Por Renato Santana, Assessoria de Comunicação – Cimi
Dificuldades no processo de licitação têm sido um dos principais argumentos utilizados pela equipe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) para demonstrar a necessidade de terceirizar o setor, criando o paraestatal Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI). Todavia, balanço do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão demonstra o contrário.
O que os defensores do projeto não dizem aos povos indígenas, sobretudo nas correntes reuniões de ‘consulta’ aos conselhos distritais de saúde sobre o INSI, é que a Sesai executou apenas 7.5% do orçamento de 2014 carimbado para a estruturação do setor – a quatro meses do final do ano. Caso o órgão não empenhe a quantia ao seu destino, o montante volta para os cofres da União.
Em cifras: dos R$ 40 milhões destinados a Estruturação de Unidades de Saúde e Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEI), a Sesai gastou apenas R$ 3 milhões. O resultado não poderia ser outro: não há recursos humanos para dar conta das licitações, inclusive para qualificar o processo, e tampouco estrutura para o atendimento básico. A defasagem, como se vê, desmonta o sistema e o coloca em colapso.
O efeito é o mesmo da falência múltipla de órgãos: sem empenhar o orçamento, os DSEIs seguem sem estrutura e recursos humanos. Por sua vez, as licitações, quando realizadas, são mal conduzidas e não contemplam a demanda. Orçamento fica sem execução. Faltam medicamentos, serviços, gente para atender gente, logística, leitos, exames, formação, prevenção.
No balanço do Ministério do Planejamento, é possível constatar ainda que dos R$ 48 milhões destinados ao saneamento básico em aldeias, apenas R$ 1,6 milhão teve execução. A falta do serviço é responsável por dezenas de mortes entre crianças de 0 a 5 anos, via de regra apresentando os mesmos sintomas: diarreia, febre e vômito. Isso quando conseguem sobreviver ao nascimento.
Enquanto na sociedade não indígena o índice de mortalidade infantil caiu de 53,7 mortes por mil nascidos vivos, em 1990, para 11,7, em 2011, conforme relatório lançado em maio pelo governo federal, entre os povos indígenas o índice, em 2013, de acordo com dados da Sesai, é de 50,1 – ou seja, semelhante ao do Brasil no início da última década do século XX.
“É uma decisão política usar esse quadro para justificar a terceirização. O que eu duvido é que eles digam aos indígenas que o orçamento da saúde indígena (pouco mais de R$ 1 bilhão) será dado para um grupo a ser nomeado depois do instituto ser criado, cujo regimento interno será feito por este mesmo grupo”, analisa um servidor do governo federal consultado pelo Cimi.
Protesto contra o INSI
Se qualquer indígena apresentar os dados acima ao secretário da Sesai, Antônio Alves, ele prontamente os usará para justificar a criação do INSI. Não se trata de força de expressão. É exatamente o que Alves tem feito. Um exemplo foi o que aconteceu esta semana em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, durante reunião do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) sobre o instituto, que teve até protesto contra a proposta.
A mesa de representantes da Sesai no encontro, grupo empenhado em convencer indígenas dos povos Terena, Guarani Kaiowá, Kadiwéu e Kinikinau a corroborar com a criação da paraestal, foi destituída sob protesto dos indígenas. Conforme lideranças presentes na ‘consulta’, os integrantes do órgão não aceitavam a negativa do Condisi ao instituto. Os ânimos se exaltaram e um protesto dos indígenas teve início.
“É uma perversidade usar a nossa desgraça de forma tão oportunista. Antônio Alves mandou mensagens para nós perguntando se queremos que a Sesai continue como está e que a nossa opinião impede a aprovação do instituto aqui no estado (MS)”, diz Lindomar Terena. O indígena informa que até os funcionários não indígenas votaram contra a proposta.
De forma taxativa os indígenas demonstraram que os argumentos de Alves não procedem. “Falta estrutura e fortalecer os profissionais. Licitação é mais um problema de gestão usado para justificar esse instituto. Não é possível aceitar”, afirma Otoniel Guarani Kaiowá. Para o indígena, a falta de execução orçamentária evidencia o problema de gestão da saúde indígena.
“Sobre todo esse dinheiro da saúde parado eles não falam nas reuniões. Falta gestão. Falta autonomia para os distritos. Não concordo com essa forma que estão construindo a proposta. Não tem transparência e tira a responsabilidade do governo. É época de política (eleições) e na minha visão isso influencia. É muito dinheiro em jogo”, analisa Otoniel.
Na reunião, os representantes da Sesai usaram a tática de pressionar à exaustão: dos 34 conselhos distritais, 19 já teriam aprovado o instituto. O Condisi Regional MS ficaria isolado. As lideranças indígenas não aceitaram o terrorismo. “Falta de recurso não é. Falta é gestão, fazer na prática. Uma vez sendo criado, o instituto vai facilitar o superfaturamento”, defende Lindomar.
Consulta inexistente
Para o movimento indígena do Mato Grosso do Sul, a consulta aos povos não existe porque, defendem as lideranças, esse projeto não pode ficar apenas no âmbito do Condisi, mas tem que passar pelas comunidades, pelos povos. O presidente do Condisi MS, Fernando Terena, declarou que o conselho acataria a decisão das lideranças quanto ao instituto. “A consulta é livre e informada. Nada disso aconteceu. Eles não disseram que executaram apenas 7.5% do orçamento”, aponta Lindomar.
Um representante da Missão Evangélica Caiuá, uma das três ONG’s que administram os recursos bilionários da saúde indígena, desafiou, durante a reunião, organizações indígenas e indigenistas a apresentar melhor proposta que a do instituto. “Eu o desafiei a passar 6 meses num acampamento indígena. O que mais me impressionou foi o entusiasmo dele pelo instituto”, diz Lindomar.
Convictos a tirar algum louro do encontro, até então fracassado na perspectiva governista, os representantes da Sesai articularam uma contraproposta. O instituto existiria de forma temporária e atrelado ao DSEI. “O governo sempre tenta confundir a gente, tirar alguma coisa, mas isso ainda não está claro e seguimos contra o instituto”, afirma Otoniel Guarani Kaiowá.
Os povos do Mato Grosso do Sul, além da posição contra o INSI, acordaram que se a proposta for encaminhada ao Congresso Nacional, o movimento indígena irá para Brasília ocupar o Legislativo. “Não vamos aceitar. Se for preciso fechamos rodovias, retomamos terras tradicionais que o governo não demarca. Eles estão jogando com as nossas vidas”, encerra Lindomar Terena.
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