Ex-deputado foi torturado e morto nas dependências do DOI do I Exército, no Rio de Janeiro. Militares foram denunciados por crimes contra a humanidade
MPF RJ
O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF/RJ) denunciou cinco militares reformados do Exército pelo homicídio e ocultação do cadáver do ex-deputado Rubens Paiva, ocorrido entre os dias 21 e 22 de janeiro de 1971. O crime foi cometido nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – DOI do I Exército, instalado em um prédio dos fundos do Batalhão de Polícia do Exército, bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. O MPF também denunciou os cinco militares por associação criminosa armada e três deles por fraude processual.
O ex-comandante do DOI, general José Antônio Nogueira Belham, e o ex-integrante do CIE, coronel Rubens Paim Sampaio, foram denunciados por homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa armada. Eles podem ser condenados em até 37 anos e seis meses de prisão. Já o coronel reformado Raymundo Ronaldo Campos e os militares Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendorf e Souza são acusados pelos crimes de ocultação de cadáver, fraude processual e associação criminosa armada. As penas para os três podem superar dez anos de prisão. Além das penas de prisão, o MPF pede ainda que os denunciados tenham as aposentadorias cassadas e que os órgãos militares sejam oficiados para despi-los das medalhas e condecorações obtidas ao longo de suas carreiras.
Novas provas – Na denúncia, o Grupo de Trabalho Justiça de Transição do MPF apresenta novas provas – documentais e testemunhais – que permitiram a comprovação da participação dos cinco agentes denunciados, além de outros já falecidos, no desaparecimento do ex-deputado e na farsa posteriormente criada para encobrir o crime. Dentre as novas provas apresentadas destacam-se documentos encontrados na residência do militar Paulo Malhães, morto no último dia 24 de abril, relacionados a Rubens Paiva e aos denunciados. Tais documentos foram apreendidos pelo MPF no dia 28 de abril, após obtenção de ordem judicial de busca na casa do militar falecido.
O MPF também obteve a confissão gravada do denunciado Raymundo Ronaldo Campos, de que a “fuga” da vítima não passou de uma “encenação cinematográfica”, e ouviu por três vezes o coronel Armando Avólio Filho, testemunha ocular das torturas e da omissão do comandante do DOI à época, general Belham, em impedir a consumação do homicídio.
As investigações do MPF duraram cerca de três anos e envolveram a análise de 13 volumes de documentos. Foram tomados depoimentos de 27 pessoas (testemunhas e investigados) em seis cidades diferentes, num total de 41,3 horas de registros em vídeo ou impressos. Foram expedidas 33 intimações e 16 ofícios requisitando informações. As investigações identificaram o envolvimento dos cinco denunciados, além de outros nove envolvidos, já falecidos.
De acordo com as investigações, “ficou provado nos autos que o Exército Brasileiro vem sonegando informações ao MPF, a respeito da participação de militares em ações da repressão ditatorial”. Por essa razão, os procuradores da República estão requerendo ordem judicial para que as Forças Armadas apresentem as folhas funcionais completas dos militares investigados.
Crimes contra a humanidade – Os procuradores da República Sergio Gardenghi Suiama, Antonio do Passo Cabral, Tatiana Pollo Flores, Ana Cláudia de Sales Alencar e Andrey Borges de Mendonça (PR-SP) e o procurador Regional da República Marlon Weichert apontam que os crimes cometidos pelos militares se deram em um contexto de ataque sistemático e generalizado contra a população civil por um sistema semiclandestino de repressão política, baseado em invasões de domicílio, sequestro, tortura e desaparecimento de inimigos do regime. Por esse motivo, afirmam eles, os crimes denunciados não prescreveram, nem estão abrangidos pela Lei de Anistia de 1979.
“Ainda que os crimes cometidos pelos denunciados fossem cometidos em nome do Estado, jamais foram assumidos como atos oficiais, permanecendo na clandestinidade das ações publicamente negadas. Portanto, não há nenhuma dúvida de que, ainda que agindo em nome do Estado, todos os membros da quadrilha armada estavam conscientemente associados para praticarem crimes”, ressaltam os procuradores na denúncia.
