Presidente da Funai de junho/2013 até setembro último, Maria Augusta Assirati propõe, em sua primeira manifestação pública após deixar o cargo, reflexão sobre uma política indigenista descolonial
por Maria Augusta Assirati* — CartaCapital
Durante os últimos anos tive o privilégio de atuar junto à Fundação Nacional do Índio – Funai, buscando desenvolver uma ação indigenista em defesa dos povos indígenas no Brasil. O significado desse período, para mim, foi muito além de um ponto de passagem numa trajetória profissional. Desde o início de minha relação com povos indígenas, que se aprofundou e estreitou durante o tempo de Fundação, estive disposta a receber, acolher, e experimentar toda sabedoria que os indígenas se dispusessem a compartilhar durante nosso convívio. Isso é; optei sempre por estabelecer um diálogo – de fato – com esses povos. Essa escolha me permitiu transformar a experiência indigenista, e a experiência de Funai, numa verdadeira vivência.
Vivenciar o diálogo de fato (material, e não apenas formal) e o compartilhamento de sentidos com indígenas permitiu-me, ao lado de outras tantas satisfações, um alargamento de minhas possibilidades de interpretar o mundo. Isso demanda um exercício cotidiano de alteridade, e disposição para abandonar a zona de conforto das certezas preestabelecidas como pilares de certa concepção dominante de conhecimento. Apenas a partir dessa disposição e da concretização desse exercício é possível encontrar sentido para a vida em sociedade.
Dialogar de fato é considerar a lógica do outro, suas premissas e valores, seu lugar de fala. É atentar para a relatividade cultural, e vigiar contra o vício (colonial) de aceitar exclusivamente a racionalidade convencional hegemônica.
A modernidade, contudo, parece ter maior habilidade para conduzir ao extremo oposto desse exercício. Embora certos temas estejam no centro dos debates, é perceptível a impossibilidade de diálogo – de fato – sobre esses temas. É como se, ao adentrarmos no universo que compreende determinados assuntos, as pessoas passassem a falar línguas completamente distintas, sem qualquer compreensão mútua.
Certa vez, representando a Funai, estive numa explanação no Congresso Nacional sobre desenvolvimento sustentável no âmbito da política indigenista no Brasil. Tratei das ações de fomento às atividades produtivas sustentáveis, dos processos voltados à conservação e recuperação ambiental de áreas degradadas, salientei os indígenas como agentes de proteção ambiental, tratei de acesso aos direitos sociais, cidadania, educação e saúde. Exibi números, gráficos, demonstrei êxitos e desafios. Ao final, um senhor que participava do evento desde o início, pediu a palavra e perguntou: “quanto é que ainda falta de terras para demarcar no estado tal?”.
A pergunta não me surpreendeu. Mas agravou minha descrença em relação à possibilidade de manter diálogos reais. Era mais um episódio reiterando as prioridades do modelo político, econômico, social, e cultural, que há muito tempo foi imposto com base em práticas coloniais, ocidentais, e liberais, em suas versões originais ou transmutadas de acordo com a evolução dos contextos sociopolíticos e socioeconômicos. Para além das muitas outras consequências perversas no espectro da dominação, da segregação, e da exclusão, esse modelo foi capaz de introduzir um abismo relacional entre dois universos: um do colonizador, que defende, conserva, e se retroalimenta do próprio modelo; outro do colonizado, que o rejeita e atua para transformá-lo. Esse abismo determina, inclusive, a impossibilidade de estabelecimento de diálogo material entre ambos. Sujeitos pertencentes a universos distintos conversam, mas não dialogam. No campo dos assuntos envolvendo povos indígenas, esse abismo parece ainda mais profundo.
