Kátia Brasil, Amazônia Real
O indígena Jaminawa, José Correia da Silva, o Tonumã, nasceu na aldeia dos Patos na reserva Mamoadate, no Acre, há 59 anos. Mas desde sua infância aprendeu com os índios mais velhos os dialetos do tronco da linguístico Pano, a mesma língua falada pelos Kaxinawá, Shawãnawa e também pelos recém contatos e denominados “povo do rio Xinane”. O conhecimento da língua levou Zé Correia Tonumã, como é mais conhecido pelas lideranças indígenas, a trabalhar com os sertanistas da Funai (Fundação Nacional do Índio) nos anos 70.
Atualmente, Zé Correia Tonumã é o coordenador da Funai no município de Sena Madureira (AC). No mês passado, ele foi chamado às pressas pela Coordenação de Índios Isolados para interpretar os diálogos com o “povo do Xinane” na aldeia Simpatia. Nesta entrevista exclusiva à agência Amazônia Real, ele afirma que o “povo do Xinane” é parente dos Jaminawa (escrito também Yaminawa e que significa “gente do machado”). “Todo povo Jaminawa vem do território peruano. Do tronco Pano são do território peruano. Eles são Jaminawa. Não sei como é quando vocês topam com alguém da família, mas para mim eles fazem parte da minha família Jaminawa. É a mesma coisa de você trabalhar em Manaus e chegar nos Estados Unidos e encontrar um parente lá, não tem diferença nenhuma”, disse na entrevista.
Amazônia Real – Por que o senhor foi chamado para ser um dos intérpretes do contato com o “povo do Xinane”?
Zé Correia Tonumã – Por entender todas as línguas do tronco Pano, e por ter um trabalho nas frentes de proteção, desde que a Funai apareceu no Acre, em 1973, e me convidaram para participar do contato com os parentes (isolados) no posto da fronteira. Me disseram algumas palavras como “capiriba”, que é capivara (mamífero roedor) que os parentes falavam. Eu comprendi. Mas, primeiro, conversei com o meu povo, que é um povo grande, que vive tanto no Brasil como na Bolívia e no Peru, e falamos a mesma língua, somos Jaminawa.
Nós temos a nossa Organização Comunitária Agroextrativista Jaminawa (Ocaej), a nossa Organização do Povo Jaminawa do Rio Caeté. Nossa terra no Acre está nos municípios de Santa Rosa, Boca do Acre, Sena Madureira, Brasileia e Assis Brasil. Somos ao todo 1.300 pessoas no Brasil.
AR – O povo Jaminawa aceitou que o senhor participasse do contato?
Zé Correia Tonumã – Meu povo ficou com o pé atrás. Não é o nosso papel e, em nenhum momento, nós somos especializados em amansar índios. A gente tinha que pensar muito para não contribuir com a desgraça dos outros. Nós estamos aqui para defender os nossos parentes. Pensar primeiro se isso no futuro não vai prejudicar o nosso povo.
Pessoalmente convenci os outros que tínhamos que ir lá porque era importante. Porque as pessoas que estavam lá, por mais boa vontade que tivessem, não iam entender a língua. É a mesma coisa que um russo e um francês falando. Eles nunca iam chegar a conclusão. Então, por todo esse tempo trabalhando na Funai, eu achei importante dar minha contribuição.
AR – Quando senhor viajou para o Alto Envira?
Zé Correia Tonumã – Não estava lá no primeiro contato (dia 29 de junho) gravado em vídeo. Quando cheguei (por volta do dia 4 de julho) já tinha passado tudo isso. Fiquei primeiro dez dias. Depois retornei e fiquei mais 12 dias. Agora tem uma compreensão da língua deles. Nós descobrimos que eles pertencem à mesma raiz do nosso povo. Nossa participação está para dizer o que é ruim, o que é bom. O que pode acontecer amanhã. O que aconteceu com nós. Então essa troca é boa, é importante.
Agora, do ponto de vista do que diz a Constituição Federal, essa questão indígena não é meramente da Funai. É um direito e dever do Estado Brasileiro assistir integralmente eles em todos os parâmetros. Então, no meu ponto de vista nesse momento o Estado Brasileiro não está preparado. E a gente sente muito porque podemos perder muitos parentes ali.
AR – Quem não está preparado exatamente?
Zé Correia Tonumã – Então o que acontece é que a Funai não tem equipamento adequado, nem rádio, só tem um lá que funciona não sei como. Temos pessoas formadas, mas não são formadas na universidade indígena, é diferente. Eu acho importante quando a pessoa trabalha com a questão indígena, mas tem que ter treinamento, corretamente. Não estou dizendo que essas pessoas não são importantes, mas é preciso estar preparado para receber um pessoal.
Outra coisa, a gente não é de ninguém. Jaminawa não tem dono. Não temos que nos importar para compreender essa sociedade. A sociedade é que tem que se virar para compreender eles. Dignamente para mais tarde não dizer que os índios são invasores.