Entre os anos de 1970 e 1974, período em que Rubens Paiva foi morto, a atuação da quadrilha armada se intensificou no Rio de Janeiro. A organização passou a adotar, como prática sistemática, as execuções e desaparecimentos de opositores, sobretudo aqueles tidos como mais “perigosos” ou de maior importância na hierarquia dos grupos. Particularmente, esses anos representam o período em que mais dissidentes desapareceram no Estado. Além de Rubens Paiva, outros 14 casos são reconhecidos oficialmente neste período, só no Rio de Janeiro.
“O ataque era particularmente dirigido contra os opositores do regime e matou oficialmente 219 pessoas e desapareceu com outras 152, dentre elas a vítima Rubens Paiva”, destacam.
Os procuradores também ressaltam na ação que o caráter de lesa-humanidade dos crimes cometidos por agentes da ditadura militar foi reconhecido recentemente pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, na ação criminal relacionada aos atentados à bomba no Riocentro, em 1981.
Prisão, sequestro e morte – Militares do CISA, a mando do Brigadeiro João Paulo Burnier, invadiram a casa de Rubens Paiva, no Leblon (RJ), no começo da tarde do dia 20 de janeiro de 1971. O motivo da prisão está relacionado ao desfecho do sequestro do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher. No dia 13 de janeiro de 1970, setenta presos políticos foram trocados pela libertação de Bucher e seguiram para o Chile, destino de muitos exilados brasileiros.
Ao retornar de uma visita ao Chile com diversas correspondências destinadas a pessoas no Brasil, Cecília Viveiros de Castro e Marilene Corona Franco foram presas no aeroporto do Galeão. Uma das cartas era destinada a Rubens Paiva. Ouvida pelo MPF, Marilene afirmou ter sido ameaçada pelo Brigadeiro Burnier com uma arma, para que telefonasse para a vítima, no número registrado, e informasse que as correspondências do Chile haviam chegado.
“Uma voz de mulher no telefone pediu a Rubens o endereço, pois queria entregar uma carta que trazia do Chile”, lembra a viúva Eunice Paiva. Ela relata que o marido não resistiu à ação militar. “Ele subiu tranquilamente para o nosso quarto, vestiu-se, chamou os militares, apresentou-me a cada um deles e disse-lhes que eles eram nossos hóspedes e a casa estava à disposição deles. Rubens saiu guiando nosso próprio carro, acompanhado por dois policiais”.
A vítima foi inicialmente levada ao comando da III Zona Aérea, onde foi submetida à tortura, presenciada por Cecília Viveiros de Castro e Marilene Corona. No fim da tarde, os três foram levados ao DOI do I Exército, local do homicídio.
A entrada de Rubens Paiva no DOI do I Exército está registrada em dois documentos oficiais que estavam em poder do coronel Júlio Miguel Molinas, falecido em novembro de 2012. Um deles trata-se de uma lista dos pertences da vítima, acrescida da anotação: “2 cadernos de anotações encontram-se com o Major BELHAM. (Devolvidos os cadernos)”.
No DOI, a vítima foi submetida a selvagens torturas, praticadas por, dentre outros agentes, o ex-tenente Antonio Fernando Hughes de Carvalho, integrante de uma das equipes de interrogatório do DOI.
As torturas contra Rubens Paiva foram testemunhadas por dois ex-presos do DOI naquela data, Marilene Corona Franco e Edson de Medeiros, ambos ouvidos pelo MPF. Segundo Marilene: “Em um determinado momento, alguém passou e deu um soco em Rubens Paiva. Dona Cecília disse: “vocês vão matar este homem”, e eles responderam: “aqui é uma guerra”, dando a entender que a morte de um preso não seria considerado algo criminoso. (…) Em seguida, quando a declarante ainda estava em pé e de frente para a parede, começou a ouvir gritos de Rubens Paiva sendo torturado em um salão do lado. Reconheceu que era Rubens Paiva porque os interrogadores indagavam sobre Jane e Rodolfo. Achou que era um salão porque os gritos ecoavam de forma muito forte. (…) Ouviu gritos de dor.