Indigenismo no Brasil
A tarefa do indigenismo no Brasil nunca foi fácil. Em maior ou menor escala, de acordo com os objetivos em jogo e dos métodos de exclusão dos indígenas e suas circunstâncias para atingir esses objetivos, em diferentes momentos históricos, houve sempre certa incompreensão (para dizer o mínimo) envolvendo os motivos que movem pessoas, grupos, ou setores sociais a se dedicarem à defesa dos povos originários. Ao longo das diversas conformações de poder que se seguiram desde o início da colonização da América, esses povos foram considerados sempre “prescindíveis” frente aos imperativos do “progresso”.
À parte do discurso da negação da proteção aos índios por razões de viés fascista, não é incomum que se questione porque é que se dispensa tanta atenção, se mobilizam tantos esforços, ações, e agentes em torno de uma população numericamente inexpressiva frente à população total do país. Há, ainda, quem confronte a defesa de políticas específicas e diversas para proteger indígenas já “integrados” à sociedade dominante (ou “civilizados”, como alguns preferem afirmar). O contraponto a essa argumentação parece, à primeira vista, muito evidente. Mas essa obviedade talvez não consiga fazer-se presente em ambos os universos separados pelo abismo, e por isso, é preciso explicitar.
A resposta relaciona-se, primeiramente, à reafirmação e defesa de um modelo de sociedade: justa, solidária, fraterna, pluriétnica, democrática, e igualitária. De outro lado, mais objetivamente, o contraponto assenta em razões históricas. É fundamental trazer sempre à lembrança os números do processo histórico do extermínio das nações indígenas que se operou desde o início da invasão dos colonizadores. Estima-se que em 1500, a população indígena no território hoje correspondente ao Brasil, era de, pelo menos, 3 milhões de indivíduos. Em 2010, segundo último censo do IBGE, foi possível comprovar que os indígenas atualmente somam pouco mais de 800.000 indivíduos vivendo no país.
A redução demográfica demonstrada pelos números possibilita constatar a dimensão das consequências que o processo de colonização desencadeou. A sociedade ocidental, branca, colonizadora, baseou-se sempre numa arrogante e inquestionável certeza de seu direito de domínio absoluto em relação aos indígenas, alocando-os onde fosse mais conveniente, ou onde pudessem causar menos entraves aos seus interesses econômicos, desconsiderando seus territórios tradicionais, suas organizações sociais, suas línguas, crenças, e tradições; submetendo-os à escravidão, à violência física, cultural e moral; promovendo saques, torturas, estupros, e violações de todas as espécies. Verdadeiros genocídios.
Portanto, o mero dever de reparação da dívida histórica para com esses povos, parece motivo mais que suficiente para uma adequada promoção e proteção de seus direitos. Soma-se a isso a consideração de que a aniquilação (física ou cultural) de um povo indígena corresponde ao desaparecimento de uma sociedade inteira da face da Terra, à erradicação de toda uma cultura, de um conjunto inimaginável de saberes e conhecimentos trazidos de tempos e espaços ancestrais. Permitir o desaparecimento de um povo indígena é determinar a exclusão de uma cosmovisão, em nome de um “processo civilizatório” baseado em paradigmas ocidentais coloniais que, ultimamente, apenas fazem abrir alas à replicação em escala global de hábitos, conformando uma cultura global amorfa, homogênea, e artificial.
Além disso, é essencial não descuidar do fenômeno da sobrevivência da razão central – econômica – da fúria do homem branco contra os indígenas, qual seja, o interesse pela terra, que sempre mereceu lugar de destaque dentre as vigas que sustentam por séculos a ação anti-indígena. Esse fator tem, ultimamente, engendrado a configuração de um cenário mais difícil para a defesa dos indígenas. Dentre outras adversidades, ganha força uma dura e explícita ofensiva de agentes públicos e privados contra esses povos, na forma de oposição ao regime de demarcações de suas terras, de estratégias voltadas à desqualificação da atuação do órgão indigenista do Estado, e de confrontação aos modos de vida dos diversos Povos.
Ofensiva anti-indígena
Essa ofensiva, liderada por setores latifundiários ligados ao agronegócio, desenvolveu tentáculos e ocupou espaços institucionais, moldando formas concretas de expressão e ação política anti-indígena, extrapolando os limites do mero discurso político.
