Elaíze Farias – Amazônia Real
O Ministério Público Federal do Amazonas pediu uma indenização de R$ 500 mil dos dez réus acusados de explorar sexualmente meninas indígenas do município de São Gabriel da Cachoeira, na fronteira do Estado com a Colômbia. O dinheiro para reparar o dano moral coletivo será aplicado na adoção de políticas públicas destinadas à prevenção da exploração sexual das adolescentes indígenas.
Uma ação civil pública foi ingressada no dia 12 de março na Justiça Federal do Amazonas pelo procurador da República, Julio José Araujo Junior.
Os réus foram presos em maio de 2013 pela Operação Cunhantã da Polícia Federal a pedido do MPF. Três deles permanecem presos preventivamente em cadeias de Manaus. Um quarto acusado cumpre prisão domiciliar na capital. O inquérito da PF concluiu que os autores dos crimes mantinham relações sexuais com as meninas indígenas em troca de dinheiro, presentes, alimentos e bombons, aproveitando-se da situação de pobreza delas.
Os dez réus são acusados pelo MPF de crimes de estupro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição de vulnerável, rufianismo (tirar proveito da prostituição alheia) e coação no curso do processo.
Na ação, o MPF atribui a justificativa do pedido de indenização à conduta articulada dos acusados numa rede de exploração sexual de adolescentes indígenas no município de São Gabriel da Cachoeira. Para a instituição, os crimes causaram aos povos indígenas do Alto Rio Negro grave constrangimento e sofrimento, bem como sentimento de vergonha e tristeza. O que resultou em abalo moral sobre o grupo, ensejando reparação imediata.
A indenização será paga pelos dez réus à Coordenação da Funai (Fundação Nacional do Índio) do Alto Rio Negro em São Gabriel da Cachoeira, que fica a 860 quilômetros de distância de Manaus.
Conforme a ação do MPF, a investigação da Polícia Federal constatou que todas as meninas exploradas sexualmente eram indígenas – cerca de 14 adolescentes pertencentes às etnias tukano, wanano, dessano e baré. No entendimento do MPF, o fato de serem índias causou reflexos negativos sobre toda a comunidade indígena do Alto Rio Negro.
“Criou-se, assim, um sentimento de constrangimento coletivo entre os indígenas de São Gabriel da Cachoeira. Agravou o sentimento de vergonha e tristeza compartilhado pelos indígenas do Alto Rio Negro. A repercussão dada ao caso, notadamente quando da prisão dos suspeitos, revelou uma comoção pública, pois novas denúncias surgiram e a sociedade se mobilizou contra as práticas denunciadas”, diz o MPF na ação.
Em entrevista à agência Amazônia Real, o procurador da República e autor da ação, Julio José Araujo Junior, disse que o MPF entende que a forma sistemática de atuação dos réus, com a abordagem a pessoas de extrema vulnerabilidade, valendo-se da realidade a que estão submetidas muitas das famílias indígenas que se deslocam de suas comunidades às cidades, gerou um dano moral a população indígena.
“Esse dano deve ser presumido, tendo em vista a violação de direitos e o estado de permanente risco a que se submete as famílias indígenas da região, envolvidas ou não com a exploração”, disse Julio Araujo Junior.
Ele explica que na ação, o MPF enfatiza a desestruturação étnica dos povos indígenas em São Gabriel da Cachoeira e na vulnerabilidade dessa população em razão das práticas desse tipo de rede de exploração sexual, que vinha sendo tratada até com naturalidade até 2012.
A ação civil pública do MPF foi ingressada em março, pouco mais de um mês antes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) transferir o processo e o julgamento dos acusados para Justiça Estadual, conforme a agênciaAmazônia Real divulgou nesta terça-feira (13).
Questionado se essa mudança pode comprometer a decisão acerca da ação civil pública, o procurador Julio Araujo Junior afirmou que, como a competência na área cível está mais consolidada, ele não acredita que haverá declínio de competência neste caso.
“A Justiça Federal tem competência para analisar as disputas sobre direitos indígenas, e o MPF sustenta claramente que esses direitos foram violados, de forma coletiva, em razão desses ilícitos”, disse o procurador.
Ainda assim, o procurador afirmou que entende que o processo criminal do caso continue na Justiça Federal, apesar da decisão do STJ.
“A decisão do Superior Tribunal de Justiça está apegada a uma visão, na matéria criminal, de que a ofensa a um indivíduo não gera impactos para toda a comunidade. Esquece que as formas de organização de grupos indígenas são diferenciadas, muito atreladas aos seus modos de vida e à sua cultura, de modo que a noção de impactos coletivos a um grupo prescinde do envolvimento de um grupo grande de pessoas. Muitas vezes basta a ofensa a um direito individual para abalar toda uma comunidade”, explicou.
Missionária questiona participação da Funai na ação
Em entrevista a agência Amazônia Real, a missionária italiana Giustina Zanato, ex-conselheira municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente que deixou a cidade de São Gabriel da Cachoeira depois de ser ameaçada de morte por denunciar os crimes sexuais contra as meninas indígenas, questionou a decisão do MPF de deslocar para Funai (Fundação Nacional do Índio) os recursos da possível indenização das comunidades indígenas.
“Não vejo o porquê deve-se beneficiar a Funai, que nem tomou conhecimento das denúncias do Conselho Tutelar. Quando pedíamos a ajuda da Funai, eles (os representantes) não apareceriam, nem para perguntar o que estávamos fazendo ou se necessitávamos de algo”, disse a missionária.
Ela afirmou que a Funai pouco ajudou no campo da prevenção dos crimes contra as meninas e na proteção delas. “A Funai pouco se inteirou dos graves problemas que as crianças e os jovens enfrentavam. É mais direcionada a fazer publicações de livros. Estou muito desconfiada que esta ajuda (indenização) chegue aos destinatários”, disse irmã Giustina Zanato.
A ex-coordenadora do programa assistencial “Menina Feliz”, que atende crianças e adolescentes exploradas sexualmente em São Gabriel da Cachoeira, também questionou a destinação do recurso da indenização seria gasto. Para ela, o dinheiro deveria beneficiar os estudos e a qualificação das meninas exploradas sexualmente.
“Foram estas meninas que tiveram a força e a coragem de denunciar. Outra possibilidade seria fazer um tipo de segunda geração de renda para que este dinheiro volte em benefício de outras famílias”, afirmou a missionária Giustina Zanato.
Indagado sobre o motivo de a ação pedir que a indenização seja repassada à Funai, o procurador Julio José Araujo Junior disse que, como o dano moral coletivo diz respeito à toda a população indígena, o MPF entendeu que foi melhor requerer que esses recursos sejam repassados ao órgão indigenista, pois se trata da autarquia federal que cuida da política indigenista.
“Como se trata de políticas públicas nesta matéria, a Funai teria junto a outros órgãos maior capacidade de articular esse cumprimento do que alguma entidade”, afirmou o procurador.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.