AM – Atuação conjunta entre MPF e MPT resulta em resgate de trabalhadores em condição similar à escravidão em Barcelos

Alojamentos eram construídos pelos próprios trabalhadores, sem nenhuma segurança Alojamentos eram construídos pelos próprios trabalhadores, sem nenhuma segurança
Alojamentos eram construídos pelos próprios trabalhadores, sem nenhuma segurança

Operação realizada em parceria com o Ministério do Trabalho encontrou 13 trabalhadores atuando na extração da piaçava submetidos a servidão por dívida

MPF AM

Trabalhadores submetidos a um ciclo de servidão por endividamento, com jornadas de trabalho excessivas e alojados em construções improvisadas no meio da floresta Amazônica sem qualquer segurança ou mínimas condições de higiene pessoal. Esse foi o cenário verificado durante operação de resgate de trabalhadores que atuavam na extração da piaçava – fibra largamente utilizada na confecção de vassouras – no município de Barcelos (a 405 quilômetros de Manaus), a partir de atuação conjunta entre o Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM), Ministério Público do Trabalho no Amazonas (MPT 11ª Região) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), com apoio do Exército Brasileiro e da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Todos os trabalhadores resgatados afirmaram ter vinculação com o empresário Luiz Cláudio Morais Rocha, popularmente conhecido como ‘carioca’. Com base nos relatos colhidos constatou-se que eles atuavam na extração da piaçava de segunda a sexta-feira, durante todo o dia, e aos fins de semana faziam o beneficiamento da fibra, prática conhecida como ‘penteamento’ da piaçava. Os depoimentos dos trabalhadores, confirmados pelo próprio empresário, também demonstram que Luiz Cláudio tinha consciência das condições precárias a que estavam submetidos os trabalhadores, já que periodicamente visitava os locais de extração.

Antes mesmo de iniciar a atividade, conforme contou o procurador do Trabalho Renan Bernardi Kalil, os trabalhadores eram impelidos a contrair dívidas com o empregador, por meio de intermediários chamados de ‘patrõezinhos’ ou aviadores, a partir de adiantamentos em dinheiro ou repasse de mercadorias e insumos necessários para o trabalho, como combustível e alimentos, com valores superfaturados em até 140%. “Com uma dívida a pagar antes mesmo da prestação do trabalho, os ‘piaçabeiros’, como se autodenominam os trabalhadores do ramo, precisam passar longos meses nos locais de extração da fibra para conseguir pagar a dívida e tentar obter algum saldo, que girava em torno de R$ 200 reais por mês”, explicou Renan Kalil. Nenhum dos 13 trabalhadores resgatados conseguiu obter saldo correspondente ao valor de um salário mínimo mensal.

Em função de descontos automáticos de até 20% aplicados sobre o peso da piaçava extraída, tanto no ato da entrega feita pelos trabalhadores como no repasse dos intermediários ao empregador, muitas vezes sequer as dívidas eram quitadas e o piaçabeiro era obrigado a retornar para as áreas de extração sem receber remuneração pelo trabalho. “Em vez disso, contraía nova dívida, criando assim um círculo vicioso que mantém o trabalhador submetido a servidão por dívida, o que também configura trabalho em condições análogas às de escravo segundo a legislação”, acrescentou Kalil. Um dos relatos ouvidos confirma que também os intermediários se mantém vinculados ao empregador por meio de dívidas que chegam a R$ 30 mil.

Trabalhadores exerciam atividades em equipamentos de proteção e ficavam vinculados ao empregador por dívidas contraídas antes mesmo de iniciar o trabalho
Trabalhadores exerciam atividades em equipamentos de proteção e ficavam vinculados ao empregador por dívidas contraídas antes mesmo de iniciar o trabalho

As irregularidades na cadeia produtiva da piaçava em Barcelos já vinham sendo apuradas em inquéritos civis conduzidos pelo MPF e pelo MPT, com base em relatos e denúncias recebidas pelos órgãos. A partir da realização do projeto MPF na Comunidade no município, em dezembro do ano passado, foi possível colher depoimentos e fazer um diagnóstico mais preciso do funcionamento da cadeia para embasar as fiscalizações. “Naquele momento percebemos a necessidade de avançarmos na fiscalização e análise da situação em Barcelos, a partir do contato com os trabalhadores e com os patrões”, contou o procurador da República Julio José Araujo Junior, que participou da visita à cidade em dezembro de 2013.