Do mesmo jeito que tem um curso para indígena aprender o português, esse pessoal tem que começar a estudar a língua dos indígenas. Se está trabalhando com índios, não está trabalhando com americanos, nem franceses e nem com espanhol. Tem que ter estudado a língua, tem que ter treinado o indigenismo e aprender as línguas.
Eu como Jaminawa se não compreendesse você, eu não estaria passando essas informações. Então acho que precisa instrumentar pessoas que têm qualidades para essa área. Também dar estrutura básica. A qualquer momento pode acontecer uma emergência na mata e não tem como chamar um helicóptero. Como chamar? Para buscar um helicóptero da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) tem que fazer um documento na semana para buscar no fim do mês. Quando for buscar, o cara estará morto.
AR – Nesses 22 dias de convivência com o “povo do Xinane” o senhor descobriu por que eles fizeram o contato com os ashaninka?
Zé Correia Tonumã – Em primeiro lugar eles vieram atrás de armamento para se defenderem. Eles vieram disposto a matar ou morrer por esta razão. Pela informação que obtive deles, morreram muitos. Morreu muito gente na bala, mas não sabemos quem foram essas pessoas que fizeram isso. Mas eles não vieram simplesmente buscar machado e teçado não, eles vieram atrás de armas para se defenderem.
AR – Quando ocorreram esses ataques com mortes?
Zé Correia Tonumã – Pela forma que eles contam deve ter acontecido há quatro, três anos. Mas na forma como eles se expressam, eles estão preocupados em viver. Eles disseram que pegaram uma arma, não sei de quem, nem onde, mas foi para se armarem.
AR – O que o senhor descobriu sobre a origem desse povo?
Zé Correia Tonumã – O que eu posso dizer é que compreendi que o povo Jaminawa conhece eles, conhece a língua. Eles são da mesma família Jaminawa, têm a mesma tradição que temos, a mesma cultura que o nosso povo tem. A única coisa que eu vejo, é que tem que ter uma equipe boa que possa fazer um bom trabalho com eles. Uma equipe que não seja da Sesai porque esse planejamento da Sesai pra mim é só mesmo para comprar caixão para enterrar índio e não é isso que queremos.
AR – A Sesai já anunciou que os índios foram vacinados, isso não é o certo?
Zé Correia Tonumã – Acho que é correto. Mas, mais cedo ou mais tarde, sem querer querendo, essa ida de profissionais, e eu me incluo no meio, nós podemos levar doenças para eles. Se não estivermos preparados, a gente pode ser a porta para o extermínio deles. Minha preocupação é com a saúde e integridade física deles. A imagem deles me preocupa também. A única coisa que esses carinhas aprenderam na vida foi pegar nossos desenhos e o nosso nome para fazer propaganda. Então, eu acho que não é importante fazer propaganda de pessoas que estão aí inocentemente, acho isso um crime.
AR – O senhor não acha que passando o verão esse povo retorna à aldeia no Peru?
Zé Correia Tonumã – Pela forma que eu vi lá e pela conversa que eu tive lá, eles não vão voltar mais para a aldeia deles. De jeito nenhum. Eles têm uma briga interna com outros povos que falam a mesma língua e que vivem ao redor. É um problema interno e grande.
AR – O senhor disse que o “povo do Xinane” tem a mesma cultura jaminawa. Como assim?
Zé Correia Tonumã – Se eu disser uma coisa você não acredita. Todo povo Jaminawa vem do território peruano. Do tronco Pano. São do território peruano. Eles são Jaminawa. Não sei como é quando vocês topam com alguém da família, mas para mim eles fazem parte da minha família Jaminawa. É a mesma coisa de você trabalhar em Manaus e chegar nos Estados Unidos e encontrar um parente lá, não tem diferença nenhuma. É por isso que estamos preocupados, porque eles não estão preparados como nós estamos. Já fomos muito violados na nossa vida e até hoje vivemos numa situação difícil.
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*A agência Amazônia Real procurou à Funai para comentar os questionamentos de José Correia Tonumã, mas segundo a assessoria de imprensa, a fundação não irá se posicionar por não ter participado dos diálogos citados com o líder Jaminawa.
No dia 14 de agosto, a presidente da Funai, Maria Augusta Assirati, participou de uma coletiva à imprensa na qual explicou as medidas tomadas com relação ao contato com o “povo de Xinane”. Ela destacou que desde a Constituição Federal de 1988 a política indigenista no Brasil é a da proteção e da promoção aos direitos dos povos indígenas, buscando a autonomia e a autodeterminação dos povos e garantindo a ocupação tradicional através da demarcação das terras pela Funai.
“A Funai tem uma larga experiência nessas situações tanto de contato que não estavam previstos quanto de proteção de grupos que optam por permanecer isolados. Essa experiência vem desde 1967, quando a fundação foi criada, e hoje conta com um grupo de profissionais altamente qualificados para fazer esse trabalho, que absorveram suas experiência muito em função dos ensinamentos de grandes sertanistas que passaram pela Funai, pessoas que dedicaram muitas vezes uma vida na convivência na floresta com povos contatados que vivem sobretudo na região da Amazônia”, disse Maria Augusta Assirati. Veja a íntegra da coletiva aqui.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Elaíze Farias.