Moderno e Indígena: um olhar para os índios contemporâneos pelas lentes de Artur Tixiliski

Indios se vestem em roupas tipicas para efetuar rituais de danca e reza. Essa e uma das areas onde a tradicao milenar Guarani ainda e mantida viva e passada aos mais jovens. Foto: Artur Tixiliski
Indios se vestem em roupas tipicas para efetuar rituais de danca e reza. Essa e uma das areas onde a tradicao milenar Guarani ainda e mantida viva e passada aos mais jovens. Foto: Artur Tixiliski

Por Laura Frutos, em Causas Perdidas

A imagem que de forma geral guarda a sociedade sobre os índios que habitam o país é, como qualquer visão estereotipada, um grande conjunto de clichês. Índios andam nus, usam ‘mim’ no lugar de ‘eu’, são ingênuos e não têm acesso à tecnologia. O problema é que essa visão estereotipada, que carrega bem mais equívocos do que os listados aqui, tem servido como critério para leigos definirem o quedeve ser um índio. Qualquer indivíduo indígena que fuja da imagem pré-concebida pela sociedade, é acusado de ter “perdido suas raízes” – como se fossemos, nós, homens brancos, quem tivéssemos o poder e o direito de definir o que são as raízes de um outro povo. Autodeterminação dos povos1? Ninguém nunca ouviu falar.

Pouca gente ouviu falar deles, mas os indígenas contemporâneos estão em toda parte. Você sabia, por exemplo, que a cidade de São Paulo tem a maior população indígena do país vivendo em região urbana? Você sabia que há aldeias hoje em dia duramente cavadas e sufocadas dentro das cidades? Pois é, nem todo índio mora na Amazônia. Segundo o CENSO do IBGE de 2010, 324 mil indígenas (o que significa 36% do total) vivem em áreas urbanas. São Paulo, a grande metrópole, é a quarta cidade com maior população indígena do país em números absolutos. São 12.977 índios vivendo na selva de pedra. Está surpreso?

O espanto causado por esses dados dá a dimensão do quanto desconhecemos sobre os índios de hoje. Não, eles não são mais aqueles homens de tanga trocando hospitalidade por espelhinhos – se é que um dia foram só isso. Nesse sentido, um projeto encabeçado por Artur Tixiliski, fotógrafo brasileiro radicado na Inglaterra, é uma das poucas necessárias iniciativas de levar a público a vida do índio moderno no Brasil.

O projeto se chama “Moderno e Indígena” e procura retratar por meio de fotos e documentários a vida do índio moderno que vive em áreas urbanas do país. Há dois principais motivos para que esses índios vivam em áreas urbanas. Um deles é a migração dos territórios tradicionais em busca de melhores condições de vida na cidade. Outra situação é quando os limites das cidades alcançam as fronteiras de seus territórios, que anteriormente ficavam afastados desses limites.

O documentário piloto de Tixiliski, filmado na Aldeia Tekoha Y´Hovy2, localizada no município de Guaíra-PR, trata de uma situação diferente. São indígenas que vivem em assentamentos em terras ocupadas, na esperança de recuperar legalmente a posse de seus territórios tradicionais por meio da demarcação. Este é o primeiro de uma série de materiais que o autor pretende produzir sobre o tema.

Artur, 27 anos, nasceu em Curitiba, mas sua família materna vive em Guaíra, região que viu a questão indígena se transformar em matéria de disputa violenta nos últimos anos. Atualmente, está se graduando em Fotojornalismo pela Universidade de Falmouth, Inglaterra, país onde vive há 11 anos.

Paulina, vice cacique da aldeia e tambem encarregada de dar aula de Guarani para os jovens da aldeia. Junto com Ilson, ela tambem e muito participativa nas reunioes sobre as causas de demarcacao de terra. Ambos sofrem som atentado de morte por serem muito ativos a causa de insercao social. Foto: Artur Tixiliski
Paulina, vice cacique da aldeia e tambem encarregada de dar aula de Guarani para os jovens da aldeia. Junto com Ilson, ela tambem e muito participativa nas reunioes sobre as causas de demarcacao de terra. Ambos sofrem som atentado de morte por serem muito ativos a causa de insercao social. Foto: Artur Tixiliski

A história de Artur com a fotografia nos revela que um talento ou uma paixão podem surgir de maneira muito inocente. Quando se mudou para o Reuno Unido com seus pais, aos 16 anos de idade, começou a fotografar o mundo à sua volta com sua câmera digital – uma dessas que todo mundo tem quando viaja à Europa. Dessa tentativa de capturar o universo diferente e novo em que vivia, surgiu o cuidado em retratar minuciosamente os detalhe. Depois de adquirir sua primeira câmera semiprofissional, Artur ingressou em um curso técnico em Oxford, que lhe abriu os caminhos para a profissionalização. Em outubro desse ano, ingressa no mestrado em Jornalismo Internacional pela mesma universidade em que cursa sua graduação.

Dentre os estilos de fotografia, Artur dedica-se especialmente à fotografia editorial e documental, marca evidente nas fotos que fez para este projeto, que carrega um olhar bastante pessoal de seu autor. Os retratos, em particular, são uma área de interesse, que surgiu quando visitou a galeria Taylor Wessing, em Londres, que reúne retratos feitos pelos mais importantes fotógrafos do mundo.

O interesse pela temática indígena surgiu através da leitura de artigos que relatavam a situação dos índios urbanos na região de Curitiba, discussões sobre como o desflorestamento afeta os Kayapós no Pará, e também mobilizações contra a construção de Belo Monte, na região do Xingu. É fato que a temática indígena tem ocupado espaço crescente na mídia, principalmente pelo acirramento da disputa entre os defensores dos direitos indígenas, entre eles a FUNAI e o CIMI, e a bancada ruralista, liderada pela senadora Kátia Abreu.

Elinton não é 100% índio mas desde seus 12 anos preferiu viver em aldeias. Ele é casado com Paulina (Vice Lider da Aldeia). Por não parecer índio, Elinton não sobre tanto com discriminações e consegue mais oportunidades de trabalho.  Foto: Artur Tixiliski
Elinton não é 100% índio mas desde seus 12 anos preferiu viver em aldeias. Ele é casado com Paulina (Vice Lider da Aldeia). Por não parecer índio, Elinton não sobre tanto com discriminações e consegue mais oportunidades de trabalho. Foto: Artur Tixiliski

O que chocou Artur nesses casos é o mesmo que choca todos que procuram compreender minimamente a realidade das minorias de hoje no Brasil: a discriminação. Os comentários mais comuns neste tipo de matéria – já sabemos: por sanidade mental, nunca ler os malditos comentários! – são retratos de uma visão de mundo pequena e mesquinha, bastante calcada numa hierarquização de raças, em que o que se chama “primitivo” é tratado como inferior.

Dentre os tipos de preconceito, todos tão nocivos e perigosos, o que chamou mais a atenção foi aquele que sugere que índio não é índio por usar roupa ou celular. A resposta de Ilson, líder da comunidade retratada Tekoha Y´Hovy, está pronta e é simples para quem tem vontade de entender: “Por acaso o homem branco chegou ao Brasil em 1500 de terno, gravata e celular?”

Esse é de fato um dos pontos que o projeto quer nos que fazer questionar: o que ingenuamente se concebe como “ser índio” condiz com a realidade contemporânea? E pelas lentes de Tixiliski temos a seguinte resposta: em partes. Se por um lado eles usam roupas, celulares e computador, eles ainda possuem elementos da sua cultura tradicional, como a língua, a religião e a organização social. Por esse ângulo, é interessante pensar que os elementos definidores de uma sociedade indígena não podem ser estabelecidos a priori, por leigos, a partir de imagens formuladas com base no senso comum. Há intrigantes processos sociológicos e antropológicos ligados a essas comunidades de hoje já estudados na academia que precisam vir a público.

Casas em Tekoha Y'Hovy são construídas com madeira da floresta e revestidas com material reciclável e doado. Foto: Artur Tixiliski
Casas em Tekoha Y’Hovy são construídas com madeira da floresta e revestidas com material reciclável e doado. Foto: Artur Tixiliski

A “aculturação”, que seria o processo em que o indígena incorpora elementos da sociedade ocidental branca, é uma crítica usada pela sociedade com o objetivo de negar aos indígenas seu direito à autoderteminação, à demarcação de reservas e à assistência específica. O problema com esse tipo de questionamento é que se assume que as comunidades permanecem ou devem permanecer estagnadas em um modo de vida condizente com 500 anos atrás – ou o que se pensa que era seu modo de vida de 500 anos atrás, porque mesmo sobre isso as pessoas têm pouca informação. É preciso pensar, inclusive, que viver daquela maneira já não é mais possível para muitas comunidades, por causa da escassez dos recursos naturais. Como pescar ou beber a água do rio que foi contaminada por agrotóxicos? Que animais caçar em grandes campos desflorestados?

Outro ponto é que há uma negação sistemática do direito dos índios de usufruírem de bens de consumo da sociedade moderna, como se esses fossem exclusivamente produto do homem branco para o homem branco, e que o progresso tecnológico e econômico não tivesse sido impulsionado também pela tomada de territórios e riquezas que pertenciam a esses índios. Nosso idioma tem influência indígena; nossa cultura tem influência indígena; e a nossa história foi construída também por eles. Não se costuma pensar que as influências entre culturas são naturais e também bilaterais nesse processo de contato.

É claro que o contato deixa marcas. Mas essas marcas não precisam ser vistas como negativas, nem como meio de deslegitimar a luta de um povo para manter algumas de suas tradições. Quando entendemos um pouco melhor essas sociedades  – inclusive através do projeto “Moderno e Indígena”-, percebemos que ela são, sim, diferentes e que precisam de apoio para que possam continuar tendo o direito de existir na diferença.

Foto: Artur Tixiliski
Foto: Artur Tixiliski

A experiência neste primeiro trabalho foi decisiva para que Artur ficasse motivado a continuar o projeto. “Quando cheguei na Tekoha Y´Hovy, sabia que não iria encontrar índios nus, vivendo em ocas e sentados na beira do fogo, como nos estereótipos. O que me surpreendeu mais foi a atitude do pessoal daquela aldeia em particular”, relata o fotógrafo. Segundo ele, a organização interna da comunidade é bastante exemplar. Contando com a liderança de Paulina e Ilson, ambos mais novos que Artur, a comunidade se estruturou e consegue manter algumas de suas tradições. Eles possuem uma casa de reza, alguns animais e também plantam mandioca, milho, feijão e amendoim. Uma das características da aldeia é a existência de uma comissão de jovens responsáveis por ajudar os mais velhos a educar e proteger os mais novos.

Esses relatos mostram como pode ser surpreendente e gratificante observar uma comunidade mais de perto. Quando tomamos um povo apenas pelo olhar distante e coletivo, perde-se um pouco do que uma visão mais particular e cautelosa pode oferecer: a possibilidade de humanizar nossa concepção de um Outro tão diferente. E isso, a sensibilidade dos retratos apresentados aqui consegue alcançar.

Por isso mesmo creio que o documentário seja tão tocante. Ao invés de retratar em plano aberto e impessoal costumes coletivos comuns a diferentes aldeias, o artista prefere retratar de perto detalhes característicos daquela vida em comunidade: um banho de rio, um sorriso, um canto, uma pelada de futebol. Essa perspectiva revela a intimidade do autor tanto com a técnica usada em seu trabalho, quanto com a própria comunidade. Percebemos que a sintonia entre documentarista e participantes foi bastante determinante do bom resultado dessa parceria. Artur confirma isso ao relatar que Gessika e Elias, jovens moradores da Tekoha, viraram seus assistentes durante o processo de produção, tendo eles aprendido com facilidade algumas lições de fotografia.

Mesmo preferindo ser cauteloso quanto ao engajamento, Artur conta que é difícil não se sensibilizar com a luta da comunidade que visitou. A convivência mais próxima e o conhecimento da realidade em que vivem os povos indígenas do Brasil fez dele um apoiador dessa luta. Ele declara ser um indivíduo preocupado com a questão da igualdade social e com os direitos humanos, algo que o texto que acompanha as imagens no documentário nos revela com bastante clareza. O objetivo central desses trabalhos é justamente esse: fazer com que o conhecimento da realidade documentada possa levar a uma melhora de vida das populações indígenas.

Gessika quer ser advogada de direitos humanos quando crescer para um dia poder defender seu povo. Ela tem 12 anos de idade somente e e uma das lideres da Comissao Mirim. Foto: Artur Tixiliski
Gessika quer ser advogada de direitos humanos quando crescer para um dia poder defender seu povo. Ela tem 12 anos de idade somente e é uma das líderes da Comissão Mirim. Foto: Artur Tixiliski

A divulgação internacional deste primeiro vídeo, recentemente lançado em versões em inglês e português, é bastante importante, porque é uma oportunidade de mostrar ao mundo o que é um índio moderno. Muitas pessoas relatam nunca terem ouvido falar nisso, tendo, assim como os brasileiros, as visões estereotipas de índios isolados em grandes matas fechadas. O vídeo é uma oportunidade de conhecer melhor o Brasil e também tem gerado curiosidade no público em aprender mais sobre o que são e como vivem os índios contemporâneos.

Este primeiro documentário e as mais de 100 fotos editadas fazem parte de um projeto maior, que visa registrar a vida em outras comunidades indígenas espalhadas pelo país, sempre com especial atenção aos aspectos modernos da vida dessas comunidades. Estão na rota Curitiba, Campo Grande, Manaus e São Paulo, que possuem comunidades bastante integradas com a vida citadina. O projeto está em fase de preparação e também ainda busca um patrocínio. Como se sabe, o deslocamento e estadia podem se tornar empecilhos financeiros.

Os documentários, com 4 minutos em média, irão passar uma visão mais breve do contato com os personagens. As fotos serão usadas para documentar aspectos mais aprofundados dessas visitas, que poderão ser divulgadas em jornais e revistas. A ideia é também trabalhar em parceria com escritores e jornalistas. Artur explica que o formato multimídia é mais acessível ao grande público e permite uma comunicação mais rápida com a audiência do que as centenas de fotos, que demandam um certo tempo de apreciação. Por isso, ele aposta nessa maneira de estabelecer contato com o público, chamando a atenção para seu projeto e sua temática.

Jovens são importantes para a preservação da cultura e tradição.
Jovens são importantes para a preservação da cultura e tradição. Foto: Artur Tixiliski

Certamente seu trabalho é uma grande contribuição, uma vez que leva ao conhecimento da população um aspecto bastante humano e sensibilizante da vida nas aldeias do país. Quanto aos proprietários envolvidos no conflito com os indígenas da região, Artur declara, esperançoso: “Tomara que [o documentário] não cause muito descontentamento (…) (risos). Eu espero também que eles possam entender e simpatizem com a situação dos índios”. É o que também esperamos, Artur.

Confiram o vídeo no link abaixo:

TEKOHA Y’HOVY – Aldeia Rio Azul (Portuguese Version) from TIXILISKI onVimeo.

Brasil, 2013, 4 min. – Direção: Artur Tixiliski

Para ver mais trabalhos de Artur Tixiliski, acesse:

Site: http://www.arturtixiliski.com

Facebook: https://www.facebook.com/ArturTixiliskiPhotographer

(Para mais informações sobre o conflito na região Oeste do Paraná, acesse esta matéria exclusiva publicada aqui no Causas Perdidas)

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1 – A autodeterminação dos povos indígenas está garantida pela Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, publicado pela ONU em 13 de setembro de 2007. Entre outras garantias, está assegurado o direito dos povos indígenas de determinar livremente seu status político e perseguir livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural, incluindo sistemas próprios de educação, saúde, financiamento e resolução de conflito.

2 – A tradução de Tekoha Y´Hovy é Aldeia Rio Azul. A língua falada pela comunidade é o Avá-Guarani.

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Fontes:

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-indio-na-metropole

http://cpisp.org.br/indios/html/texto.aspx?ID=207

http://causasperdidas.literatortura.com/2013/06/26/o-conflito-entre-indios-e-agricultores-e-o-posicionamento-da-midia-frente-aos-protestos/

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