Chamam-se “passaralhos” as demissões coletivas que ocorrem em empresas jornalísticas, normalmente por necessidade de corte de custos.
A ansiedade e o medo provocados pela sombra dessa ave nos profissionais de imprensa representam uma delicada forma de tortura: você nunca sabe quando o golpe vem. Mas ele sempre vem.
Trabalhei na editora Abril, uma vida atrás. E tenho grandes amigos lá. A empresa foi palco de um novo passaralho nesta semana, que cortou postos de trabalho, acabou com publicações (um ícone da adolescência de muitas pessoas, a Capricho, por exemplo, só em versão digital agora) e vendeu outras. Ao mesmo tempo, vi muita gente comemorando nas redes sociais a crise na “dona da Veja”, tristemente celebrando o fechamento de postos de trabalho e ignorando que a democracia fica menor quando veículos de imprensa morrem – a mesma democracia pela qual dizem defender. Por isso, resolvi resgatar uma reflexão que já havia feito por aqui.
Antes de mais nada, é importante dizer que o passaralho, democraticamente, pode pegar a todos: novos e experientes, especialistas e generalistas, casados e solteiros, os que recebem altos salários e os que ganham abaixo do piso, alternativos e tradicionais, conservadores e progressistas, “governistas chapa-branca” e “oposição golpista”.
Para quem não é do meio, uma explicação: o financiamento do jornalismo convencional via publicidade está encolhendo e, com ele, o tamanho das redações – processo que pode ser acelerado por erros na gestão de alguns veículos. E não está ocorrendo uma transferência desses recursos para as versões digitais desses veículos que possibilitaria a migração dos profissionais para outra plataforma. Afinal, para que investir em banner se posso atingir meu leitor cirurgicamente via redes sociais e programas de busca?
Isso somado à crise econômica que estamos vivendo (alô, Dilma?) e a redução no número de publicidade em veículos por conta do impacto de investigações de corrupção em empresas da construção civil (que são grandes anunciantes), ajuda a tornar o cenário mais sinistro.
Alternativas existem, saídas estão sendo construídas, mas haverá muita tentativa e erro até lá. Mais erros pelo visto, porque muitos gestores de imprensa parecem perdidos, gastando rios de dinheiro em ações que previamente percebemos que darão em água. Mas que pagarão o salário gordo de algum consultor que, no final, dirá que a vida é difícil mesmo.
Jornais e revistas vão morrer no meio dessa transição do modelo de negócio do jornalismo. Outros, com sorte, farão uma mudança digna para a internet. Enquanto isso, veículos novos vão surgir, pensados para plataformas multimídias e interativas, a maioria deles menores e mais ágeis do ponto de vista organizacional, outros sem fins lucrativos. Mas não necessariamente com a mesma estrutura que possibilita proteção jurídica e apoio logístico para que os profissionais de imprensa sintam-se seguro para exercer seu trabalho.
O problema é que, neste momento “nem lá, nem cá”, quem não nasceu em berço de ouro ou não foi apadrinhado por mecenas, empresas e governos e, ao mesmo tempo, não quer ou não pode empreender, continua tendo contas a pagar. E, portanto, medo da incerteza.
Uns dizem que dos escombros do atual jornalismo sairá uma bela fênix. Outros que será um cenário pós-apocalíptico, com grupos de justiceiros promovendo o caos, feito Mad Max. Neste momento, não me interessa o prognóstico mas, com base no atual diagnóstico, entender o que fazer já para minimizar os impactos com o empregos que existem hoje. Ou pelo menos possibilitar uma passagem o mais suave possível.
Não acho que seja o caso de demonizar necesssariamente os patrões nesse processo porque seria ignóbil pensar que donos de veículos que registraram baixas ao longo do ano ficaram felizes com isso. Pelo contrário, cortar na carne é sempre uma decisão complicada, pois o maior patrimônio de uma empresa jornalística é a sua equipe.
No ano passado, exigiu-se muito do trabalho de profissionais da imprensa. Paralelamente, perdi as contas do número de passaralhos envolvendo veículos tradicionais e alternativos e, posteriormente, de telefonemas, serenos ou desesperados, de colegas pedindo ajuda para encontrar um novo emprego ou frilas. Dívidas, filhos pequenos, mês que não fecha, enfim, vida real.
Muita gente adora dizer que sem bom jornalismo, profissional ou não, não se mantém uma democracia. Só que a base do jornalismo é a reportagem e não o colunismo. E são poucos os atores sociais que querem financiar a produção de coberturas aprofundadas, daquelas que custam muito tempo e recursos. Nessa hora, me salta à mente um dos versos do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles: Todos querem a liberdade, mas quem por ela trabalha?
Creio que a expressão mais frequente que ouvi dos colegas jornalistas diante da situação da profissão foi “sentimento de impotência”. Frente às incertezas de sua própria condição e das mudanças estruturais – que não são monopólio do jornalismo, claro, mas que em nosso caso questionam a própria natureza da atividade. Lembrando também que o jornalismo moderno tem uma relação carnal com o modelo de democracia que, por sua vez, também vive uma crise.
Muita gente, entre os modernos e os antigos, não se reconhece como classe trabalhadora. Devido às peculiaridades da profissão, desenvolvemos laços com o poder e convivemos em seus espaços sociais e culturais, seduzidos por ele ou enganados por nós mesmos. Só percebemos que essa situação não é real e que também somos operários, transformando fato em notícia, quando nossos serviços não são mais passíveis de serem remunerados em determinado lugar.
Nesse sentido, um amigo que sentiu um passaralho, meses atrás, confessou que o pior não foi a demissão, que até comprendeu as razões. Para ele, foi a falta de transparência, informação e diálogo, que ajudou a alimentar a ansiedade descrita no início deste texto. Elementos que não foram garantidos por seus patrões, mas que também não foram exigidos por parte dele e dos colegas. “Se fossemos comunicadores, isso seria preocupante”, ironiza.
Em um começo de século com ares de aprofundamento antropofágico, talvez a melhor resposta a tudo isso esteja na modernidade de Oswald de Andrade: “Só o passaralho nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”.