Arrastando-se desde 1989, a disputa pela terra indígena Guyraroká, no sul do Mato Grosso do Sul, opõe não só as 80 famílias de kaiowás acampadas no local aos 26 fazendeiros que controlam a área.
Atualmente no STF (Supremo Tribunal Federal), o caso tem potencial para influenciar centenas de processos demarcatórios pelo país caso haja a ratificação de um marco temporal limitando a criação de áreas indígenas às que estavam ocupadas por índios em 1988, ano da Constituição.
Em Caarapó, a demanda indígena é personificada pelo líder kaiowá Tito Vilhalva, 94. Há 14 anos, ele e a família trocaram a aldeia Tey’ikue, também em Caarapó, por um barraco de lona à margem de uma estrada rural que atravessa plantações de soja, canaviais e pastagens. Foi ali, conta, que ele nasceu antes de sua aldeia ter sido coagida a deixar a região.
A reportagem é de Fabiano Maisonnave, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 23-11-2014.
“Os índios viviam tranquilos aqui no Guyraroká, era tudo mato”, diz Vilhalva, em conversa no acampamento cercado por pastagens. “Em 1931, 1932, tinha a guerra do Getúlio [Vargas] e um general mandou recado que ia matar todos os índios. E nós acreditamos, porque a guerra não perdoa ninguém, e fomos a pé para Tey’ikue.”
Localizado a cerca de 30 km do acampamento, Tey’ikue tem cerca de 3.500 hectares e abriga cerca de 6.000 guaranis-kaiowás. Em comparação, o Parque do Xingu (MT) possui 2,6 milhões de hectares para 4.800 índios.
Esse processo de confinamento, assim chamado por historiadores e antropólogos, concentrou os guaranis-kaiowás em pequenas reservas indígenas entre o início do século 20 e meados dos anos 1950 – enquanto as demais terras, dentre as mais férteis do país, foram vendidas a colonos vindos do Sul.
Do outro lado, a resistência dos fazendeiros ficou a cargo do gaúcho Avelino Donatti, 70. Ele move a ação no STF contra a demarcação em estratégia coordenada com outros proprietários afetados por Guyraroká -11,4 mil hectares declarados como área indígena em 2009 pelo Ministério da Justiça.
Há 42 anos radicado em Mato Grosso do Sul, Donatti comprou em agosto de 1988 a fazenda Cana Verde (360 hectares), dentro de Guyraroká. Ele explica que é o quarto proprietário privado da área, originalmente adquirida do Estado nos anos 1950.
“Quando comprei, ninguém conhecia índio perto”, afirmou. “Eu não vendo nunca, só no dia que morrer.”
Cana Verde não é a única terra de Donatti. Quando chegou à região, em 1972, comprou inicialmente 300 hectares. Com o tempo, adquiriu outras fazendas e hoje tem cerca de 9.000 hectares. “Eu trabalhei muito. Só sei plantar lavoura.”
Projeção nacional
Em 2009, o STF estabeleceu que a área, para ser reconhecida, precisava estar ocupada por índios em 1988, quando a Constituição entrou em vigor. O Ministério Público Federal entrou com recurso.
A estratégia do fazendeiro foi baseada em entendimento anterior da corte sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol (RR). Na época, o Supremo entendeu que a área, para ser reconhecida, precisava estar ocupada por índios em 1988, quando a Constituição entrou em vigor.
Instituição do marco temporal afetaria 300 áreas, estima Cimi
Caso o marco temporal da Constituição de 1988 passe a valer em demarcações, como indica decisão recente da segunda turma do STF (Supremo Tribunal Federal), ao menos 300 terras indígenas em processo de demarcação ou reivindicadas pelos índios serão afetadas.
A estimativa é do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), entidade ligada à Igreja Católica.
Apenas no sul de Mato Grosso do Sul, principal palco de disputa entre fazendeiros e indígenas no país, o marco temporal afetaria nove terras indígenas guaranis-kaiowás em etapas diferentes de demarcação. Essas áreas somam 117 mil hectares, quase o tamanho da cidade do Rio de Janeiro.
Cerca de 50 mil guaranis-kaiowás vivem na região, em uma área de cerca de 29 mil hectares, a maior parte reservas de até 3.500 hectares demarcadas entre 1915 e 1928. Muitos vão morar na beira de rodovias, à espera de uma decisão judicial, ou engrossam as periferias das cidades.
Crítico do marco temporal, o procurador da República em Dourados Marco Antonio Delfino de Almeida afirma que a decisão recente do STF coloca os indígenas na condição de “não-humanos”.
“Por que uma pessoa não tem direito à reparação – que, no caso dela, é a terra – e outra pessoa que supostamente sofreu tortura tem direito à reparação de uma forma imprescritível?”, questiona, referindo-se à indenização de presos políticos da ditadura militar (1964-1985).
“Essa diferenciação é a mesma do século XVI, em que se discutia se os índios faziam parte da humanidade. É uma manifestação clara entre humanos e não-humanos”, diz.
Para o advogado Cícero da Costa, autor da ação no STF e representante de fazendeiros em ações semelhantes, a solução do conflito fundiário passa pela compra de terras via desapropriação, e não demarcação, na qual o fazendeiro só tem direito à indenizado pelas benfeitorias.