As investigações e fiscalizações na cadeia produtiva da piaçava em Barcelos ainda irão continuar, conforme adiantou o procurador da República Galtiênio da Cruz Paulino. A estimativa feita com base em depoimentos colhidos durante a operação indica que pelo menos 80 trabalhadores vinculados somente ao empresário Luiz Cláudio Moraes Rocha estejam submetidos às mesmas condições dos trabalhadores resgatados. “Temos informações de que outros empregadores que não só o Luiz Cláudio mantêm relações de trabalho ilegais como as que foram identificadas durante a operação, por isso as investigações continuam e certamente serão realizadas novas fiscalizações”, acrescentou. Ele adiantou ainda que o MPF aguarda o recebimento do relatório de fiscalização do MTE para analisar as informações e adotar as medidas judiciais cabíveis na esfera criminal.

Locais de difícil acesso – O procurador da República ressaltou que, para chegar até o local onde os trabalhadores foram encontrados, nas localidades de Buracão e Águas Vivas, foi preciso viajar mais de 12 horas em embarcações potentes a partir da sede das comunidades até a entrada do rio Preto, um afluente do rio Negro. De lá, só foi possível seguir viagem em embarcações de pequeno porte. Mais três horas de navegação e uma hora de caminhada mata a dentro ainda foram necessárias para que a equipe da operação encontrasse a base montada pelos próprios trabalhadores.

Desde novembro de 2013 instalado no local de onde foi resgatado durante a operação, o piaçabeiro Lázaro da Silva Barbosa, de 61 anos, relatou que trabalha há 45 anos na extração da fibra. Ele contou detalhes das péssimas condições a que são submetidos os trabalhadores do ramo e revelou que já teve de extrair piaçava após ter sido picado por escorpião, sem nenhuma medicação. “Quando sou picado trabalho do mesmo jeito. A gente trabalha doído mas faz esforço para terminar o trabalho, para pagar o que a gente deve. Se eu for embora no dia que eu fui picado, é um dia de trabalho perdido, por isso que a gente faz esse esforço” (sic), relatou.

Políticas públicas – Durante a entrevista coletiva concedida à imprensa na manhã desta quarta-feira (14), os procuradores destacaram que não há qualquer objeção em relação à atividade de extração da piaçava, que hoje sustenta a economia de Barcelos, e sim à forma ilegal como as relações de trabalho vêm sendo mantidas na cadeia. “O que sustentamos é a necessidade de as relações e as discussões em torno da regularização da cadeia passarem pela obediência à legislação trabalhista e criminal”, explicou o procurador da República Julio Araujo.

Uma reunião a ser realizada ainda neste mês de maio para tratar da regularização da cadeia da piaçava deverá promover o diálogo entre o governo do Estado e os órgãos e instituições interessadas no sentido de legalizar as relações de trabalho existentes. “Consideramos muito importante que as políticas públicas sejam promovidas, mas constatamos que esse processo tem sido muito lento, pois envolve muitos órgãos e se adia a mudança dessa realidade em função das discussões e dos interesses envolvidos. A partir da operação e das medidas cíveis, criminais e trabalhistas que adotaremos, nosso papel é cobrar que as políticas sejam efetivamente desenvolvidas e coloquem os trabalhadores piaçabeiros como protagonistas, promovendo também a conscientização da população local sobre a ilegalidade desse tipo de prática”, finalizou Araujo.

Assessoria de Comunicação Procuradoria da República no Amazonas

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