Duas dessas concretudes de ação anti-indígena verificadas nos últimos anos merecem nota. A primeira foi a expressiva adesão ao movimento para aprovação da PEC 215, que a despeito do vício formal de inconstitucionalidade da medida e do despropósito político no mérito de seu teor, chegou muito perto de lograr êxito. Outra materialização dessa ofensiva foi a paralisação dos processos administrativos de demarcação de terras indígenas, que tiveram suas tramitações interrompidas, sob o argumento da prevenção de conflitos fundiários. Isso, evidentemente, acabou por gerar reflexos também na ação do Judiciário em relação a processos envolvendo terras indígenas.
Os desdobramentos objetivos da ofensiva ruralista criaram uma atmosfera tão desfavorável ao avanço da implementação dos direitos dos indígenas, que trouxeram desafios até então não enfrentados, já que pela primeira vez, desde a redemocratização, setores dos três Poderes do Estado passaram a manifestar-se de forma inequívoca em favor da revisão do arcabouço normativo que estabelece direitos a essas populações.
Conferência Nacional – resistir e descolonizar
A atuação do movimento indígena, das organizações indigenistas, de outros movimentos sociais, e de grupos de defesa, foi fundamental no estabelecimento de uma resistência que impedisse o avanço desse movimento. Por conseguinte, até o presente momento, não se efetuou qualquer alteração normativa de dispositivos que garantem direitos indígenas. No entanto, essa batalha ainda não teve um desfecho. E os espaços que permitam a realização desse debate, devem encarados como arenas de disputa de posições e de ações em busca de uma intervenção política que afaste os riscos de um retrocesso em relação ao que, a partir da Constituição Federal de 1988, se conseguiu conquistar em termos de direitos das populações indígenas.
Nesse sentido, é bom ter em mira a I Conferência Nacional de Política Indigenista, que pode se constituir num ambiente propício para a realização de um diálogo material com os povos indígenas e para a pactuação de compromissos consubstanciados em diretrizes de sua relação com Estado. A Conferência pode traçar rumos de atuação futura à luz de uma perspectiva descolonial, estabelecidos a partir da visão e da voz dos próprios indígenas.
A propósito disso, numa situação em que estava a apresentar numa reunião de governo a proposta da Conferência, e a discorrer sobre sua concepção, eixos de trabalho, objetivos, e finalidades, eu falava da necessidade de tratamento do tema sob a perspectiva de descolonização, quando questionaram “o que queríamos dizer com isso?” Fiquei pensativa por um instante, e tornei a sentir-me ante o abismo. Ensaiei mentalmente mil coisas que podiam ser ditas ante aquela indagação. E, no fim, reconduzi a discussão a um ponto mais operacional, pois entendi que não fazia sentido tentar atravessar o abismo naquele momento.
Definições teóricas de lado, o fato é que é evidente demais para ser negado, o caráter colonial que define as relações em nossa sociedade. Esse caráter que invisibiliza e anula o outro, o diverso. Que silencia a voz do outro, sempre que tenta ultrapassar os limites daquilo que é, hegemônica e unilateralmente, definido como importante, prioritário, ou possível. Na modernidade, seguem em reprodução as formas coloniais de estabelecimento das relações sociais. E seguem se revitalizando as hierarquias sociais fundadas em distinções opressoras, que para muito além da caracterização da sociedade de classes, se moldam nas desigualdades étnico-raciais, por exemplo, alimentando continuamente, por meio de processos culturais-ideológicos, a subordinação entre periferias e centros nas múltiplas dimensões sociais.
