Henrique Alves simplesmente ignorou que é seu dever e de todos os demais deputados promover a defesa do interesse público, respeitar e cumprir a Constituição, zelar pelo prestígio, aprimoramento e valorização das instituições democráticas. Confira artigo de Flávia Camargo, agrônoma e assessora do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA
Com o arquivamento, na semana passada, da representação contra o deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), o presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), perdeu a oportunidade de demonstrar que a ética é questão relevante na condução dos trabalhos legislativos. A representação tinha como objetivo o afastamento de Quintão da relatoria do novo marco legal da mineração, tendo em vista que parte da sua campanha eleitoral foi financiada por cinco empresas do setor mineral.
A resposta de Alves afirma que o novo marco da mineração [PL 37/2011 e seus apensos] trata “da definição dos contornos legais da atividade de mineração, isto é, estabelecem um conjunto de regras gerais, aplicáveis indistintamente a todas as empresas que atuam no setor, razão pela qual não se está diante de matéria que disponha sobre ‘interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento’ da campanha eleitoral do parlamentar requerido”.
De acordo com essa interpretação do presidente da Câmara, portanto, o decoro parlamentar só teria sido atacado se Leonardo Quintão tivesse sido financiado por todas as empresas de mineração ou se o referido projeto de lei fosse restrito a matéria que afetasse tão somente as empresas que financiaram o deputado. Tanto um caso como o outro são bem difíceis de serem imaginados, ou seja, com essa interpretação, o inciso VIII do artigo 5º do Código de Ética da Câmara, que serviu de base para a representação, torna-se letra morta.
Ao tomar sua decisão, Alves esqueceu-se do art. 3º do Código de Ética, que trata dos deveres fundamentais dos deputados. O presidente da Câmara simplesmente ignorou que é seu dever e de todos os demais deputados promover a defesa do interesse público, respeitar e cumprir a Constituição, zelar pelo prestígio, aprimoramento e valorização das instituições democráticas e representativas e examinar todas as proposições submeti¬das a sua apreciação e voto sob a ótica do interesse público.
A Constituição Federal prevê os princípios da impessoalidade e da moralidade no trato da coisa pública. A observância a esses princípios é fundamental para a defesa do interesse público, de forma a garantir que os interesses e necessidades da sociedade como um todo não sejam subjugados aos interesses privados.
O tão esquecido interesse público é o cerne da representação que cidadãos e entidades da sociedade civil apresentaram há duas semanas contra Leonardo Quintão. Qual a probabilidade de um deputado financiado por cinco empresas de mineração defender o interesse público em sua relatoria? Mesmo que possa existir alguma probabilidade, dificilmente o fará com a isenção necessária.
No caso de Quintão, a resposta já foi dada. A probabilidade é praticamente nula. Ele já declarou em audiência pública que defende o setor mineral (assista aqui). Se ele defende abertamente o setor mineral, podemos fazer alguns questionamentos ao presidente da Câmara. Como o deputado Quintão poderá promover a defesa do interesse público nesse caso? Como ficam os interesses dos demais setores afetados pelo projeto de lei e que são muitas vezes conflitantes com os interesses das empresas mineradoras? Não estaríamos por acaso diante de um conflito ético?
O substitutivo do novo Código da Mineração, apresentado por Quintão, demonstra claramente a prioridade dada aos interesses do setor mineral em detrimento de outros. De acordo com o artigo 109 do projeto, a criação de qualquer atividade que tenha potencial de criar impedimento à atividade mineradora dependerá de prévia anuência da Agência Nacional de Mineração. Dessa forma, a criação de novas unidades de conservação e o reconhecimento de territórios quilombolas, por exemplo, ficariam condicionados aos interesses do setor mineral. Onde está a razoabilidade desse tipo de proposição?
No que se refere à repartição da Compensação Financeira pela Exploração Mineral, o substitutivo determina que apenas 2% do valor repassado à União será direcionado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), ou seja, apenas uma ínfima parte será destinada ao órgão federal responsável pela gestão ambiental. Os outros 98% do valor repassado à União será repassado à Agência Nacional de Mineração, ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e ao Centro de Tecnologia Mineral. Quase a totalidade dos recursos transferidos à União, portanto, vai para instituições que promovem o desenvolvimento do setor mineral. Onde está a ética numa proposição como essa, que reverte uma taxa de compensação por atividade econômica causadora de impactos ambientais e sociais em benefício do próprio setor explorador da referida atividade?
Seria de grande valia se o presidente da Câmara pudesse responder a todos esses questionamentos e pudesse esclarecer os fatos que o motivaram a arquivar a representação. A atuação de Henrique Alves torna uma parte do Código de Ética sem efetividade. Essa conduta está na contramão das necessidades da nossa democracia, que precisa urgentemente resgatar a ética e trazê-la para o cotidiano das atividades políticas.
No momento da sua posse, cada um dos deputados teve de ratificar a seguinte declaração proferida pelo presidente da Câmara: “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. O cumprimento dessa promessa implica o respeito aos preceitos éticos, e não manobras políticas para garantir a defesa de interesses privados dos financiadores de campanha.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Janete Melo.