Em Taqui Pra Ti
– Eu, lá eu fui, porque por mulher eu não morro, por roubar dinheiro eu não morro, por roubar mulher de outro eu não morro, por roubar filho do outro eu não morro. Eu morro por ele, por este meu povo (…). Por isso eu morro, por ela esta terra, todas as coisas que acontecerem, por ela eu morro, por isso, quando for assim.
Esta frase enunciada em língua ticuna pelo sábio Pedro Inácio Pinheiro, em janeiro de 1983, na aldeia Vendaval, município de São Paulo de Olivença (AM), está agora no livro bilíngue, ricamente ilustrado – Tchorü Duṻṻ güca’ Tchanu – Minha Luta pelo meu povo – editado pela EDUFF e lançado na última terça-feira (17), no Rio de Janeiro, na Livraria Travessa, em Botafogo. Faz parte da narrativa recolhida num gravador por Marília Facó Soares, linguista do Museu Nacional da UFRJ que vem pesquisando essa língua há mais de trinta anos.
O livro traz as vivências de Pedro Inácio narradas por ele mesmo, em sua língua materna, contando as recentes acontecências da luta dos Ticuna que habitam um território no Alto Solimões, mas que estão presentes, além do Brasil, na Colômbia e no Peru. A narrativa faz parte da linhagem de autobiografias desenvolvida em toda América Latina, tendo como sujeito histórico um índio, cuja biografia desempenha papel importante na história de seu povo e da etnologia.
O autor Pedro Inácio, do clã da onça, cujo nome em ticuna Ngematücü significa “aquele que não tem pinta”, tinha 38 anos quando narrou sua história. Foi transcrita na língua ticuna por outro falante nativo, Reinaldo Otaviano do Carmo, do clã do mutum – Mepawecü – “aquele que tem bico bonito” – que em 1983, com 28 anos, era um dos poucos a dominar a escrita. Ele fez a transliteração em sua casa na aldeia Vendaval, com a participação ocasional de outros Ticuna que paravam para ouvir a gravação e conversar.
Melodia da língua
O relato escrito em ticuna circulou em janeiro e julho de 2008 no Curso de Licenciatura para Professores Indígenas do Alto Solimões da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), quando foi multiplicado, discutido e revisto por cerca de 250 professores bilíngues sob orientação de Marília Facó. Cada professor revisor contou com um exemplar do texto, quando introduziram notas explicativas destinadas especialmente a quem – como nós, falantes de português – só pode ter acesso a partir da tradução, no caso feita com participação coletiva, o que lhe confere ainda maior confiabilidade.
O ticuna é uma língua tonal, em que a altura do tom – alto ou baixo – é pertinente para o significado. Foi isso que atraiu a pesquisadora que dedicou parte de sua vida a estudar essa língua:
– Eu me apaixonei pela língua, ela é muito bonita de escutar. Melodicamente, quando você tem uma língua tonal, as palavras são cantadas, você tem a melodia das palavras. Nos anos 80, quase ninguém queria trabalhar com línguas tonais, porque é mais difícil – disse Marília em entrevista à Conexão Jornalismo.
A edição bilíngue enfrentou um duplo desafio: o primeiro foi colocar no papel em língua ticuna um relato criado na oralidade, que tem configuração própria deste suporte, convertendo em texto escrito aquilo que não foi concebido para isso. O segundo foi traduzir ao português respeitando a retórica da língua original usada por Pedro Inácio, que é um orador excepcional. Habitualmente se costuma sacrificar a língua indígena para ajustá-la ao português, em vez de o português se deixar envolver, nesse caso, pela língua ticuna.
O trabalho parece seguir a observação de Walter Benjamin sobre o contato entre as línguas nessa situação e a qualidade da tradução:
– Até mesmo as melhores traduções de outras línguas ao alemão se baseiam numa premissa falsa: fazer com que qualquer língua que se traduz se subordine à nossa língua, em vez de buscar que o alemão se ajuste a outras línguas. Nossos tradutores tem mais reverência pelas normas de uso de seu próprio idioma do que pelo sentido essencial (“the spirit”) das obras estrangeiras.
A tradução da fala de Pedro Ignácio ao português é primorosa, procura manter a beleza e os recursos da narrativa na língua original, assumindo o discurso transculturalizado. Começa com as origens em que Yo’i, o herói cultural pescou os primeiros ticuna nas águas vermelhas do igarapé Eware, local mítico situado nas nascentes do Tonatü. Segue com os dados pessoais dando conta do seu nascimento, sua infância, a saída da aldeia, o patrão, os seringalistas, os madereiros, a descoberta do movimento indígena que desemboca na sua inserção na luta pela terra e na criação do Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTT), as reuniões e assembleias com as viagens a Manaus, São Paulo, Rio e Brasília.