Enquanto estava havendo a tortura, a declarante foi levada para o andar de cima, onde foi posta em uma cela individual. A partir desse momento, perdeu contato com Rubens Paiva e dona Cecília”.
De acordo com a testemunha Edson de Medeiros: “No dia 20 de janeiro (…) o declarante foi colocado em uma cela no andar térreo, dotada apenas de grades, o que lhe permitia ver o que se passava no corredor do prédio. (…) Recorda-se então que na parte da tarde ouviu gritos de um homem sendo torturado. Lembra-se perfeitamente que os agentes colocaram uma música do Roberto Carlos – “Jesus Cristo” – em alto volume, possivelmente com o objetivo de abafar os gritos. Algum tempo depois viu de sua cela passarem dois recrutas puxando pelos pés um homem forte e gordo, com mais de 100 kg. Este homem foi colocado na cela ao lado e gemia muito. (…) Algumas horas depois, o depoente ainda viu alguns agentes retirarem da cela um corpo inerte e totalmente coberto. (…) Percebeu também que os agentes davam uma importância muito grande àquele preso. Foi a última vez que viu esta pessoa.”
A autoria do homicídio foi revelada pela testemunha do fato, o então Tenente Armando Avólio Filho, em dois depoimentos registrados em vídeo e um termo de declarações entregue por ele ao MPF. Segundo Avólio: “Nesse mesmo dia (seguinte à chegada [de Rubens Paiva ao DOI]) e quase ao término do expediente por volta das 17h, ao me despedir dos soldados e sargentos do pelotão, reparei que a porta de uma das salas de oitiva do DOI estava entreaberta. (…) Ao dirigir-me para fechá-la, deparei com um interrogador do DOI, de nome Hughes (…), no seu interior, utilizando-se de empurrões, gritos e ameaças contra um homem que aparentava já ter uma certa idade. Reparei, na fisionomia desta pessoa, um ar de profundo esgotamento físico”.
A testemunha relata ter ido, em seguida, à sala do então Capitão Ronald Leão: “Eu disse pra ele: ‘olha, vamos lá no DOI (…) falar com o major Belham (…) que o que está acontecendo naquela sala não vai terminar bem’. E nós dois fomos até à presença do Major Belham e falamos pra ele: ‘- Major BELHAM, está acontecendo alguma coisa aqui, pode ser tornar uma coisa grave’. Se ele tomou providência, eu não sei, se ele foi lá, eu não sei, se ele mandou alguém lá, eu não sei, se mais alguém ouviu nós dois falarmos pra ele isso, eu não sei”.
O testemunho do militar foi confirmado pelo coronel Ronald José Motta Baptista Leão, em depoimento escrito entregue à Comissão Nacional da Verdade pouco antes de sua morte. Leão também implicou o então major do Centro de Informações do Exército, Rubens Paim Sampaio. Tal como o coronel Paulo Malhães, morto recentemente, Sampaio também comandava equipes de operações do CIE envolvidas em execuções sumárias e desaparecimentos forçados durante a primeira metade da década de 1970. Segundo o coronel Leão: “Ao tomar conhecimento do fato, da chegada de um preso [Rubens Paiva] à noite, procurei me certificar do que se tratava, mas fui impedido pelo pessoal do CIE (Major Rubens Paim Sampaio e Capitão Freddie Perdigão Pereira, sob a alegação de que era um preso importante, sob responsabilidade do CIE/DOI-CODI. Alertei ao comando e fui para casa”.
