Quando eu era bem pequena havia uma canção que a gente sempre entoava nas brincadeiras de rua. Cansada das peraltices e correrias, a gurizada sentava na beira da calçada e fazia o jogo com as mãos, cantando.
Escravos de Jó, jogavam caxangá,
Escravos de Jó, jogavam caxangá.
Tira, bota, deixa o Zé Pereira ficar…
Guerreiros com guerreiros, fazem zigue zigue zá,
Guerreiros com guerreiros, fazem zigue zigue zá.
Naqueles dias, a gente nem sabia que essa quadrinha era originária do continente africano, trazida para nossas vidas pelas gentes que foram sequestradas de seus países para servirem de escravos por aqui. A cantiga fala de Jó, um personagem bíblico que ao longo de sua vida perdeu todas as riquezas que tinha – inclusive os escravos – mas nunca perdeu a fé. Para nós, crianças, aquela algaravia não tinha sentido literal, o que valia era o ritmo e a sincronizada bateção de palmas.
Eu, sempre minhocando coisas na cabeça, perguntava para minha mãe: mas, como os escravos ficavam jogando? Como eles podiam ficar brincando, sendo escravos? E se eram guerreiros, por que não faziam uma luta para sair da escravidão? Minha mãe não sabia o que responder, me olhava, assustada e dizia: vai brincar, guria. E eu via que ela mesma ficava a cismar.
Hoje eu me ocupo com algumas postagens na famigerada rede social, de um povo falando do beijo lésbico de duas mulheres velhas na Globo. Os comentários dizem de um grande avanço no campo dos direitos humanos, já que em rede tão oligopólica, isso pode ajudar a reduzir o preconceito contra os homossexuais. E mais, historizam o fato de que também a Globo já protagonizou o beijo entre Félix e Anjinho (dois homens), duas mulheres jovens e entre outro casal gay (também homens) na mais recente novela de igual horário. Tudo é celebrado como uma vitória dos direitos. Será? É essa maldita minhoquinha, voltando a roer meu cérebro.
De saída, penso que ninguém deveria celebrar a Globo. É uma rede oligopólica, que nasceu sob o manto do regime militar, disposta a criar uma “identidade nacional” tal como queriam os ditadores. Serviu a esses senhores e segue servindo à classe dominante. Nada do que dizem ou fazem está descolada dos interesses dessa gente. Como dizia Brizola, o povo é quem deveria ter o controle das concessões de rádio e TV. Enquanto o éter estiver na mãos dos graúdos, nada de bom – pelo menos para nossa classe – pode vir dali.
Os decantados beijos-gays devem ser vistos dentro de seus contextos, pois, no geral, os casais das novelas são ricos e bem-nascidos, logo, bem menos sujeitos à violência e ao repúdio. Não aparece nenhuma discussão de classe. Não precisa, porque a Globo não quer discutir o tema, apenas quer ganhar um público específico da Record, que por ser de uma igreja, rejeita a homossexualidade. É tudo um jogo de interesses, mas os interesses de uma determinada classe, que não é nossa, dos trabalhadores. É a de quem é dona dos meios de produção. Os que nos exploram.
Por isso lembrei da musiquinha dos escravos de Jó. Pois é o que me parece. A platinada omite as lutas sociais, criminaliza os pobres e lutadores, esteriliza a pobreza, mitifica a miséria, ajuda no processo interminável de opressão sobre os trabalhadores e ainda recebe aplausos por conta de um beijo gay? É como se ali estivessem os escravos de Jó, jogando caxangá, enquanto têm as suas vidas sugadas no sistema de mais-valia ideológica. Quando permanecem ligados à roda do consumo, sonhando comprar a marca da roupa da mocinha da novela, ou cortar o cabelo no modelito atual da Glória Pires.
O mesmo me parece que ocorre com a presença dos negros nas novelas da Globo. Cada vez tem mais. Mas qual é o destino de cada um? Agora eles até saíram um pouco do esteriótipo empregada doméstica/garçom/motorista. Já tem negro publicitário, jornalista, artista e até protagonista. Mas qual é a mensagem final desses personagens? No geral, esses que fogem do típico, sempre acabam se conformando nas formas do sistema. Ficam ricos e se vingam, galgam postos de mando e deixam de sofrer preconceito. Tudo parece se resolver com a ascensão financeira. Negro rico é palatável, bem como gay rico também. Ah, a classe…
A novela é um folhetim, não precisa ter mensagem nem fazer formação política, diriam alguns. É pura diversão, sensação pós-moderna. Discordo. Basta lembrar que grandes autores críticos fizeram história com seus folhetins, tais como Vitor Hugo, do clássico “os miseráveis”, que foi publicado em capítulos nos jornais franceses. Ou ainda, para citar alguns brasileiros, figuras como Lima Barreto e Manuel de Macedo, também publicados como folhetins. Logo, o problema não é a novela em si, mas o que se traz para publicar na novela. Os autores, sua visão de mundo, seu pensamento alinhado com a classe dominante.
Nesse sentido “democratizar a comunicação” precisa avançar muito mais do que simplesmente colocar mais negro, mais gay, mais pessoa com deficiência, mais beijo, mais isso, mais aquilo. Democratizar a comunicação é mudar o giro do poder. Quem decide o que vai ao ar? Quem produz? Ou isso ou seguiremos, freneticamente cruzando as mãos, como os escravos de Jó. Alegres, mas escravos ainda! …
Fonte: Palavras Insurgentes