“Há uma apropriação do passado dos negros pelos imigrantes não só por causa dos imigrantes, mas devido ao mito de o Rio Grande do Sul ser um estado diferenciado”, pontua o historiador
IHU On-Line – “Qual é o símbolo de que temos presença negra no Rio Grande do Sul?”, pergunta Jorge Euzébio Assumpção, na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line. A resposta é categórica: “Nenhuma. Não há nenhum símbolo que demonstre a presença negra no estado. O negro passa quase que invisível pela história do Rio Grande do Sul e essa invisibilidade faz parte do racismo sulino, ou seja, ao negar e sonegar o papel dos negros no estado, estamos praticando um ato de racismo, porque se está, inclusive, escondendo as fontes históricas”.
Autor do livro Pelotas: escravidão e charqueadas 1780-1888 (Fcm Editora, 2013), resultado da sua dissertação de mestrado, o historiador demonstra que os afrodescendentes tiveram um papel fundamental no desenvolvimento econômico do Rio Grande do Sul, o qual é atribuído majoritariamente aos imigrantes alemães, italianos e açorianos, que colonizaram o estado a partir da segunda década de 1800. “Com a criação das grandes charqueadas, a partir de 1780, houve uma introdução de negros em grande escala no Rio Grande do Sul.
Pelotas foi a cidade em que proporcionalmente houve maior número de trabalhadores escravizados no Rio Grande do Sul, e, por consequência, o maior número de negros proporcionalmente. Calcula-se que Pelotas chegou a ter mais de 70% da sua população descendente de negros escravizados ou não”. Assumpção esclarece que não está negando o valor do imigrante na história gaúcha, “mas tentando restabelecer uma ordem de dizer que não foram somente os imigrantes os responsáveis pelo desenvolvimento do Rio Grande do Sul, mas também os negros, os quais tiveram uma participação anterior à do imigrante”.
De acordo com o pesquisador, a historiografia gaúcha passou a ser revista a partir dos anos 1980, mas ainda persiste no imaginário popular a imagem do gaúcho e da formação de um estado de imigrantes. “Há todo um mito em torno do imigrante do Sul do país, e que este é o estado mais europeu da nação. Por isso, grande parte da pesquisa dos historiadores sonega a participação do negro, porque eles contribuem com esse mito de que o Rio Grande do Sul é formado por imigrantes. Isso leva, por sua vez, ao mito do gauchismo no sentido de que no Sul se teve uma formação diferenciada por conta da qualidade aventureira do gaúcho e aqui a escravidão não se fez presente”. E acrescenta: “O Rio Grande do Sul é, sim, um estado racista. Contudo, com a vinda dos imigrantes, a quantidade de negros pareceu diminuir diante da quantidade desses imigrantes que entraram no estado. Mas esse mito mantém-se até hoje”.
Jorge Euzébio Assumpção é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente é professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade Porto-Alegrense – FAPA, onde coordena o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB, e da Unisinos. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a historiografia tem abordado a atuação dos afrodescendentes no Rio Grande do Sul?
Jorge Euzébio Assumpção – De certa forma, até alguns anos atrás, essa questão não era abordada, porque para grande parte dos historiadores, os negros que viviam no Sul não haviam participado efetivamente da história do Rio Grande do Sul. A partir dos anos 1980 inicia um resgate da história da vinda dos negros para o estado e de sua importância.
Nesse meio tempo, houve uma lacuna na história, porque alguns historiadores negaram a participação do negro na história do Rio Grande do Sul, dizendo que ela aconteceu, mas foi pequena, sem tratar da dimensão que deveria, uma vez que o negro foi de fundamental importância para a conquista e a prosperidade do território sulino. Quase sempre que se fala do progresso do Sul, se atribui essa função aos imigrantes alemães e italianos e se sonega a participação da atuação dos afrodescendentes, quando se sabe que eles tiveram uma participação marcante nesse processo, porque quando da chegada dos portugueses no Sul, eles trouxeram os negros, os quais se fizeram presentes antes da oficialização do sul como território português.
IHU On-Line – O senhor menciona que a historiografia tradicional costuma associar o desenvolvimento do Rio Grande do Sul com a vinda dos imigrantes europeus, esquecendo-se dos afrodescendentes. Qual era o contexto do Sul do Brasil antes da chegada dos imigrantes e qual foi a atuação dos afrodescendentes nesse período?
Jorge Euzébio Assumpção – O Sul do país teve uma ocupação tardia porque à época havia um modelo agroexportador do Brasil para Portugal, ou seja, da colônia para a metrópole, e o Sul não fornecia as mercadorias que a metrópole queria, como cana-de-açúcar. O Rio Grande do Sul, nesse momento, foi deixado de lado, mas com as guerras de fronteira, posteriormente foi dado um destaque à região. Sendo assim, houve um interesse político militar na ocupação do Sul do país e, somente aí, os portugueses começam a se interessar pela ocupação do Rio Grande do Sul efetivamente. Quando iniciou a ocupação do Rio Grande do Sul, os negros começaram a entrar no território juntamente com os portugueses e foram fundadas algumas colônias, como a de Sacramento. Isso se deu antes da chegada dos imigrantes no Sul.
IHU On-Line – Qual foi a relação dos imigrantes com os negros que estavam no Sul do país? Eles escravizaram os negros?
Jorge Euzébio Assumpção – Sim. Embora a lei não permitisse, os imigrantes tinham escravos, sim, por conta da grande propriedade rural. Apesar de os imigrantes não terem vindo para o Sul com uma grande propriedade rural, mesmo assim, eles precisavam da mão de obra.
Então, em menor escala, escravizaram, sim. Há, inclusive, documentos que mostram que os colonos de São Leopoldo tinham escravos. Nesse sentido, o imigrante vai fazer parte desse contexto escravista, muito embora ele venha para ocupar a pequena propriedade rural.
Houve um estímulo no Sul para a ocupação de terras. Agora, esse mesmo estímulo dado ao imigrante não foi oferecido para o negro, porque a mão de obra do negro era barata.
Portanto, quando se precisava de trabalhadores, pegava-se o negro, mas como também era necessária uma ocupação do território, chamou-se o imigrante, porque nada melhor do que a pigmentação da pele para diferenciar os inferiores, ou seja, o negro enquanto escravo.
IHU On-Line – Qual era o contexto histórico, social e político de Pelotas em 1814? Por que a cidade foi o grande centro afro-brasileiro da província e como se dava a relação entre afrodescendentes e não afrodescendentes?
Jorge Euzébio Assumpção – O Sul do país, diferente do resto do país, tem um foco na produção interna, e não externa. Assim, produzia produtos que alimentavam o mercado interno, como o charque a partir do gado. Antes, essa produção era feita no Ceará, mas com a seca, José Pinto Martins, um cearense, mudou-se para o Sul e instalou a primeira grande charqueada em Pelotas, no Rio Grande do Sul, porque a lagoa favorecia o escoamento da mercadoria. Embora o charque já fosse produzido no estado, com José Pinto Martins iniciou-se a produção em grande escala, a qual favoreceu o crescimento e o desenvolvimento de Pelotas. O charque trouxe a riqueza para a cidade, tornando-a a grande cidade do Rio Grande do Sul no século XIX, sendo mais importante que Porto Alegre. As companhias de teatro, antes de apresentarem as peças em Porto Alegre, as apresentavam em Pelotas. Então, o desenvolvimento de Pelotas se deu através da mão de obra escrava, por conta da produção de charque.
IHU On-Line – Nessa época o número de escravos era maior do que a população em geral da cidade?
Jorge Euzébio Assumpção – O charque deu condições para que entrasse no Rio Grande do Sul uma quantidade grande de negros escravos. Até então havia uma pequena, mas significativa, entrada de negros no estado. Mas com a criação das grandes charqueadas, a partir de 1780, houve uma introdução de negros em grande escala no Rio Grande do Sul.
Pelotas foi a cidade em que proporcionalmente houve maior número de trabalhadores escravizados no Rio Grande do Sul, e, por consequência, o maior número de negros proporcionalmente. Calcula-se que Pelotas chegou a ter mais de 70% da sua população descendente de negros escravizados ou não, porque nem todo negro era escravo. Já nessa época, no século XIX, o censo de 1914 demonstra um número significativo de negros não escravos. Mas não é pelo fato de esses negros não serem escravos que eles tiveram uma vida semelhante à do homem branco trabalhador.
IHU On-Line – Os negros não escravos tinham escravos?
Jorge Euzébio Assumpção – Muito poucos, porque quase sempre quando um negro comprava um escravo, o fazia para poder comprar a sua carta de alforria. Era aceitável, à época, que o negro fizesse pequenos “bicos” e, através deles, acumulava uma certa quantidade de riqueza e com ela comprava um escravo para que ele ficasse livre. Mas o número de negros que possuíam escravos era muito reduzido.
IHU On-Line – É possível estimar quantos escravos havia em Pelotas trabalhando nas charqueadas entre 1780 e 1888?
Jorge Euzébio Assumpção – O censo de 1814 mostra que havia 32.300 pessoas residindo na cidade. Dessas, 8.655 eram indígenas, 5.399, homens livres, e 20.611 eram escravos. Se somarmos os indígenas, os livres negros e os recém-nascidos descendentes de negros, é possível verificar uma população significativa de escravos. Se esses escravos somavam esse percentual, mostra-se que eles não foram insignificantes como alguns historiadores fazem parecer.
IHU On-Line – Há um discurso de que o Rio Grande do Sul é o estado mais racista do Brasil. Esse discurso está atrelado a essa sonegação de informações acerca do papel dos negros no estado? Em outros estados, como Minas Gerais, houve bastante trabalho escravo, mas isso é visível na memória de Ouro Preto, por exemplo. Por que o mesmo não ocorre no Rio Grande do Sul?
Jorge Euzébio Assumpção – Quando eu vou para outros estados e digo que sou do Rio Grande do Sul, as pessoas não acreditam, porque o imaginário que se tem é que no Sul só existem pessoas brancas. Há todo um mito em torno do imigrante do Sul do país, e que este é o estado mais europeu da nação. Por isso, grande parte da pesquisa dos historiadores sonega a participação do negro, porque eles contribuem com esse mito de que o Rio Grande do Sul é formado por imigrantes. Isso leva, por sua vez, ao mito do gauchismo no sentido de que no Sul se teve uma formação diferenciada por conta da qualidade aventureira do gaúcho e aqui a escravidão não se fez presente. O Rio Grande do Sul é, sim, um estado racista.
Contudo, com a vinda dos imigrantes, a quantidade de negros pareceu diminuir diante da quantidade desses imigrantes que entraram no estado. E esse mito mantém-se até hoje.
Qual é o símbolo de que temos presença negra no Rio Grande do Sul? Nenhuma. Não há nenhum símbolo que demonstre a presença negra no estado. O negro passa quase que invisível pela história do Rio Grande do Sul e essa invisibilidade faz parte do racismo sulino, ou seja, ao negar e sonegar, estamos praticando um ato de racismo, porque se está, inclusive, escondendo as fontes históricas.
IHU On-Line – Trata-se de um racismo no sentido de sonegar a informação do papel do negro no desenvolvimento do estado?
Jorge Euzébio Assumpção – Sonegar essa informação é uma forma de ser racista no sentido de que não se dá o mérito às pessoas, ou seja, aos negros, pelo desenvolvimento do estado. Esse processo está dentro da nossa história e de todo o “romanceamento” da história do Rio Grande do Sul, a qual foi contada de uma maneira mitológica pelos historiadores. Dentro desse contexto, não pode haver a escravidão, porque a partir do momento em que se diz que no estado teve escravo e que ele foi fundamental para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul, se nega o mito do gauchismo. Não estou negando que se dê valor ao imigrante, deve-se dar, mas tentando restabelecer uma ordem de dizer que não foram somente os imigrantes os responsáveis pelo desenvolvimento do Rio Grande do Sul, mas também os negros, os quais tiveram uma participação anterior à do imigrante.
Na casa da Feitoria, em São Leopoldo, os negros faziam linho cânhamo, mas hoje essa é considerada a casa do imigrante. Há, portanto, uma apropriação do passado dos negros pelos imigrantes não só por causa dos imigrantes, mas devido ao mito de o Rio Grande do Sul ser um estado diferenciado. Estamos tentando mostrar que o Rio Grande do Sul não é um estado diferenciado; ele tem os mesmos componentes que teve o restante do Brasil à época.
IHU On-Line – A sua pesquisa trata da escravidão nas charqueadas de Pelotas, no Rio Grande do Sul, entre 1780 e 1888. O que a sua pesquisa aponta sobre a escravidão no extremo sul do Rio Grande do Sul, especialmente nas charqueadas?
Jorge Euzébio Assumpção – As charqueadas eram ambientes insalubres e nenhum homem livre queria trabalhar nelas. Historiadores da época as narram como lugares sujos, onde se matava o boi, onde havia sangue e vinham as aves; era um local totalmente anti-higiênico.
Não havendo homens livres para trabalhar nas charqueadas, os negros foram obrigados a trabalhar nelas e foram submetidos a um regime monstruoso, porque eles trabalhavam com faca, e o escravo armado representava risco. Ocorreu, portanto, uma grande vigilância sobre eles, e não raro houve escravos matando e dando facadas nos capatazes e tentando matar os senhores. A violência nas charqueadas era muito grande, porque o tratamento dado aos negros era cruel. Tanto é que Auguste de Saint-Hilaire relata que nunca viu alguém ser tão maltratado como eram os escravos nas charqueadas.
Essa relação entre senhor e escravo foi marcada pela violência. O negro nunca se submeteu à escravidão e, portanto, partia para o confronto, o qual nem sempre era aberto, porque as condições não eram favoráveis a ele. Assim, a fuga foi a manifestação mais direta dessa resistência. Entretanto, ainda não se tem, estatisticamente, o número de negros que fugiram do trabalho escravo. Vários desses negros que fugiram do trabalho escravo, nos momentos de conflito, como a Guerra dos Farrapos, foram para estados vizinhos, como o Uruguai, onde eles se alistavam no exército.
IHU On-Line – No Uruguai havia outra consciência em relação aos negros?
Jorge Euzébio Assumpção – Sim, porque no Uruguai a abolição dos escravos se deu muito antes do que no Brasil. Chegando lá, os negros iam para o exército uruguaio, tanto que o exército de Artigas era composto basicamente por negros fugidos. Os Farrapos foram, muitas vezes, ao Uruguai buscar os escravos fugidos. Além disso, a ida dos negros para o Uruguai causava medo aos senhores, porque eles temiam que os negros voltassem para atacar suas terras. Esse foi um dos motivos pelos quais foi dada a alforria aos nascidos negros.
Grande parte do exército dos Farrapos era composta por negros. Esse é outro fato ignorado pela historiografia gaúcha. Esses negros foram para a guerra com a promessa de, depois, serem libertos. Contudo, com o acordo de paz entre o Império e os Farrapos, não se soube o que fazer com os negros, porque o império não aceitava que fosse dada a liberdade aos escravos. Sendo assim, foi feito um acordo entre os Farrapos e o Império, no qual o Barão de Caxias e David Canabarro tramaram o assassinato dos negros: Canabarro desarmou os negros e avisou Caxias, que então os atacou. O acampamento Farrapos não era um acampamento onde todos ficavam juntos: índios, negros e brancos ficavam divididos cada um no seu grupo. Nem ali existiu uma democracia racial. Quando Caxias mandou atacar o grupo dos negros, ele ressaltou que era para atacar os negros e poupar a vida dos índios e dos brancos, “pois essa pobre gente poderia ser útil algum dia”. Essa foi a chamada traição de Porongos, que até hoje é discutida. Os tradicionalistas não aceitam essa discussão, porque toca na imagem de Canabarro, que é um dos ícones deles.
Mas esse fato está documentado e os documentos provam que os negros foram assassinados. Após esse episódio, foi assinada a paz, mas a escravidão permaneceu no Rio Grande do Sul. Portanto, os negros que lutaram com os Farrapos e não foram mortos, foram vendidos como escravos. Esse é outro mito de que os Farrapos queriam a libertação dos escravos. No anteprojeto de constituição elaborado pelos Farrapos, constava a permanência da escravidão. Portanto, nós construímos uma história cheia de mitos e romances, e é difícil ir contra eles, porque já estão enraizados na cultura gaúcha.
IHU On-Line – A que o senhor atribui o fato de cidades como Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeirinha, Pelotas e Piratini serem as principais cidades escravistas no Rio Grande do Sul em 1814?
Jorge Euzébio Assumpção – Porque esses eram os grandes centros urbanos. Nas principais cidades gaúchas havia grande concentração de escravos e eram eles que faziam tudo. Porto Alegre é uma cidade negra. O trabalho braçal de lavar roupa, pegar água no arroio Dilúvio, era feito pelos negros. Os senhores não faziam essas atividades. Embora Porto Alegre tivesse um comércio forte, havia uso de mão de obra escrava, porque quem trabalhava no século XIX eram os escravos. Em todo o Brasil foi assim.
IHU On-Line – No Rio Grande do Sul não há marcas visíveis do trabalho escravo, como as senzalas, preservadas em outros estados brasileiros. Como se dava a relação entre escravos e proprietários de terra?
Jorge Euzébio Assumpção – No Rio Grande do Sul, os proprietários de terras não tinham um número grande escravos como havia em outras regiões, porque a atividade desenvolvida aqui fazia com que menos escravos fossem necessários. Então, enquanto nas plantações de café de Minas Gerais havia mais de 150 escravos por fazenda, no Rio Grande do Sul não havia essa necessidade. As estâncias gaúchas eram marcadas por territórios enormes de terra, mas a demanda de trabalho não requeria um grande número de escravos. Entretanto, quase todas as famílias tinham um ou dois escravos, que moravam na casa da família ou fora dela. As senzalas existiam onde ha via grande concentração de escravos. Nos casos contrários, os escravos moravam em casinhas menores, nos fundos das casas dos senhores ou com eles.
Além disso, no Rio Grande do Sul nunca houve uma preocupação em preservar os vestígios de mão de obra escrava; eles foram apagados ao longo dos anos. Se o Rio Grande do Sul diz que não teve escravos, como se poderiam preservar as senzalas que mostram a presença física dos escravos? Essa informação foi sonegada, enquanto em outros estados houve uma conscientização de preservação histórica.
IHU On-Line – Como ocorreu o processo de abolição no Rio Grande do Sul?
Jorge Euzébio Assumpção – Vamos tratar do mito da abolição dos escravos no Rio Grande do Sul. Os livros de história dizem que a abolição se deu antes da assinatura da Lei Áurea, ou seja, que em 1884 os escravos foram libertos. Isso é uma grande farsa. O que houve naquele ano foi uma campanha de abolição, mas os proprietários de terras no Rio Grande do Sul, tentando manter a escravidão e, por outro lado, sentindo a pressão fortíssima dos escravos, “libertaram” os negros dando a eles uma carta com cláusula de prestação de serviço, ou seja, a libertação era dada ao escravo com a condição de ele trabalhar para o senhor até a morte deste, ou então por alguns anos. Essa medida teve um impacto grande e desde então se disse que no Rio Grande do Sul a escravidão acabou antes de 1888. Mas quase todas as cartas dadas em 1884 eram prestação de serviços.
Os historiadores demarcaram, portanto, o fim da escravidão no estado nessa época, o que não aconteceu, porque as cartas de alforria poderiam ser revogadas pelos senhores a qualquer momento e, além disso, eram os senhores que ficavam com as cartas. Portanto, a abolição de 1884 foi uma falsa abolição, diferente do que aconteceu no Ceará e no Amazonas, onde os escravos foram libertos em 1884. Essa foi uma forma de acalmar os negros mediante as pressões internas e externas e o número de negros que estava resistindo com maior intensidade. Foi um momento tenso e, para aliviar a tensão, os senhores fizeram esse grande jogo com os escravos.
IHU On-Line – Há marcas vivas da escravidão no Rio Grande do Sul?
Jorge Euzébio Assumpção – Em Pelotas, por exemplo, quase todos os grandes prédios foram construídos por escravos, ou seja, tudo que foi construído no século XIX teve participação deles. Agora, essa marca não está visível, mas se procurarmos na documentação quem eram os pedreiros, carpinteiros, veremos que todos eles foram escravos. As cercas de pedras que existem no interior do estado também foram feitas pelos escravos. Então, a mão de obra escrava está marcada na construção de Pelotas, Porto Alegre e dos grandes centros urbanos da época. A documentação prova isso e não temos como sonegar essa informação, apesar de termos poucas marcas visíveis.