurda em corrupção.

Pouco depois, a consultoria ambiental de uma empresa resolveu realizar uma palestra sobre economia de água na comunidade. As boas intenções da palestra aconselhavam delicadezas como “fechar a torneira ao escovar os dentes”, entre outras. Uma mulher da comunidade, que perdera um filho para os venenos do eucalipto, levantou a mão e pediu a palavra: “Olha, minha senhora, a senhora pode ficar sossegada que a gente está há três meses sem água na torneira. A gente está economizando muito bem porque não tem água nem para beber”.

Há três meses os moradores andavam três quilômetros para buscar água numa represa. Latas e baldes iam leves e vazios nas mãos e voltavam cheios e pesados sobre as cabeças.

O mesmo gasoduto violou a comunidade de São Domingos. Em seu pedaço de terra, um senhor plantava, criava porco e produzia farinha para vender em São Mateus. Um dia, carrões reluzentes e homens respeitáveis pararam em frente à sua propriedade. Apresentaram a empresa, apresentaram o projeto, apresentaram um documento e uma proposta: a empresa iria instalar um gasoduto ali e, em troca, o dono da terra ganharia R$ 10 mil. Bastaria uma assinatura para celebrar o contrato.

O homem, humilde, não sabe ler, não sabe escrever, sentiu-se coagido: carimbou as digitais no documento. E, o duto, foi instalado, ao lado da farinheira, que, claro, não poderá ser acesa quando o gás passar.

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