Ouvido pelo MPF, o denunciado Rubens Paim Sampaio confessou sua participação em ações clandestinas durante a ditadura militar, e disse que soube da morte de Rubens Paiva na própria data dos fatos: “O declarante tem a dizer que em uma data recebeu um telefonema de uma pessoa do DOI cujo nome não ser recorda informando que Paiva havia falecido de enfarte. O declarante disse: ‘- espera aí! Em seguida informou o fato a Coelho Netto que então determinou que o corpo fosse levado ao IML. O declarante retornou a ligação ao DOI mas então a pessoa do outro lado da linha lhe disse que haviam feito um teatrinho para ocultar o corpo”.
Operação cinematográfica – “Atiramos no carro”. Foram pelo menos 18 tiros de calibre 45 mm. O local escolhido para a “operação cinematográfica” – nas palavras do denunciado Raymundo Ronaldo Campos – foi um trecho da Estrada de Furnas, no Alto da Boa Vista (RJ). A ordem dada para montar a operação que simularia a “fuga” de Rubens Paiva só foi revelada 43 anos depois, em depoimento colhido pelo MPF. A ordem foi cumprida por Raymundo e pelos militares reformados Jurandyr Ochsendorf e Souza e Jacy Ochsendorf e Souza, também denunciados agora pelos procuradores da República.
“Pega uma equipe, leva para o Alto da Boa Vista, diga que o prisioneiro fugiu, metralhe o carro (uma viatura do Exército) para parecer que ele fugiu. E volte”, ordenou o major já falecido Francisco Demiurgo Santos Cardoso, chefe da Seção de Informações do DOI. A imprensa também foi chamada. Os principais jornais noticiavam, no outro dia, a fuga de um terrorista e a destruição de um carro oficial. “Terror liberta subversivo de um carro dos federais”, anunciou a manchete de um dos jornais cariocas na época.
Para que a fraude não fosse descoberta, uma série de atos ilícitos foram cometidos pelos militares Raymundo, Jurandyr e Jacy para induzir em erro o perito Lúcio Eugênio de Andrade. A manobra também prejudicou a tentativa da família de Rubens Paiva de obter uma resposta sobre o paradeiro do ex-deputado, já que no julgamento do Superior Tribunal Militar, em 2 de agosto de 1971, a justiça considerou que o prisioneiro havia fugido, portanto, não estava sob tutela do Estado.
“Desde o começo, todo o processo conduzido pelos militares contra Rubens Paiva e sua família era ilegal, porque nem mesmo na ordem vigente à época, o Ato Institucional nº 5 (AI-5), os agentes estavam amparados juridicamente a atentar contra a integridade física dos presos e muito menos sequestrar pessoas e depois fazê-las ‘desaparecer’. Mesmo os crimes contra a segurança nacional não excluía o dever de comunicação da prisão, nem autorizava a manutenção de suspeitos, por tempo indeterminado, em estabelecimentos oficiais, sob a responsabilidade do Estado”, enfatizaram os procuradores, na denúncia.
GT Justiça de Transição – A criação em 2012 do Grupo de Trabalho (GT) Justiça de Transição pelo Ministério Público Federal permitiu dar uma resposta a diversos crimes cometidos durante a ditadura. No Rio de Janeiro, o MPF já ofereceu denúncia contra seis militares reformados envolvidos no atentado a bomba no Riocentro, ocorrido em 1981, e contra cinco agentes da ditadura envolvidos no sequestro e tortura do militante político Mário Alves.
O trabalho do Ministério Público Federal baseia-se em decisão, em 2010, da Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH), que analisou o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, que tratava da responsabilização do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas resultante de operações do Exército para erradicar a Guerrilha do Araguaia. Entre outros pontos, a sentença determinou ao Estado brasileiro a condução eficaz da investigação penal para esclarecer os fatos ocorridos durante a ditadura, para definir as correspondentes responsabilidades penais e para impor efetivamente as sanções penais cabíveis.
A sentença estabeleceu a obrigação do país de investigar quem são os autores materiais e intelectuais do desaparecimento forçado das vítimas, em razão do caráter permanente desses crimes, não aplicando a Lei de Anistia em benefício dos agentes de crime, nem prescrição ou qualquer outra excludente de ilicitude para eximir-se de investigar.
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Assessoria de Comunicação Social
Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro