Kátia Brasil, Amazônia Real
A Procuradoria Geral da República, em Brasília, ingressou com o recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF) para manter na Justiça Federal do Amazonas a competência de julgar os dez réus da Operação Cunhantã acusados de explorar sexualmente meninas indígena do município de São Gabriel da Cachoeira, na fronteira do Estado com a Colômbia.
Conforme publicou a agência Amazônia Real, em abril último o Superior Tribunal de Justiça (STJ) mandou remeter a ação penal, que tramita em sigilo, à Comarca do Município de São Gabriel da Cachoeira. A Corte entendeu que o argumento da Justiça Federal ficou mantido na “hipotética ofensa ao patrimônio moral e cultural da comunidade indígena” e que os crimes contra as meninas “não foram consumados na terra indígena”.
Em entrevista à agência Amazônia Real nesta terça-feira (20), o subprocurador-geral da República Oswaldo José Barbosa Silva disse que o STJ entende que a Justiça Federal só julga quando o crime é contra a coletividade indígena, afetando seus costumes e hábitos.
“Nós recorremos porque entendemos que a competência é Federal no sentido de que o crime afetou a estrutura da cultura e a coletividade da etnia. Qual é a diferença das posições do STJ e da PGR? A questão indígena é nacional e não estadual, tanto que o órgão responsável pela política indigenista é a Funai, um órgão federal. A população não indígena, que detém as estruturas do poder na região, tem um certo preconceito com os índios em geral. A Justiça Federal é mais competente porque não está envolvida nas questões regionais ou estaduais”, afirmou Oswaldo José.
O subprocurador geral da República disse que antes de chegar ao Supremo Tribunal Federal, o recurso extraordinário será analisado pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Felix Fischer. O STJ é o foro competente para legitimar o recurso. Se o presidente aceitar o recurso, a matéria segue para o STF. “O ministro-presidente do STJ precisa admitir o recurso. Se não admitir (aceitar), temos que ingressar com um agravo (recurso) no STF”, afirmou o Oswaldo José Barbosa Silva.
Os dez réus da Operação Cunhantã (que significa menina na língua tupi) foram presos pela Polícia Federal, em maio de 2013. Entre eles, há duas mulheres indígenas e oito homens não indígenas: são comerciantes, ex-vereador, servidores públicos, militares do Exército brasileiro. Quatro homens continuam presos preventivamente em Manaus, sendo três em cadeias públicas, e um no domicílio.
Os casos de violência sexual contra as crianças e adolescentes foram denunciados em 2008 pelo Conselho Tutelar de São Gabriel da Cachoeira e pela missionária católica Giustina Zanato, mas só em 2012, quando a PF assumiu as investigações a pedido do Ministério Público Federal no Amazonas, é que os acusados começaram a ser investigados e punidos.
Conselheiras e meninas foram ameaçadas de morte por acusados
Os réus são acusados de manter relações sexuais com as meninas indígenas virgens, com idades entre 9 anos e 14 anos, em troca de dinheiro, presentes, alimentos e bombons. Segundo a investigação, eles são pessoas com poder econômico que se aproveitaram da situação de pobreza das garotas.
De acordo com a PF, 16 meninas indígenas prestaram depoimentos contando que sofreram os estupros. Elas são das etnias tariano, wanano, tukano e baré. Moram nas áreas mais pobres da periferia de São Gabriel da Cachoeira, cidade na qual 90% da população é formada por índios.
Durante as investigações, quatro garotas foram ameaçadas de morte, assim como os conselheiros tutelares e a missionária católica, irmã Giustina Zanato. Ela foi envida para Moçambique, na África, por medida de segurança.
Os crimes imputados aos réus são estupro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição de vulnerável, rufianismo (tirar proveito da prostituição alheia) e coação no curso do processo.
Dois homens são acusados de crime previsto no art. 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente: “adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.
Depois da decisão do STJ o medo voltou na cidade
A decisão do STJ que mandou a ação penal para ser julgada na Comarca de São Gabriel da Cachoeira repercutiu negativamente nas organizações de direitos humanos e da defesa da criança e do adolescente. Conselheiros tutelares e muitas garotas estão com medo. A Justiça local pode libertar os quatro acusados, que continuam presos.
A irmã Giustina Zanato disse à agência Amazônia Real que a juíza Tânia Granito, titular da Comarca de São Gabriel da Cachoeira, foi comunicada das denúncias, mas não deu atenção ao problema com as crianças. “Não vamos desistir de dizer para esta Nação que acreditamos na Justiça desta terra, mesmo sabendo que às vezes é inaceitável aquilo que estamos vendo. Acredito que no STF seja revertida esta sentença. A Juíza Tânia nunca deu atenção aos problemas maiores, foi isso que aconteceu com outros casos”, afirmou a missionária.
Renato de Almeida Souto, coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos – Regional Norte, diz que os crimes contra as meninas ofenderam a dignidade sexual delas e a identidade cultural da comunidade.
“O MNDH entende que o Tribunal de Justiça da Comarca do Município de São Gabriel da Cachoeira não possui competência para julgar crimes sexuais em que crianças e adolescentes figuraram como vítimas, e dentro do dispositivo legal o caso de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal. Dessa forma, o MNDH entende que este caso seja de competência federal e criminal”, disse Souto.
O deputado estadual Luiz Castro (PPS-AM), integrante da Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga denúncias de exploração sexual contra crianças e adolescentes do Amazonas, também discorda da decisão do STJ.
“Sua fundamentação jurídica é falha, descontextualizada, demonstrando um desconhecimento fático impressionante do Brasil real, da nossa Amazônia. Os pais das meninas indígenas moram na cidade, mas mantêm hábitos originários de culturas ancestrais. Fatores exógenos afetam essas culturas, especialmente o péssimo costume de aliciar e explorar sexualmente as meninas. Inclusive porque a cultura indígena não contempla a troca de sexo por dinheiro!!!”, afirmou o deputado.
A juíza Tânia Granito não foi localizada nesta terça-feira (20) para comentar a decisão da PGR de recorrer ao Supremo. Em entrevista anterior ela negou que recebeu denúncias sobre os casos de exploração sexual de meninas indígenas. “Alguém falou que tinha um esquema montado (de exploração sexual). Mas nunca recebi denúncia”, disse a juíza Tânia Granito.
Defesa de três réus diz que eles são inocentes
O advogado Felipe Jucá, que defende três réus na ação penal da Operação Cunhantã, entre eles as duas mulheres indígenas, disse que seus clientes negam os crimes contra as meninas indígenas. Segundo ele, os réus, que estão em liberdade, são pessoas simples e de “parcos recursos financeiros”.
“Em virtude do segredo de justiça, me limito a dizer que interessa a celeridade do andamento do processo para que possamos provar a inocência dos réus, que deveria ser presumida. Tenho a impressão que inverteram o ônus da prova”, disse.
Sobre a decisão do STJ, o advogado Felipe Jucá afirmou que o MPF tem todo o direito de recorrer das decisões que contrariam o entendimento do órgão. “Estão fazendo o trabalho que lhes cabe. No entanto, não coaduno do mesmo entendimento quanto ao foro competente para julgamento, assim como não coaduno com a impunidade daqueles que praticam delitos dessa natureza”, disse.
Para Felipe Jucá, a declinação da competência da esfera federal para a estadual não significa pouco caso, muito menos sinaliza impunidade. “O processo não foi arquivado, a persecução penal continua, mas agora passará para o juízo da Comarca de São Gabriel da Cachoeira, não caberá mais ao juiz federal processar e julgar estes fatos. É uma questão puramente técnica, de direito, que talvez seja de difícil entendimento para quem não seja um profissional da área jurídica. Ao juiz federal cabe julgar as infrações penais cometidas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União (art. 109, IV da Constituição da República), o que não é o caso”, disse.
O advogado disse ainda que os crimes não foram contra a comunidade indígena. “A vítima, no caso em tela, não é a coletividade indígena, são pessoas certas e determinadas. Este foi o motivo de atração da competência para que a Justiça Estadual passe a analisar o feito. Não são direitos indígenas que estão em análise, o que se apura é se houve ofensa à dignidade e liberdade sexual de algumas adolescentes. Tenho como justa e acertada a decisão do Superior Tribunal de Justiça”, afirmou Felipe Jucá.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.