É inadmissível que se continue negando a diversidade, ao enxergar, compreender e explicar o mundo. Essa negação é a base do princípio colonial que, por isso mesmo, opera a exclusão e a marginalização de tudo o que é diverso do (e, portanto, estranho ao) universo dominante. Desde o período dos sistemas coloniais, se entendia necessário levar a civilização e a sabedoria para povos selvagens e ignorantes da América, como se ‘a alteridade’ fosse uma página em branco a ser preenchida pelo saber e cultura ocidentais. Os processos de expansão colonial foram operados por homens europeus heterossexuais, e, portanto, conduzidos a partir de seus preconceitos culturais, que contribuíram para a conformação e consolidação de estruturas de desigualdade sexual, de género, de classe e raciais.
A pergunta que se coloca nesse instante é por que razão, passados mais de 500 anos, não se consegue conceber outra forma de olhar para o outro, e consequentemente, de olhar para o mundo? Infelizmente, essa compreensão foi tão pouco confrontada e refutada, que foi capaz de construir sujeitos que assimilassem e reproduzissem o pensamento colonizador, naturalizando, inclusive, essas sobreposições culturais.
Passado o fim das administrações coloniais, nos vemos ainda presos a um modelo sociopolíticos que articula diversas formas de exploração cultural, política, sexual, e econômica de grupos étnicos.
Descolonizar as relações
Qualquer arranjo político, social, ou econômico, portanto, que venha a ser projetado para funcionar no sentido da justiça social, demanda um exercício prévio de descolonização. Descolonização de nossa sociedade, de nossa política, de nossa economia, e principalmente, antes de tudo, de nosso pensamento. É preciso desconstruir essa concepção relacional (epistêmica) onde o válido, o correto, o possível, o bonito, o aceito, e o permitido são estabelecidos a partir de apenas um (excludente-monocultural) ponto de vista. Isso é; sob a óptica do homem, branco, proprietário, heterossexual, escolarizado, etc. Nossa sociedade é plural. Portanto, comporta e deve assegurar que essa pluralidade cultural seja expressa nas múltiplas dimensões da vida em sociedade, tais como a política, a educação, a economia. Possibilitar essa expressão é parte fundamental do processo de descolonização.
Partindo-se de tais premissas, e apostando na viabilidade de rever, no rumo da descolonização, o tema dos povos indígenas no Brasil, é possível refletir sobre desafios da política indigenista. E nesse sentido apontar, procurando contribuir com sua valorização, caminhos de debate sobre a relação desses povos com o Estado e com sociedade.
Esse exercício permite duas abordagens acerca do que é possível avançar. A primeira delas, mais progressista, parece mais profícua no sentido de abrir espaço para a emancipação real dos povos indígenas. Isso, no entanto, demandaria um prévio aprofundamento de debates complexos como a própria relação indígena com os Poderes Legislativo e Judiciário, e de temas como o pluralismo jurídico, e a multiplicidade de economias numa mesma ordem, por exemplo. Para tanto, acho que ainda não estamos preparados nesse momento. Mas há sempre uma abordagem mais conservadora que, se por um lado é mais tímida, por outro, cabe dentro dos limites que a atual conjuntura, política, social e econômica, encerra. É bom que se diga, no entanto, que levar a efeito ações orientadas por essa segunda abordagem já representará um avanço em relação ao que está posto; já que nosso ordenamento jurídico é relativamente avançado no que se refere à relação com povos indígenas, exigindo, ainda, contudo, o esforço de concretização desse modelo por meio de políticas públicas. Por isso, é preciso que nos concentremos em tarefas ainda não cumpridas, mas que, no âmbito da atual conjuntura, são factíveis e possíveis de viabilização pelo Poder Público, sobretudo Federal, para fortalecer a ação indigenista do Estado, olhando, ouvindo, e considerando os indígenas e suas circunstâncias específicas na formulação e implementação de políticas públicas.
Desmistificar o debate – o que realmente está em jogo
A primeira tarefa que se coloca para transformar a política indigenista no Brasil, ainda no âmbito dessa perspectiva conservadora, é desmistificar o debate sobre a terra. Digo desmistificar porque o tema é sempre encoberto por uma série de mitos. O mito de que há ‘muita terra para pouco índio’, o de que terras indígenas são improdutivas, que os processos de demarcação da Funai são viciados, e por aí vai. Grande parte das pessoas que disseminam o terror anti-indígena reproduzindo esses mitos, não tem ideia de como funciona um processo de demarcação, nem do que significa uma ocupação tradicional.
Outra afirmação recorrentemente utilizada para contrariar a continuidade das demarcações é o fato de temos hoje 13% de áreas no território nacional reconhecidas como terras indígenas. Isso é verdade? Apenas em parte. Pois, cerca de 8% do total de áreas regularizadas em favor dos indígenas não está em sua posse plena. Significa que muito mais do que 87% das terras que eramoriginalmente ocupadas por indígenas, permanecem em mãos não indígenas e boa parte desse percentual de terras (por razões de variadas ordens, inclusive jurídicas) jamais tornará a permitir ocupações tradicionais indígenas. Ademais, quase 99% das áreas demarcadas no Brasil concentram-se na Amazônia Legal, levando cerca de 40% da população indígena dos estados do sul, sudeste, e parte do centro-oeste e nordeste a viverem em pouco mais de 1% da superfície demarcada restante. Isso sem focar no fato de que quase a metade das terras no Brasil se concentra nas mãos de 1% da população; sem entrar no mérito do brutal processo de colonização e (des)ordenamento fundiário da Amazônia; sem discutir esbulho, grilagem, falsificação de títulos, invasões ilegais e ilegítimas (que se distinguem de ocupações, retomadas, e empates) de terras.
No do Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde a insustentável situação de confinamento territorial indígena impõe, sobretudo ao Povo Guarani Kaiowá, e provoca todos os dias consequências como a desagregação, a doença, a violência, e a morte, as terras indígenas regularizadas ocupam 1,64% da superfície total daquele estado. Ali vivem 149 indígenas por km², contra apenas 6,86 não indígenas por km². Nunca me convenci de que as demarcações de terra naquela área inviabilizam atividades produtivas ou o crescimento econômico da região. No entanto, durante minha gestão, não foi possível avançar em nenhum processo de demarcação terra indígena no Mato Grosso do Sul.
As demarcações das terras indígenas
Enfrentar a desconcentração de terras no Brasil, concretizar a reforma agrária, concluir a demarcação das terras indígenas, operar a regularização fundiária dos demais territórios tradicionais, são ações indissociáveis da promoção de justiça, da desconcentração de renda e riqueza no país. É claro que é possível estabelecer espaços de diálogo sobre a terra e sobre terras indígenas no Brasil. Mas precisamos dialogar de fato, materialmente, sobre o assunto. Isso significa ouvir verdadeiramente os indígenas, os sem terra, agricultores familiares, assentados da Reforma Agrária, os quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, e outras comunidades.
Não dá para partir sempre da abordagem da propriedade. Não dá para sentarmos na mesma mesa para ‘disputar’ a terra, caciques indígenas e empresários do agronegócio, grandes produtores de cana, soja, e gado, latifundiários respaldados e subsidiados por um forte aparato dos poderes político e econômico. A evidente assimetria de poder e forças entre os interlocutores de um espaço assim formatado, inviabiliza por completo as chances de realização (e sucesso) de diálogo. Dito em outras palavras, esse tipo de ambiente permite apenas um diálogo colonial opressor, onde quem tem instrumentos de força impõe aos fracos desarmados a sua razão, alcançando quase que invariavelmente posição vitoriosa. Portanto, se o caminho vislumbrado para tratar conflitos fundiários é o diálogo, é fundamental que se institua instâncias descoloniais de debate. Onde se discuta de forma transparente tudo o que é necessário, se busque estabelecer em consenso sobre aspectos que levem à melhor forma de garantia dos direitos envolvidos; mas que se demarque! A demarcação das terras é um dever do Estado e um direito dos povos indígenas.
Descolonizar pela promoção efetiva de direitos
Ultrapassando o aspecto fundiário, tem que se tratar da Educação, que pode ser um real indutor do processo de descolonização. É urgente uma educação descolonial. Atuar para a inclusão da óptica indígena nos processos formais de formação de estudantes indígenas e não indígenas. Como é que podemos ter escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio que ainda abordam a temática indígena sob o manto do estereótipo? Referem-se ao índio (no singular; ignorando a existência de mais de 300 diferentes Povos no país), como um ser distante que vive no meio da selva a cantar e dançar. Numa abordagem quase folclórica sobre as culturas indígenas, que apenas confirma a prevalência dessa epistemologia colonial que negligencia ou desqualifica o conhecimento indígena, desconsiderando-o como elemento cultural e científico de conhecimento.
As Universidades, como regra, ignoram o tema indígena em áreas de formação como o direito, por exemplo, formando operadores de direito que sequer tomaram conhecimento da existência de dispositivos constitucionais que versam sobre a matéria. Um país com a diversidade sociocultural do Brasil precisa de instituições de ensino superior que formem pessoas a partir da visão da diversidade. Instituições que contem com professores, cientistas, pesquisadores, interlocutores indígenas, mesmo em se tratando da educação formal de segmentos não indígenas da população. Isso é retirar os indígenas do lugar de objeto de pesquisa e leva-los ao lugar de produtores de conhecimento.
É inconcebível também, diante dos conhecimentos tradicionais indígenas e potenciais da habilidade indígena para o manejo sustentável dos recursos da biodiversidade, a inexistência de programas robustos de fomento em ciência e tecnologia ao desenvolvimento de atividades tradicionais. Seria muito enriquecedor apostar nos centros de saberes tradicionais, como espaços que permitam aos indígenas o gerir processos valorizados de transmissão e compartilhamento desses conhecimentos, a partir de métodos de aprendizagem transversais às mais diversas áreas científicas de conhecimento. Sobre esse tema, é de se lamentar, por exemplo, que o projeto que dispõe sobre acesso ao patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade tenha sido enviado ao Congresso Nacional sem que sequer tenha sido promovida a consulta aos povos indígenas.
Todas essas iniciativas, é claro, devem articular-se sem prescindir da discussão sobre o sistema próprio de educação escolar indígena, respeitando o direito ao ensino em língua indígena, a formação e contratação de professores indígenas, e a liberdade de expressão de todas as especificidades culturais de cada povo no âmbito dos processos pedagógicos.
Na Saúde, olhando para as diversas realidades indígenas de norte a sul do país, é preciso provocar as redes do Sistema Único a uma forma criativa de atenção. A saúde, como direito humano fundamental, deve sempre ser objeto de preocupação pública. Precisamos, sim, de Mais Médicos. Mas precisamos também, de mais profissionais dispostos a atuar com base num conhecimento multidisciplinar, a assumir o compromisso indigenista; profissionais vocacionados ao convívio nas aldeias, e abertos ao intercâmbio no que se refere às práticas tradicionais indígenas de cura. É preciso recuperar, nesse sentido, a ‘saúde achada na rua’ comprometida com o bem viver em seu sentido mais amplo. É fundamental a articulação e interlocução constante entre as unidades públicas de saúde e as unidades da Funai, para resgatar o sentido social de uma institucionalidade sanitária baseada em valores e princípios que contribuem com o desenvolvimento em comunidade e em sociedade, como equidade e justiça social. Na construção dessa engenharia inovadora, precisamos que o Sistema Único de Saúde internalize a preocupação com a atenção à saúde indígena, e consolide uma estrutura capaz de responder aos complexos desafios que essa tarefa impõe, no âmbito da atenção básica, mas também da média e alta complexidade, querendo sempre extrapolar os contornos da lógica da medicina ocidental convencional.
Enxergar e enfrentar a violência contra os indígenas
Outro ponto sensível e inadiável no âmbito da transformação da política indigenista pública é o enfrentamento à violência contra os indígenas. A primeira providência para tanto, é reconhecer a existência dessa violência e torna-la visível, ao invés de jogá-la para debaixo do tapete. Isso exige trabalho no sentido de reunir e processar dados, produzir informação sobre essa violência, e com base num diagnostico preciso, reagir com uma política robusta de promoção à segurança dos indígenas. A tarefa de coordenação e articulação desse arranjo é do governo federal, que deve reunir União, estados e municípios, por meio de instituições, não só ligadas à área de segurança pública, mas também de promoção de direitos, de políticas sociais de prevenção à violência.
Gestão descolonial dos territórios
A dedicação e o cuidado com os mecanismos de respeito cultural devem estar presente em todos os eixos de atuação. No investimento em fomento para a construção e recuperação de casas tradicionais, rompendo as barreiras traçadas pelos programas habitacionais convencionais, que não atendem aos indígenas com a especificidade devida; no desenvolvimento de incentivo real às atividades produtivas indígenas, aliando a preocupação na inclusão de seus produtos nas cadeias produtivas, com o respeito às particularidades decorrentes de suas organizações sociais próprias. Nesse sentido, Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas – PNGATI, construída de forma participativa com representantes indígenas – a partir de diálogos materiais – figura como instrumento mobilizador da inversão dos lugares de domínio na gestão das terras indígenas, ao conferir a cada Povo Indígena o protagonismo no planejamento e implantação do projeto de gestão de seu território. Esses planos, previstos na Política, podem ser instrumentos importantes para que as comunidades indígenas planejem e executem a organização de seus territórios, as formas de uso dos recursos naturais, as alternativas para o melhor desenvolvimento de suas atividades produtivas, a partir do paradigma da valorização cultural, da reafirmação de suas organizações próprias, e da conservação ambiental. Contudo, a PNGATI ainda representa um compêndio de diretrizes programáticas para a gestão das terras indígenas, exigindo um compromisso político mais robusto para que cooperações interinstitucionais possam tirá-la do papel e efetivá-la a partir de ações concretas em escala mais geral.
Participação indígena é indispensável
É inerente, ainda, a uma rediscussão da relação entre o Estado e os povos indígenas, a integral participação desses povos e sua consequente gama de especificidades, nos ciclos de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas. Criar mecanismos para uma participação social indígena efetiva, respeitando as especificidades de mais de 300 Povos, não é uma missão simples de ser cumprida. Mas talvez possamos começar pelo caminho mais simples, garantindo a esse segmento os espaços participativos convencionais, já institucionalizados no tratamento de grande parte das políticas sociais.
Exemplo de como o Estado brasileiro está ainda em débito para com a participação social indígena, é o fato de que apenas em 2014, foi convocada (esperamos que se concretize) a primeira conferência nacional para tratar da política indigenista, política essa que, no mesmo ano de 2014, ainda não conta com um Conselho instituído. A partir do Governo Lula, houve grande investimento na criação, ampliação, incremento, e consolidação das instâncias de participação social.
Hoje, quase todas as políticas sociais contam com Conselhos participativos, como o Conselho de Políticas para as Mulheres, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, o Conselho de Políticas LGBT, o Conselho da Criança e Adolescente, dentre outros. A política indigenista conta somente com uma Comissão Nacional, demonstrando o lugar periférico que lhe é destinado no rol das políticas sociais.
Ainda no que concerne ao tema da participação, nunca é demais frisar a necessidade de se colocar em prática o efetivo cumprimento da Convenção 169 da OIT, vigente no Brasil há mais de 10 anos. A aplicação dessa norma parece demandar a combinação e articulação de diversos arranjos que garantam o respeito à diversidade e as especificidades dos mais de 300 Povos aos quais se destina, dentre os diversos direitos ali previstos, o da consulta livre, prévia, e informada. O direito à consulta tem sido muitas vezes, desconsiderado ou transfigurado. Tida como uma ação acessória, secundária, ou até desnecessária em relação à intervenção que irá afetar o povo ou a terra indígena, a consulta, quando realizada, tem equivalido ao mero cumprimento burocrático de uma obrigação protocolar. Não dá para realizar consulta, entretanto, como a subir um inevitável (e apenas por isso observável) degrau na escada da viabilização de empreendimentos. Durante esses processos (e, também, antes e depois) o que está em questão do outro lado do abismo, são vidas de pessoas que compõem uma comunidade e um povo indígena. Vidas que serão modificadas para sempre em função dessa intervenção externa. Não dá para encarar o cenário de intervenções que afetam os indígenas como se eles fossem um empecilho, uma dificuldade, ou um fator de atraso no cronograma de um empreendimento, quando, na verdade, essa ação externa é que interrompe, modifica, dificulta, ou impede a continuidade de uma série de dinâmicas da vida cotidiana das comunidades indígenas impactadas.
Importa sempre repetir que uma efetiva política indigenista pública demanda a existência de um órgão indigenista plenamente capaz de coordená-la e implementá-la. A Funai tem dado, já há algum tempo, sinais inconfundíveis de que é necessário um real investimento para garantir a estrutura adequada ao cumprimento de sua missão institucional indigenista. Dentre outras coisas, essa estrutura depende de um orçamento e de um quadro de servidores qualitativa e quantitativamente compatível com a possibilidade de prestação de um serviço público satisfatório. É imprescindível que a atuação da Funai seja respeitada, e respaldada com apoio político-institucional. Deve lhe ser permitida a realização de seu trabalho com a finalidade de atenção integral aos indígenas, e não a partir da necessidade de viabilizar junto a esses povos, projetos, objetos e ações integrantes de agendas diversas que competem a outros órgãos públicos. Isso implica em abandonar a concepção da Funai enquanto órgão responsável pela ‘pacificação’, ‘assimilação’ e ‘integração’ dos povos indígenas aos espaços-tempos hegemônicos.
Transcender o campo da “não-relação” com os povos indígenas
O que temos assistido, no entanto, corresponde a uma não-relação de setores centrais do Governo com a pauta indigenista, que tem como causa e efeito, a um só tempo, um não-diálogo com os povos indígenas. As principais questões relacionadas aos seus direitos, os projetos de impacto em suas vidas, as formas de gestão dos territórios que lhes dizem respeito, não são, como regra, objeto de diálogos materiais – de fato. Grandes iniciativas públicas centrais à viabilização do que tem definido um projeto ‘de crescimento para o país’ têm sido planejadas e implementadas com base numa concepção monolítica de desenvolvimento.
Em 2015, contudo, terá início um novo ciclo de governo. O que se espera em relação a esse assunto, é que nos próximos quatro anos soprem ventos de coragem e determinação para que se inicie um processo de descolonização da relação com os povos indígenas no Brasil. Que, a partir de diretrizes que podem ser definidas na I Conferência Nacional de Política Indigenista, possamos levar a efeito uma política pública indigenista capaz de ouvir e fazer ouvir, de olhar e fazer olhar, verdadeiramente, os indígenas, buscando retirá-los dessa invisibilidade exclusiva e opressora e reconhecê-los como sujeitos ativos e imprescindíveis na concretização de soluções voltadas a um projeto de desenvolvimento, econômico, social, e ambiental, efetivamente sustentável.
Tudo o que aqui está dito pode parecer evidente demais para alguns. Mas conforme já disse, essa obviedade precisa ser repetidamente explicitada para que as vozes do nosso mundo se façam ouvir do outro lado do abismo.
*Maria Augusta Assirati foi presidente interina da Fundação Nacional do Índio de junho de 2013 a setembro de 2014. Esteve à frente da Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Fundação a partir do ano de 2012. Afastou-se do cargo e atualmente cursa o Programa de Doutorado Direito Justiça e Cidadania no Século XXI, no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra