Mais combustível na luta em Belo Monte, por Claret Fernandes*

*para Combate Racismo Ambiental

A terça-feira (27) no Xingu foi muito movimentada e especialmente grande, desde duas da madrugada até onze horas da noite. Famílias atingidas por Belo Monte, organizadas no MAB, fecharam a rodovia que dá acesso ao canteiro de obras da barragem, no mesmo local onde já haviam trancado no dia treze de março.

A solidariedade é visível durante a mobilização: a maioria dos transeuntes apoia a luta, sinal de que Belo Monte se torna cada vez menos palatável. Até empresários locais que chegaram a imaginar novas oportunidades de negócios já perderam a ilusão.

Dois jovens passam pela estrada, veem o povo, vão à rua e compram pão. Pouco em quantidade, mas muito no simbolismo.

Um leiteiro, que faz entrega de casa em casa, vai com duas latas na garupa da moto e, também, passa um pouco de leite para os manifestantes. Militantes e simpatizantes se colocam nas diversas tarefas, tudo pela Causa, no nível de consciência que aos poucos vai crescendo, desde as tarefas de segurança, preparação de alimento, até a condução política de um processo de luta.

Nenhuma dessas tarefas é simples! E todas são importantes e necessárias na conquista do direito e da consciência liberta.

A indignação, também, cresce cada vez mais. A Norte Energia, enquanto empresa privada, trata o direito como um negócio, e isso é um desastre para os atingidos, para os operários da obra e para toda a região de implantação da barragem.

Setores do governo, alguns discretamente outros de forma aberta, começam a fazer o ‘mea culpa’. Eles confiaram demais no Capital, como se não fosse o eterno inimigo do trabalho e da classe trabalhadora, e agora, um pouco tarde, percebem que perderam o controle.  A hidrelétrica ainda não é fato consumado, mas está bem adiantada, com mais de 50% já construída.

Se é que havia alguma esperança de que Belo Monte fosse um bom exemplo para outras barragens, que desejam seguir construindo, isso cai por terra. O PDRS Xingu, tão badalado, não passa de um entretenimento para desviar a atenção do foco, da questão central.

Essa visão financista no tratamento dos bens naturais, das pessoas e do trabalho explica, em parte, por que as casinhas de concreto no Jatobá são muito ruins e muito caras; de acordo com matéria publicada no Valor Econômico, elas ficariam 20% mais caras do que as casas de alvenaria que o povo desejava. Não se sabe ao certo o valor, pois essas informações são guardadas a sete chaves.

Essa mesma visão financista explica por que direitos dos atingidos em todo o Brasil, conquistados na luta, estão sofrendo retrocesso. Ela mostra, ainda, por que o governo tem tanta dificuldade de assinar a Política Nacional dos Atingidos por Barragens – PNAB.

Além da indignação com a Norte Energia, principalmente quando os ânimos se aquecem durante a manifestação, as famílias ficam revoltadas com um caminhoneiro, cujo comportamento chega às raias da loucura.

Ele simplesmente vai e passa por cima da barricada, morro abaixo, pela parte da manhã. Pela tarde, corre boato de que voltaria, mas ninguém acredita. Isso seria impossível! Mas enquanto a coordenação está reunida, no canto direito da rodovia, ouve-se um barulho, como um estrondo, e lá aponta o caminhão doido. O motor acelera forte e o caminhão, agora morro acima, pula e cambaleia para um lado e para outro, quase despejando o combustível em grandes galões que traz na carroçaria. A barricada de madeira fica moída no chão. Rasgam-se faixas do Movimento. Por pouco não acidenta uma criança.

Após saltar o obstáculo, como se fora um esporte de azar, vai serpenteando por entre os carros engarrafados, numa enorme fila, seguido por manifestantes, mas em vão. Não havia um policial sequer para detê-lo ou pelo menos para anotar a placa do caminhão.

Policial é sempre uma presença ambígua nas manifestações. Chegam e dizem que estão para proteger o povo, mas na hora H não o fazem. Ao contrário, às vezes. Um deles foi visto, por exemplo, insuflando caminhoneiros contra manifestantes supostamente por estar aborrecido com o que chamou de quebra de acordo.

No dia 26, à noite, policiais chegaram atirando num pequeno grupo do bairro Colina, Altamira, que iniciava manifestação na rodovia por causa do abandono em que as famílias do bairro se encontram. Uma atitude covarde!

Doentes, idosos e os indígenas, esses últimos mobilizados desde o dia 22 de maio, têm passe-livre na Manifestação. Chegam à Segurança e são imediatamente liberados, ajudando a abrir-lhes caminho.

É claro que quando as pessoas notam que doentes e idosos podem seguir, o número de doentes, principalmente, fica inflacionado.

Ambulâncias e carros da Secretaria de Saúde de Vitória do Xingu, município-sede de Belo Monte, que tem arrecadado até 10 milhões de reais/mês apenas com ISS, e com um acampamento de pelo menos 800 famílias, transitam para um lado e para outro o dia todo. No carro de uma doente, vão cinco ou mais pessoas sadias. É preciso jogo de cintura da Segurança para separar os necessitados dos que querem furar o bloqueio. Não é simples, e um passo fora pode gerar um conflito.

Mas ah se arrependimento matasse, a Norte Energia e setores reacionários do governo já teriam morrido. Eles vieram doando um conjunto de bugigangas aos indígenas, desde antes do início da construção da barragem até hoje, com o claro objetivo de cooptá-los. Por muito tempo pareceu a muitos, realmente, que a tática estava funcionando. Houve até quem já desse os indígenas por vendidos e derrotados, de boca calada.

Entre as bugigangas, porém, como roupas de grife, cestas básicas com enlatados, talvez por desatenção, foram doados voadeiras e carros que, agora, são usados como instrumentos de luta. É um belo aprendizado!

Os indígenas passaram quase uma dezena de vezes no local da manifestação, de Moto, de Hillux, de Kombi, carregando pessoas ou apetrechos, dando suporte ao fechamento do canteiro de obras, no Km 27, e solidarizando-se com as famílias organizadas no MAB em luta, trancando a estrada.

Não há dúvida de que a Norte Energia e governo quiseram e querem comprar os indígenas, com a tática do espelho, a mesma lá do início da colonização do Brasil. É muito mais que Belo Monte em jogo. Existe o Complexo Belo Monte no Xingu, existe Tapajós, existem as outras barragens e as áreas de mineração, praticamente todas mexem com os indígenas.

Pensando a partir da história, e dos percalços  na implantação de Belo Monte, é precipitado e equivocado dizer que os indígenas se venderam. O espelho quebrou.

Há quem confunda o legítimo direito de melhorar de vida com cooptação. Quem se vende fecha os olhos e a boca. E quem não se vende usa cada conquista para fazer avançar a luta. A diferença entre cooptados e não cooptados não está no que conquista ou deixa de conquistar com o respeito que consegue impor, mas o que faz com aquilo que conquista.

Definitivamente, os povos do Xingu não estão cooptados. E quando sentirem que o que perderam ainda é muito mais, que seu direito é muito maior, que podem ser sujeitos da soberania do Brasil, e que são historicamente usurpados desse direito, sua indignação só vai aumentar.

Há dois elementos que quando se juntam são inflamáveis: a indignação com consciência e a melhora do nível e vida. A tese do quanto pior melhor é uma farsa. Consciência com melhora real do nível de vida é força de luta. Migalhas conquistadas se transformam na vontade de ter o pão inteiro para socializá-lo com todas.

Um dos pontos de reivindicação dos indígenas é combustível por trinta e cinco anos, o que, inicialmente, causa estranheza. Mas quem reflete percebe um raciocínio lógico e sábio perpassando essa reivindicação. Trinta e cinco anos significam, exatamente, o tempo de concessão de Belo Monte. A reivindicação é, portanto, uma espécie de participação no lucro de Belo Monte, ainda que ínfima.

Além disso, combustível significa mobilidade para quem já tem carros, motos e voadeiras. E dinheiro vivo, pois pode ser trocado.

É um conjunto de contradições que se colocam. Norte Energia e Governo propositalmente estraçalham as aldeias para quebrar-lhes a força, mas, nessa refrega, alguns grupos indígenas ficam fortalecidos.  São violentados, mas não são coitadinhos!

Os Muduruku no Tapajós, que também possuem mais que o simbolismo das flechas, e um povo numeroso, são agredidos, mas não são coitadinhos!

Ser vítima não é suficiente quando o capital resolve avançar, é importante ser sujeito com todos os instrumentos que possa ter disponíveis à mão.

Mas a contradição é mesmo grande e profunda. A cabeça de muita gente séria vai a mil, pois os indígenas não são mais os mesmos, em todo sentido. A degradação deles provocada pela agressão do Capital é palpável. E a Norte Energia junto com os governos têm grande responsabilidade nisso! Quantos perambulam hoje pelas ruas de Altamira, como mendigos. Quantos deles precisam sujeitar-se àquele ambiente lastimável da chamada Casa do índio. Nesse contexto, a declaração de Lobão de que Belo Monte não molesta nenhum índio soa como cinismo arrogante.

No final das contas, porém, parece que os indígenas, nativos dessas terras, colocam um elemento importante nessa nova conjuntura, que lhes é imposta. Há que se superar o senso comum, alimentado de preconceito e de ideias fixas, como do índio estereotipado, para percebê-lo nessa nova dinâmica. Diante do risco real de extinção, e numa correlação de forças desfavorável, eles reagem, transformando voadeiras, motos, carros e combustível em força de luta.

Importante notar que não quebram as flechas nem seu simbolismo. Importante perceber que continuam caracterizados de guerreiros, e não abrem mão de sua concepção de mundo, da Pachamama. Mas é essencial enxergar que aprendem a manusear outras ferramentas no enfrentamento ao Capital.

Jean-Paul Sartre, filósofo existencialista francês, afirma: ‘o importante não é aquilo que fazem de nós, o importante é o que nós mesmos fazemos com o que fazem de nós’. Ainda que certamente não o tenham lido, os indígenas e demais lutadores aprendem a lição.

As lutadoras e lutadores têm razão quando teimam em construir o que parece impossível. A luta abre caminhos onde as portas estavam fechadas.

O que se espreme demais sai entre os dedos. A promessa de troca de Belo Monte por políticas públicas, com garantia de direitos individuais e coletivos, não se cumpre. Os donos da obra e seus gerentes foram com muita sede ao pode, e Belo Monte, que seria para abrir a porta de uma nova Era de construção de  barragens na Amazônia, pode tornar-se uma portinhola ridícula. E não cumprir o seu papel.

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