São Paulo, 11 de Agosto de 2014
O Centro de Trabalho Indigenista (CTI), entidade da sociedade civil empenhada em defender os direitos dos povos indígenas do país, vem a público manifestar sua contrariedade em relação ao caráter tendencioso da matéria publicada na última semana no jornal Diário Catarinense, sob o título de “Terra Contestada”, que versa sobre o processo de demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, localizada no município de Palhoça/SC.
Por meio de um “especial”, dividido em cinco partes, busca-se induzir a conclusão de que as décadas de luta dos Guarani do Morro dos Cavalos pela demarcação de suas terras tradicionais seriam fruto da manipulação de “agentes externos”. Trata-se de uma visão racista e preconceituosa, por supor que os Guarani não seriam conscientes de suas próprias ações e escolhas. Alega-se que os indígenas estariam simplesmente querendo usufruir de um “desenvolvimento” que se limitaria ao acesso aos bens de consumo da sociedade ocidental, que lhes estariam sendo negados pela FUNAI ou por ONGs.
Supreendentemente, entretanto, a reportagem não se dispôs a escutar nenhum indígena que habita a Terra Indígena Morro dos Cavalos, nem mesmo a cacique da aldeia. A “versão dos indígenas” é ilustrada unicamente por Milton Moreira, que não habita o Morro dos Cavalos há anos, e cujos argumentos e posição não são sustentados por nenhum outro guarani.
Em relação às insinuações a respeito de uma suposta fraude no processo demarcatório e às menções ao CTI, cumpre esclarecer que ao contrário do que infere a reportagem, o processo de regularização da Terra Indígena Morro dos Cavalos foi e continua sendo de responsabilidade exclusiva da Fundação Nacional do Índio e da União. O Centro de Trabalho Indigenista não tem qualquer atribuição nesse processo. Enquanto organização da sociedade civil, o que nos cabe é cobrar e monitorar o Governo para que se cumpram as obrigações constitucionais de garantir os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Não obstante, não há nenhum segredo no fato de que a antropóloga Maria Inês Ladeira, que trabalha no CTI, coordenou os estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos pois foi designada oficialmente e por meio de ato público para tal função. Sua nomeação como coordenadora do grupo técnico que realizou os referidos estudos segue rigorosamente os termos do artigo 2º do Decreto nº 1775/96, que regulamenta o processo demarcatório das terras indígenas no país, e determina que é preciso antropólogo de “qualificação reconhecida” para realização desse trabalho.
A qualificação acadêmica de Maria Inês Ladeira é inquestionável, e seus trabalhos são referência fundamental para quaisquer pesquisadores que se debrucem sobre a etnologia dos povos guarani. Suas pesquisas de Mestrado e Doutorado sobre os Guarani foram realizadas em instituições de excelência, foram publicadas por editoras de ilibada reputação acadêmica, e permanecem sendo lidas e debatidas nas Universidades do país. Não há outro motivo que fundamente a sua nomeação pela FUNAI enquanto coordenadora do grupo técnico que elaborou o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos senão o de sua qualificação enquanto antropóloga especialista no povo guarani, nos termos da legislação vigente.
Por outro lado, o Diário Catarinense embasa o descrédito aos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos em um suposto laudo produzido por Edward Luz, que estaria protocolado no processo que tramita no Supremo Tribunal Federal. Da mesma maneira, o Diário Catarinense concede amplo espaço a Edward Luz para que ele destile uma série de acusações levianas contra o CTI, contra a antropóloga Maria Inês Ladeira, contra a FUNAI, e contra quaisquer órgãos ou pessoas que trabalhem pela garantia dos direitos constitucionais dos povos indígenas. Cumpre apontar que não consta dos autos da Ação Cível Originária que tramita no STF qualquer laudo, relatório, nota técnica, ou manifestação do dito antropólogo, e portanto não podemos tomar conhecimento dos seus argumentos ou sequer confirmar se o referido laudo de fato existe. Se o relatório existe, cumpriria ao Diário Catarinense apresentá-lo como fonte.
De todo modo, lembramos que Edward Luz foi formalmente desligado da Associação Brasileira de Antropologia, a principal instituição científica do país no âmbito da disciplina, pois o Conselho Diretor da Associação entendeu que a postura profissional deste senhor atenta contra Estatuto e o Código de Ética da Instituição. Não bastasse, o Sr. Edward Luz nunca publicou nenhum trabalho acadêmico sobre o povo Guarani, pelo que se poderia concluir que o dito antropólogo não apresenta a “qualificação reconhecida” – exigida, como se disse, nos termos da legislação vigente– que justifique a validade de seus argumentos ou sua veiculação acrítica, como foi feito irresponsavelmente por este periódico.
Nós, do CTI, acreditamos na justiça e na liberdade de expressão como direito fundamental, mas não podemos deixar de apontar que o jornalismo é serviço de relevância pública e não deveria ser exercido de maneira leviana e descomprometida com a verdade, como desta vez se apresenta. Infelizmente, a matéria Terra Contestada do Diário Catarinense em nada contribui para o país ao buscar construir uma imagem preconceituosa dos indígenas como “empecilho” ao desenvolvimento, jogando sombras sobre um caso que merece toda a seriedade dos poderes públicos e da sociedade para uma solução adequada, que permita o respeito aos direitos dos povos originários e a defesa do genuíno interesse público. Muito pelo contrário, mais uma vez penaliza os Guarani que já se encontram em situação de fragilidade pela morosidade no reconhecimento de seus direitos territoriais.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ana Lisboa.