Territórios narrados
No percurso da comarca oral à cidade letrada, esse enunciador étnico e múltiplo na voz de Pedro Inácio assume essa história universal na sua biografia, lembrando Guimarães Rosa para o sertão do Brasil, José Maria Arguedas para o mundo andino ou Juan Rulfo para o llano mexicano, como mostra este pequeno trecho:
– Eu nasci no Tunetü, aquele onde há muito tempo Yo’i nos pescou, no Eware, dentro do Tunetü, nasci eu (…). Então, naquela época, eu não tinha conhecimento desta história de agora, eu não sabia de nada mesmo, de uma vez por todas. Eu conhecia só aqueles costumes dos homens. Então, naquele tempo, no meio daqueles homens eu estava, eu. Eles existiam para mim, aqueles.
Agora, o livro da EDUFF vai ser adotado nas escolas ticuna, permitindo que os jovens alunos reflitam um pouco mais sobre sua própria história e estudem não apenas os fenômenos formais da língua materna, mas também seus sentidos culturais, assim como o próprio ato de traduzir. Edições com objetivos similares estão em marcha na Colômbia através do projeto Territórios Narrados do Plano Nacional de Leitura e Escrita, assim como no Peru com os Cuentos Pintados da Universidade Mayor de San Marcos.
As imagens atrativas e informativas do livro – mapas, fotos, desenhos e ilustrações variadas – estão articuladas à história narrada e remetem ao universo ticuna, em espaços e tempos diferentes. O povo Maguta está aí representado também por objetos que integram a vida cotidiana, fotografados em área indígena entre outros pela lente poética de Jussara Gruber, mas também com a reprodução de objetos distantes dos índios que fazem parte das coleções do Setor de Etnologia do Museu Nacional, como as fotos feitas por Curt Nimuendaju há mais de sessenta anos.
Cinco anos depois desta narrativa, Pedro Inácio foi ferido em 28 de março de 1988, no massacre do igarapé do Capacete. Ele e outros índios, desarmados, reunidos na aldeia, foram cercados e surpreendidos por oito pistoleiros a mando do madereiro Oscar Castelo Branco, que queria se apropriar das terras indígenas. Os pistoleiros atiraram. Crianças gritavam desesperadas, protegidas pelos adultos que, com seus corpos, faziam um escudo humano em volta delas. Os corpos começaram a cair. No final, havia 14 mortos, 23 feridos, 10 desaparecidos, todos eles ticuna, o que repercutiu internacionalmente.
O conflito continua, mas a volta por cima desta dor está no livro. Por isso, seu lançamento é uma boa notícia. Nesses tempos bicudos de renans, cunhas e petrolão, quando a leitura dos jornais nos deixa cada vez mais deprimidos diante das figuras repelentes dos presidentes da Câmara e do Senado, um livro como esse deve ser celebrado com júbilo, porque abre espaço para a esperança.
O jesuíta Ruiz de Montoya, criador da primeira gramática escrita da língua guarani, no séc. XVII, lembra que ali onde se aprende a língua do outro, se aumenta as possibilidades de estabelecer o diálogo e relações pacíficas. O livro organizado por Marilia Facó, que devia ser adotado também nas escolas não-indígenas, caminha nessa direção.
Fica a pergunta ao leitor: será que a ministra e pecuarista Kátia Abreu teria menos voracidade no abocanhamento das terras dos índios se conhecesse a importância desse patrimônio cultural? Talvez os filhos dela batizados com nomes tão sugestivos – Irajá, Iratã e Iana – poderiam mudar se lessem as histórias ticuna. Ou os netos. Digo, es un decir, como no poema de Vallejo.
P.S. – A mídia que percorre os corredores, mas não entra nas sala das universidades, deixa de registrar noticias de interesse geral. Cabe noticiar aqui que no mesmo dia do lançamento do livro dos Tikuna, Kalna Teao defendia sua tese de doutorado “Território e Identidade dos Guarani Mbya do Espírito Santo (1967-2006)”, sobre as lutas pela terra, cuja leitura faria um bem danado a Katia Abreu ou então a mataria do coração. Da banca participaram Regina Celestino (orientadora), João Pacheco (citado também por Pedro Inácio no livro ticuna),Vania Moreira, Elisa Garcia e este locutor que vos fala.