Incêndios provocados por defeitos elétricos no modelo Vectra deixaram ao menos cinco mortos e cinco gravemente feridos; associação de consumidores mapeou ocorrências pelo país e denuncia 30 casos de explosões sem motivo aparente
por Moriti Neto, Agência Pública
Os olhos de Lucineia Rodrigues dos Santos Silva ainda se enchem de lágrimas quando ela se lembra da explosão do Vectra GLS, cor prata, ano 1997, da General Motors do Brasil, que matou sua filha, a pequena Raíssa, com pouco mais de sete meses de vida.
Foi no dia 24 de julho de 2008, no município de Três Lagoas, a 338 quilômetros de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Lucineia, então proprietária de uma pequena confecção, voltava para casa com Raíssa e o filho mais velho, Edson, à época com 6 anos de idade. Eram 9h45 da manhã quando estacionou o carro na garagem. Desceu para abrir a porta da sala, seguida pelo filho, enquanto Raíssa dormia na cadeirinha instalada no banco traseiro do Vectra.
Não houve tempo nem de atravessar o primeiro cômodo; o estrondo, seguido dos gritos da bebê, anunciaram a tragédia. “Foi coisa de segundos. A fumaça e o fogo se espalharam muito rápido”, explica Lucineia.
Ainda assim, a mãe conseguiu abrir a porta traseira do Vectra e tirar a menina do carro. Depois, todos os vidros do automóvel estouraram e a saída principal da casa foi bloqueada pelas chamas que lambiam as vigas de madeira da garagem e alcançavam os móveis da sala.
Com Raíssa no colo e puxando Edson pela mão, ela foi até a saída dos fundos. Não encontrou a chave. Pediu socorro. Desesperada, viu os olhos da bebê fechados. “A pele dela se desprendia do rosto”, lembra-se.
Alguns vizinhos arrombaram a janela e levaram Lucineia e a criança ao Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, no centro da cidade. Chegaram às 10h02. “A Raíssa tinha queimaduras de 2º e 3º graus no rosto, braços, tórax e pernas. Em Três Lagoas, só havia condições de fornecer os primeiros-socorros”, conta a mãe. Para atender situação tão grave, o destino tinha que ser Campo Grande.
A ambulância com UTI só chegou às 16 horas. Foram mais três horas para chegar à Santa Casa da capital, onde a bebê foi internada no Centro de Tratamento Intensivo (CTI), à meia-noite. Nos próximos 34 dias, Lucineia acompanhará o tratamento extremamente doloroso da bebê e mal sairá do hospital. “Vi minha filha fazer raspagens e enxertos de pele sem sequer poder colocar a mão nela. E eu ainda a amamentava no peito”, recorda.
Com o organismo fragilizado pelas queimaduras e pela toxicidade da fumaça inalada durante a explosão, a criança não resiste a uma forte infecção. Na madrugada do dia 28 de agosto de 2008, o médico Carlos Eduardo Trindade do Amaral trouxe a notícia do falecimento de Raíssa Izabelly Rodrigues dos Santos, aos 7 meses e 14 dias de idade.
“Eu, como mãe, senti culpa”, revela Lucineia.
O trauma a paralisou por dias, mas a revolta foi mais forte do que a depressão, principalmente depois de ver a perícia do Núcleo de Criminalística Regional da Polícia Civil, que apontava como causa da explosão um incêndio na parte traseira do Vectra, provocado por defeito elétrico do carro.
De posse do laudo de número 10.985, concluído em 22 de agosto de 2008, a família de Raíssa entrou com uma ação judicial na 4a Vara Cível de Três Lagoas, responsabilizando a General Motors do Brasil pela morte da bebê. A conclusão da perícia, realizada logo após o incêndio, é o principal fundamento do processo, que também se baseia em outros casos de Vectras que pegaram fogo ou explodiram no país.
O que Lucineia e Edson dos Santos, pai de Raíssa, não imaginavam é que a paralisia da justiça fosse maior do que aquela causada pelo horror que viveram. Quase cinco anos depois de entrar com a ação, a família ainda não conseguiu nem mesmo uma audiência entre as partes.
“Não houve avanços. A GM protela e tenta enganar a justiça. Usa argumentos infundados para encher o processo e dificultar o encaminhamento. Alegou que o carro teria sido convertido a gás, o que nunca aconteceu (o veículo era a gasolina). Até ‘bituca’ de cigarro entrando na grade dianteira, com acesso ao motor, eles disseram que poderia ser. O fogo veio de trás do veículo. Como poderia?”, questiona a advogada da família, Keyla Lisboa Sorelli.
Um fato estranho
As complicações do processo movido pela família de Raíssa começaram com a não aceitação do laudo do Núcleo de Criminalística por parte da GM do Brasil que, no dia 28 de janeiro de 2011, pediu uma nova perícia para “garantir o direito à ampla defesa”. No dia 12 de abril do mesmo ano, o juiz Márcio Rogério Alves concedeu o pedido da montadora e indicou a empresa VCP – Consultoria e Perícias LTDA para realizar o trabalho.
Em 13 de fevereiro de 2012, três anos e oito meses depois da explosão que matou Raíssa, a empresa encarregada descobriu que a nova perícia não poderia ser feita, pois o Vectra havia simplesmente desaparecido do pátio Auto Guincho Dori, localizado na avenida Clodoaldo Garcia, bairro Santos Dumont, para onde teria sido levado pelos policiais do 3º Distrito Policial. “O 3º DP confirmou o destino do automóvel para lá”, garante Lucineia, explicando que o guincho havia sido designado como fiel depositário do veículo.
Os responsáveis pelo pátio alegam que receberam autuação da Vigilância Sanitária do município e precisaram enviar veículos a um ferro velho, onde o carro teria sido prensado sem a retirada de nenhum componente. Isso, embora a resolução 331 de 2009 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) determine que “qualquer veículo à disposição de autoridade policial não pode, sequer, ser levado a leilão”. Também o ferro velho não tem nenhuma documentação sobre o carro, apesar de ser obrigado pelo Código de Trânsito Brasileiro a possuir livros de registros com data de entrada dos veículos, nomes, endereços e identidades dos proprietários ou vendedores.
Ao tomar conhecimento do sumiço do carro, os advogados da GM alegaram que, sem o automóvel ou os componentes, não se pode tirar conclusões definitivas a respeito da causa da explosão. Argumento utilizado apesar do laudo do Núcleo de Criminalística que, de acordo com o responsável, o perito Milton César Fúrio, traz provas suficientes de que foi o defeito elétrico do carro que provocou a explosão e a morte de Raíssa.
Na ação, a GM ainda acusa os pais de negligência pela não conservação da prova material. “Não sou advogada, mas foi a polícia, o Estado, que fez a perícia. Agora, além do sofrimento, somos cobrados por não guardar o carro? O Estado não teria que ter responsabilidade nisso? O Vectra sumiu muito rápido. Nunca entendemos o motivo”, revolta-se Lucineia.
De acordo com Christian Printes, advogado do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Lucineia tem o direito, inclusive, de exigir que a GM prove que não foi o defeito do carro que provocou a explosão que matou a menina. A possibilidade de inversão do ônus da prova está prevista no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor: “Se existe segredo no produto, sobre a tecnologia dele, algo inacessível ao consumidor, a justiça pode determinar que o fornecedor comprove que aquele produto não causa lesões. É dever dos fornecedores não colocar produtos no mercado de consumo que apresentem riscos à saúde e a segurança dos consumidores. Caso isso não seja realizado ou seja realizado a destempo, ocasionando acidentes de consumo relacionados com um mesmo modelo, série ou marca, os órgãos de proteção ao consumidor podem adotar sanções e impor a ordem de chamamento aos veículos (recall) que trazem riscos à saúde e segurança dos consumidores, com base no artigo 10º do CDC e Portaria 487/2012 do Ministério da Justiça”, observa.”
A tragédia impactou a família profundamente. O casal se separou. O menino Edson, hoje com 12 anos, não consegue esquecer o horror que viveu. Lucineia foi morar com ele e a outra filha, Larissa, de 14 anos, na casa da mãe, em Santo Antônio da Platina, pequena cidade no norte do Paraná, a uma distância de 445 quilômetros do município onde ocorreu a explosão. E continua a lutar para que a justiça seja feita. “Minha filha deveria estar aqui. Foi o carro que a matou. Quero que a justiça tome medidas e que a GM seja punida. A Raíssa não volta, mas muitas pessoas podem estar passando pelo mesmo que nós”, diz Lucineia.
Rafael, outra vítima
Rafael Bonadiman Bisse sempre foi um rapaz tímido, mas se fechou completamente para o mundo depois da explosão que o deixou com queimaduras de 2º e 3º graus em 70% do corpo, incluindo o rosto. Aos 25 anos, ele não exerce qualquer ofício. Não estuda. Mal sai de casa e não se relaciona com ninguém. “Antes da explosão, ele tinha uma vida normal. Trabalhava, tinha amigos, saía, namorava. Era como todos os outros jovens na idade dele”, relata Andresa Adelmo, a tia que encampa a luta de Rafael pela recuperação da saúde e por justiça.
O acontecimento que marcou sua vida deu-se no dia 8 de maio de 2009, quando viajava com quatro amigos, jovens como ele, pela rodovia ES-060, no Espírito Santo (que liga as cidades de Piúma e Anchieta). Eram 8 horas da noite e os rapazes iam para uma festa, mas, depois de rodar alguns quilômetros, um forte cheiro de gasolina tomou conta do carro. Os que estavam no banco traseiro perceberam mais rápido o que ocorria: “Senti um forte calor nas pernas vindo da parte debaixo do carro”, recorda Antonio Mulinari, outro passageiro. “Vi o fogo começar no banco traseiro. Tinha uma chama ao meu lado. Gritei que o carro estava pegando fogo.”
A explosão veio em seguida. O estofado pegou fogo, as chamas chegaram até o teto e varreram a cabine. O motorista, Charles William Nicolini, saltou do veículo em movimento, assim como o passageiro do banco da frente, Bruno Ferreira Mulinari.
Os últimos a saírem do carro foram Mateus Gomes Alves e Rafael, que só conseguiu escapar quando o veículo incendiado colidiu com um mourão. “Foi tudo muito rápido, como uma bomba. Começou a esquentar e, em segundos, o carro estava todo tomado por fogo e fumaça. Um dos ocupantes do carro me tirou”, lembra Rafael.
Com queimaduras no rosto, braços e pernas, Charles, Bruno e Antônio foram internados em Anchieta: o primeiro por 11 dias. Os demais, quase um mês. Já Rafael e Mateus Gomes Alves ficaram um ano e meio no Centro de Queimados do Hospital Dório Silva, na cidade de Serra.
Para Rafael, curativos e enxertos de pele viraram rotina. Uma infecção o obrigou a amputar a perna esquerda, acima da coxa. O rapaz de 20 anos passava 24 horas por dia deitado. As dores fortíssimas o levavam a desmaios. Entrou três vezes em coma. “Não tinha vontade de me alimentar e queria morrer para não passar por aquele sofrimento”, relembra hoje, ainda sem conseguir retomar a vida normal.
A família entrou com processo contra a GM do Brasil em dezembro de 2011. Já são dois anos e meio de espera e a ação não foi julgada nem em 1ª instância. Segundo parentes, a empresa não buscou nenhum diálogo com as vítimas. “Para eles, se não tivesse um processo judicial aberto, o caso nem existia. Não ligaram nem para saber se ele está vivo”, destaca Andresa.
Cicatrizes da explosão
Bruno Ferreira Mulinari, 24 anos, traz cicatrizes da mesma explosão que feriu Rafael. No tórax, nas pernas e, principalmente, nos braços. “Não são só as marcas físicas. Fica um trauma, um medo, até vergonha. Existe preconceito com quem é queimado”, diz o ex-ajudante de pedreiro.
Hoje, ele tem um lava-rápido em Piúma (ES) e tenta reconstruir a vida. “Deixei de fazer tudo na vida por muito tempo. Faz um ano que retomei um ritmo mais ou menos normal, mas não esqueço o terror. Era final de semana de Dia das Mães quando o Vectra explodiu. Não pude nem ver a minha mãe”, conta ele, que também processa a montadora.
Mateus Gomes Alves, que viajava com Rafael no banco traseiro do Vectra, teve, como o amigo, 70% do corpo queimado. Chegou a ser “desenganado” pelos médicos. No rosto, teve queimaduras de 2º e 3º graus, que também atingiram membros superiores e inferiores. As mãos direita e esquerda, devido a sequelas, ficaram quase incapacitadas.
Atualmente, aos 23 anos de idade, está preso no Espírito Santo, acusado de tráfico de drogas. “Ele era um rapaz forte, bonito, cheio de energia. No estado que ficou, perdeu a cabeça, se envolveu com coisas que não devia”, avalia Bruno.
Dos outros ocupantes do veículo no terrível dia 8 de maio de 2009, Charles William Nicollini se mudou para o Nordeste do País. Mora na região metropolitana de Recife (PE) e evita o assunto. Antonio Mullinari teve poucas sequelas e segue no Espírito Santo.
A advogada Janine Vieira Paraíso, que representa as vítimas do caso, reclama da extrema lentidão dos processos. “Não houve nenhuma audiência de instrução. Houve perícia realizada pela GM logo após o acidente, a qual, obviamente, excluiu a culpa da montadora. Aguardamos nova perícia, indicada pelo Estado, desde outubro de 2012.”
Na época do incêndio, os familiares dos rapazes buscaram a contratação de um engenheiro mecânico perito em análise de defeitos veiculares. Ele fez uma avaliação e identificou problemas elétricos no Vectra, mas não realizou o laudo pericial por que as vítimas não tiveram condições de pagar pelo serviço.
Caso emblemático
“Sem fotos nem filmagem”, diz Edda Pedemonte Araújo à reportagem. O tom não chega a ser autoritário. Ao contrário. O pedido é feito em voz baixa, gentil. E é compreensível por vir de uma senhora de 75 anos de idade, envolvida há 15 anos na luta contra um gigante do setor automotivo.
Ela ainda sofre ao lembrar a tarde do dia 17 de agosto de 1999, quando viajava pela BR-070, de Cuiabá, capital do Mato Grosso, para a interiorana Barra do Garças, onde possuía uma casa de veraneio. Estava no carro de um amigo, atrás do Vectra da família, quando viu a cena aterradora minutos depois da explosão: corpos consumidos pelas chamas, entre eles o do pai, Heronides de Aquino Araújo, da mãe, Ítala Pedemonte Araújo, e do irmão, Antonio Salvino Pedemonte Araújo. Meia hora antes, ela mesma estava no automóvel recém-adquirido pela família.
“Coisa de 30 minutos. Meu irmão era quem dirigia. Ele era cuidadoso, essencialmente com nossos pais. Pediu para eu descer, queria diminuir o peso. Como tínhamos um amigo vindo logo atrás, em outro carro, troquei”, conta.
Heronides Araújo e Maria Domitila Pinto Gusmão, a enfermeira que cuidava dele, faleceram dentro do Vectra, que explodiu com apenas sete meses de uso. Antonio e Ítala conseguiram saltar do automóvel, mas morreram na pista, envolvidos pelo fogo. O calor foi tanto que todos os corpos tiveram queimaduras de até 4º grau.
Em 2001, a família acionou a GM na justiça. Seguiu-se uma verdadeira guerra jurídica, iniciada com um fato curioso. Segundo Heronides Filho, irmão de Edda, “logo após a ocorrência, a GM sumiu com o carro. Isso, depois de levá-lo para o pátio da montadora, em Barra do Garças.”
E ali foi feita a primeira perícia – realizada pela equipe da Coordenadoria de Criminalística da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Mato Grosso – que atribuía a explosão a uma peça de freio de caminhão perdida na estrada. Esse laudo, porém, foi duramente questionado pela juíza Amini Haddad Campos, da 9ª Vara Cível de Cuiabá: “Estamos ou não estamos falando de uma perícia oficial? Que perícia foi essa realizada no pátio da concessionária da GM?, registrou no processo.
A magistrada ainda qualificou como “imprestável” a perícia “visto que sequer estiveram no local da ocorrência, nada descreveram do local do incidente, nem sequer há informativos quanto à campana de caminhão (sequer uma medição), e esta, ainda, foi tão-somente apresentada na concessionária GM dois dias após o evento danoso”, aponta na sentença.
Por ordem da justiça, outra perícia foi realizada pelo engenheiro mecânico Durval Bertoldo da Silva, com conclusão divergente da primeira: “A explosão do salvado (carro) se deu no compartimento interno do veículo, acima do tanque de combustível e abaixo do banco traseiro, proporcionado por gases e vapores desprendidos através de vazamento na bomba de combustível.”
Em 11 de julho de 2008, familiares das vítimas conseguiram a condenação da empresa. A justiça matogrossense determinou indenização de R$ 6 milhões, sendo R$ 500 mil destinados a cada um dos 12 autores do processo. A sentença determinou também que a GM teria que emitir um comunicado público sobre os riscos ocultos no veículo Vectra e convocar o recall, enfatizando a necessidade de dar publicidade ao fato ”em decorrência dos interesses difusos e coletivos resultantes das constatações verificadas”, e intimando a montadora a cumprir o dever da comunicação do defeito ao consumidor, “na forma vinculativa do art. 10 e parágrafos do CDC, com prazo de permanência publicitária de 30 dias, às suas expensas, junto aos meios de comunicação impressos, sonoros e televisivos (jornal, rádio e tv)”. (baixe aqui a sentença completa)
A GM entrou com recurso no Tribunal de Justiça de Mato Grosso e foi novamente condenada, em 2010, por 2 votos a 1. Os desembargadores, no entanto, reduziram a indenização para R$ 200 mil a cada autor da ação e suspenderam o pedido da juíza para que fosse feita a comunicação pública. Finalmente, no ano passado, no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, as partes chegaram a um acordo. A empresa aceitou pagar R$ 6 milhões no total.
Um valor baixo diante das circunstâncias, segundo o advogado da família, André de Paiva Pinto: “Morreram quatro pessoas de forma violenta e o valor ganho individualmente por autor corresponde a menos de 20 minutos, num período de um ano, do faturamento da GM. Isso, considerando só o parque industrial de São Caetano do Sul”, enfatiza.
Na opinião do advogado, a indenização acaba por causar efeito contrário do que deveria: “Em vez de estimular o fornecedor a que busque mecanismos de controle para que o vício no produto ou serviço não se repita, sob pena de abalar a saúde financeira do negócio, a indenização é de proporção inexpressiva. Diante dos custos de correção do vício, se mostra mais vantajoso para a empresa pagar indenizações, o que perpetua o desrespeito ao consumidor sob a lógica financeira do empresário”, diz.
Para Edda Pedemonte Araújo, o mais grave foi a não comunicação do defeito. “Queremos um recall para reparar todos os Vectras com esse defeito e evitar que outros percam a família de forma tão horrível”, exige.
Ouça um trecho da entrevista de Edda:
Documento da GM cita defeito
Durante a pesquisa realizada para embasar o processo de Mato Grosso, o advogado André e os familiares das vítimas levantaram 59 casos em que carros do modelo Vectra, fabricados principalmente entre 1996 e 1999, explodiram, sendo 30 sem motivo aparente, nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
Foi quando decidiram fundar a Associação Brasileira de Consumidores Automotivos (ABCAuto) e tiveram acesso a um boletim de informação técnica sobre o Vectra, datado de fevereiro de 1998. O documento, de autoria da General Motors do Brasil, foi distribuído a revendedoras e oficinas autorizadas para alertar sobre um problema no chicote da bomba de combustível do veículo. “A peça, em decorrência do comprimento dos cabos e do balanço do comburente (combustível) pode tocar os terminais elétricos, provocando o derretimento da proteção e, consequentemente, falha”, descreve.
“Em outras palavras, eles estão dizendo que pode ocorrer um curto-circuito dentro do tanque de combustível. O resultado disso é óbvio. Vapores e gases de combustível em contato com faíscas dão em explosão”, esclarece João Valentim Bin, engenheiro mecânico especializado em desenvolvimento e testes de motores a combustão interna e combustíveis alternativos, e ex- supervisor na Engenharia de Testes e Desenvolvimento da Detroit Diesel Allison do Brasil, divisão da General Motors para desenvolvimento de motores.
A recomendação do boletim era para que, caso os veículos dessem entrada com problema de queima de fusível da bomba de combustível, o chicote deveria ser verificado. No verso, há uma ilustração do procedimento para a correção do defeito e um aviso para que sejam atendidos apenas veículos dentro do período de garantia (PDF do documento).
O boletim técnico estava com o Ministério Público de São Paulo, já que diversas denúncias contra a montadora haviam sido feitas pela Associação Nacional das Vítimas das Empresas Montadoras e Concessionárias Automotivas (Anvemca), sediada em Caraguatatuba, no Litoral Norte de São Paulo.
Para o advogado André de Paiva Pinto, o documento é uma prova da omissão da GM. “Até hoje, a GM se nega a dar explicações sobre os casos de explosões dos Vectras, além de ter omitido o boletim. Com ele, o vício de concepção do veículo está escancarado. Há problemas gravíssimos na bomba de combustível do Vectra e a montadora conhecia o defeito há, pelo menos, 18 meses antes do sinistro de Mato Grosso e mais de dez anos antes das ocorrências do Mato Grosso do Sul e do Espírito Santo. Por que não foi obrigada a fazer o recall?”, indaga.
Em 20 de março de 2006, o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) emitiu a Recomendação 11/2006 para que o Ministério da Justiça notificasse as montadoras de todo o território nacional sobre a emissão desse tipo de documento sigiloso: as “ações de oficina”, “campanhas de serviço”, “operações de campo”, “orientações de serviço para revisão” e “boletins de informação técnica”.
De acordo com a recomendação, o reconhecimento dos defeitos por parte das empresas ocorre somente “por comunicação direta das montadoras às concessionárias sem qualquer controle, seja pelo poder público, seja por entidade representativa dos consumidores”. Ou seja, quase ninguém fica sabendo.
Assinada pela procuradora da República, Cristina Marelim Vianna, a medida ainda exige das montadoras que deposite documentos como os boletins de informação técnica na Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon) – na época, chamada de Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor – e diz que os órgãos públicos devem fiscalizar o material e ordenar a imediata realização do recall.
Recall e omissão
Em tradução livre, recall significa “chamada de volta”. O Código de Defesa do Consumidor, de 1990, prevê que produtos defeituosos ou que contenham vícios ocultos, podendo colocar em risco a segurança e a saúde dos cidadãos, devem receber convocações para checar e consertar eventuais problemas.
A omissão diante do caso Vectra é chocante. O documento interno da GM chegou a vários órgãos públicos fiscalizadores. A Senacon, ligada ao Ministério da Justiça, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e a Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados foram informados e também receberam relatórios de explosões e de vítimas de todas as regiões do Brasil. Mesmo assim, nada aconteceu.
A Senacon está há cinco anos em estágio de “averiguação preliminar” – o que serviu de justificativa para negar à reportagem da Pública e RBA o acesso aos documentos sobre o caso, mesmo após dois pedidos feitos pela Lei de Acesso à Informação. A secretaria também se recusou a dar informações ou entrevistas via assessoria de imprensa.
“Em 2008, a Senacon já apurava a situação. Como podem alegar estágio de averiguação preliminar em 2014?”, pergunta o advogado André de Paiva Pinto, que também teve negado o acesso ao procedimento completo.
Jaílton de Jesus Silva, fundador e presidente da Anvemca, explica que os boletins são procedimentos repassados aos prepostos, ou seja, às concessionárias e oficinas. “Elas ‘passam em branco’ defeitos que chamamos de ‘vícios ocultos ou defeitos surpresa’, de difícil visualização pelo consumidor. Por isso, damos o nome de recall branco a esse expediente. Nesses casos, só as concessionárias e oficinas são informadas dos defeitos e não há campanha de recall de verdade. Os consumidores não recebem chamado algum. Não são atendidos os requisitos previstos no CDC. Portanto, é crime”, esclarece.
O Código de Defesa do Consumidor, nesse sentido, é claro. No artigo 10º, o texto observa que o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que “sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança”. Quanto à descoberta posterior do defeito, o texto completa que “o fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários.” A lei prevê multa e prisão de seis meses a dois anos a quem deixar de comunicar a nocividade ou periculosidade de produtos que estão no mercado.
Quem resolve?
Em 2008, o engenheiro mecânico João Valentim Bin foi chamado para fazer o laudo sobre o desprendimento da roda traseira de um Fiat Stilo de Brasília, no que ficou conhecido como “caso Carla Barbosa”, nome da proprietária do carro que capotou depois de perder a peça. Tratava-se de uma falha no componente conhecido como “cubo da roda”. Bin teve papel fundamental para que saísse o recall de mais de 52 mil unidades do Stilo, em 2010, o que não ocorreu sem dificuldades. A perícia elaborada por ele embasou as ações de consumidores na Senacon e na justiça.
Para o engenheiro, com larga experiência em recalls, a existência do boletim de informação técnica, das explosões já ocorridas e os indícios que as relacionam deveriam ser suficientes para a Senacon obrigar a GM a convocar o recall. “O que mais é preciso? Outras mortes?”, questiona.
Bin também critica os moldes em que é fiscalizada a produção do setor automobilístico brasileiro. Para começar, a responsabilidade pelo tema é partilhada por três entidades de dois ministérios diferentes – Contran e Denatran, do Ministério das Cidades, e Senacon, do Ministério da Justiça – que não têm competência técnica para cuidar de um assunto tão complexo. “Não existe infraestrutura laboratorial para avaliar defeitos como esse. Deveria haver um centro de inteligência automobilística nacional e público, com peritos que analisassem dados de acidentes. Eles poderiam, por exemplo, ser enviados pelas polícias rodoviárias, Polícia Militar, departamentos que cuidam de trânsito e seguradoras. Precisaria também de um campo de testes financiado pelo governo, para que as vítimas não tenham que pagar por perícias”, analisa.
Um exemplo de trabalho de prevenção baseado em indícios vem da própria General Motors, mas na Austrália. Em janeiro de 2008, a GM Holden, filial australiana da montadora, anunciou um recall de 86 mil veículos vendidos no Oriente Médio, Nova Zelândia, Austrália e, inclusive, no Brasil. O modelo era o Ômega, anos 2006 e 2007, que, assim como o Vectra, é um sedã de luxo da linha Chevrolet. A convocação foi feita por haver risco de vazamento de combustível do motor, o que poderia causar incêndios provocados pelo atrito com uma mangueira do sistema. Naquela época, o porta-voz do grupo, John Lindsay, afirmou que a chamada era preventiva, pois a possibilidade de incêndio seria baixa. “As chances disso acontecer são muito baixas, mas, obviamente, estamos optando pelo excesso de precaução”, observou. Em solo brasileiro, foram 784 as unidades convocadas para reparos.
Normalmente, porém, no Brasil, o Denatran e a Senacon agem apenas se provocados. “São as vítimas das montadoras que precisam levar indícios de vícios e defeitos aos órgãos. As vítimas, além de sofrer com as perdas, até com mortes, têm que gastar com peritos e fazer investigações próprias”, relata João Bin.
No caso do Vectra, o Denatran reconheceu em nota que “desenvolveu estudo sobre os casos de incêndio dos veículos Vectra por demanda da Senacon”, mas não revelou as conclusões à reportagem: “O estudo final está em poder do Ministério da Justiça e, por envolver vítimas fatais, só a Senacon pode fornecer informações sobre a matéria. Na abrangência do Denatran, o assunto foi concluído com a finalização da investigação realizada pelo Cesvi (Centro de Experimentação e Segurança Viária, empresa contratada para a apuração)”.
Obtido pela reportagem, o estudo de 151 páginas não chega a conclusões. Depois de discorrer longamente sobre a “história do Vectra no Brasil” e explicar como ocorre um incêndio, o Cesvi alega não ter conseguido quase nenhum contato com vítimas ou automóveis envolvidos nas explosões e menciona “falta de veículos acidentados”. Entre os 12 casos avaliados, poucos têm relação com as denúncias da ABCAuto que estão na Senacon e, em quase todos, as observações são evasivas: “não existem condições técnicas para analisar adequadamente o acidente”, “fica impossível levantar uma hipótese confiável sobre o motivo do incêndio”, “não é possível precisar exatamente o ocorrido”.
O Cesvi admite, ainda, que teve acesso a apenas um carro “para análise mais detalhada”. Nesse caso, o relatório indica como provável causa de curto-circuito uma lâmpada “mais potente” trocada nos faróis, o que, segundo a empresa, “compromete a análise de prováveis defeitos originais do veículo que possam ocasionar incêndios”. No final do relato, a sugestão aos órgãos públicos é pela “continuidade das avaliações”.
André de Paiva Pinto, porém, afirma que o Cesvi poderia ter feito um estudo mais completo se quisesse: “Eu mesmo passei ao Cesvi dados das explosões. Houve casos em que passei contatos das vítimas. Eles não foram atrás e produziram um estudo de um absurdo completo, unilateral. Não tiveram a curiosidade de escutar as vítimas. Fizeram análises a distância e de casos que nem tinham relação com as denúncias”, conta o advogado.
A reportagem procurou, por telefone e email, a General Motors do Brasil para escutar a posição sobre as denúncias envolvendo o Vectra. Depois de um mês de tentativas, a assessoria de imprensa afirmou, por telefone: “Não temos interesse nessa pauta”. Por email, foi prometido um retorno, nunca cumprido.
Audiência aprovada, mas jamais realizada
Em 2009, a Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, em Brasília recebeu da ABCAuto o pedido de audiência pública para analisar os casos de explosões do Vectra. Ele foi acolhido pelo vice-presidente da Comissão à época, o deputado federal Filipe Pereira (PSC-RJ), após o recebimento de um relatório da entidade que continha a descrição de 40 casos (hoje, a ABCAuto afirma ter registro de 59 explosões do modelo Vectra). “Diante das informações apresentadas, faz-se necessário a atenção da Comissão de Defesa do Consumidor”, afirmou o parlamentar, ao pedir a audiência pública.
Entretanto, o ex-deputado Celso Russomanno, conhecido por defender os direitos do consumidor – bandeira que o projetou politicamente – se posicionou contra o relatório. Disse que fez um levantamento sozinho e só encontrou dois casos e que a proposta parecia uma “tentativa de desmoralização da GM”.
Mesmo assim, a comissão aprovou, numa reunião deliberativa ordinária, a realização da audiência. A ata com a aprovação do requerimento é de 29 de abril de 2009. Contudo a data jamais foi definida.
Desde então, o requerimento perdeu a validade. A secretaria da comissão alega que o documento deve ser refeito, já que só seria válido para aquele ano legislativo. Dessa forma, é necessário que um deputado integrante da atual formação do órgão reapresente a solicitação, o que permitiria a realização da audiência.
Nos EUA, GM foi acusada de esconder defeitos
Desde fevereiro deste ano, a matriz da General Motors, localizada nos Estados Unidos, está em crise. A montadora anunciou um recall envolvendo pelo menos 2,6 milhões de veículos por falhas no controle de ignição que podem afetar o circuito elétrico e desativar airbags. Todos os veículos são produzidos nos EUA e vendidos na América do Norte. De acordo com denúncias apuradas por órgãos reguladores de segurança, dois comitês do Congresso norte-americano e o Departamento de Justiça, a GM esperou 13 anos para trocar as peças: a empresa detectou o problema no ano de 2001, mas só tomou providências de correção em 2014.
Os órgãos públicos já admitem ao menos 13 mortes, ocorridas em 32 casos de diversos modelos da marca. Contudo, um levantamento feito pela Friedman Research Corporation, empresa norte-americana que analisa dados de segurança veicular e que enviou informações à agência reguladora National Highway Traffic Safety Adminstratiom (NHTSA), menciona 303 mortos.
O recall foi dirigido a donos de veículos esportivos utilitários, dos modelos Buick Enclave e GMC Acadia – fabricados entre 2008 e 2013 – Chevrolet Traverse, dos anos de 2009 a 2013, Saturn Outlook, de 2008 a 2010, Chevrolet Express e GMC Savana, produzidos desde 2009, bem como Cadillac XTS, fabricado entre 2013 e este ano.
Convocada ao Senado dos EUA para uma audiência de mais de duas horas no último dia 1º de abril, Mary Barra, atual CEO da empresa, insistiu que a cultura da montadora estava mudando: “Isto (a audiência) começa com minhas sinceras desculpas a cada um que tenha sido afetado por este recall. Estou muito aflita. A GM de hoje fará o que for correto”, garantiu, diante de uma comissão do Comitê de Energia e Comércio da Câmara de Representantes, em Washington. No entanto, quando questionada pelos senadores, ela foi evasiva e alegou não ter informações suficientes para responder a várias perguntas, até mesmo se a GM indenizaria as vítimas. Nesse caso, Mary disse que a fabricante “ainda não havia decidido”.
Quando indagada a respeito dos documentos internos de 2001, que segundo o senadores revelam que a General Motors decidiu não substituir as peças com defeito por que a operação teria alto custo, Mary Barra disse que isso “não é algo aceitável”, mas não explicou o que aconteceu: “Não posso dizer por que levou anos para anunciarem um defeito de segurança, mas vamos investigar”.
Não é a primeira vez que a matriz enfrenta uma crise por defeitos de fábrica. Em 1999, na Califórnia, foi condenada a pagar uma indenização histórica por um acidente sofrido por Patricia Anderson, seus quatro filhos e um amigo, às vésperas do Natal de 1993. Eles estavam numa picape Chevrolet Malibu, que pegou fogo. Não houve mortes, mas todos os passageiros sofreram queimaduras graves.
A justiça concedeu aos seis, inicialmente, U$S 4,9 bilhões como reparação pelos danos físicos e emocionais sofridos. Mais tarde, em instância superior, o valor foi reduzido para U$S 1,2 bilhão, ainda assim, considerado um recorde.
Alguns boletins internos da GM (semelhantes ao do caso Vectra no Brasil e aos da atual crise na matriz da empresa nos EUA) auxiliaram na comprovação da tese de acusação. Dentre as tecnologias disponíveis, a montadora escolheu economizar de US$ 4 a US$ 12 por veículo, tornando os tanques de combustível menos resistentes.
Outro documento que incentivou a sentença foi o “Memorando Ivey”. Elaborado nos EUA em 1973 pelo engenheiro projetista da multinacional Edward C. Ivey, o memorando demonstrava à empresa que a economia feita nos projetos de milhões de unidades compensaria o gasto com possíveis indenizações. Revelado em 1999, ele foi divulgado pela mídia norte-americana, inclusive com a transcrição publicada (leia aqui, em inglês).
Além de estar sujeita a arcar com grandes indenizações por descasos nas relações de consumo, a GM enfrenta crises em sequência no próprio quintal, inclusive econômicas, como a de 2008/2009, que levou a empresa a pedir concordata e socorro financeiro bilionário ao governo dos EUA. Já no Brasil, a situação caminha no sentido oposto. A fabricante do Vectra vê suas vendas crescerem ano a ano no país, como mostra o infográfico. Ou seja: dinheiro tem.
Edição de vídeo e áudio, e infográfico por Alexsandro S. Goes.
Filmagem por Filipe Granado.
Essa reportagem foi financiada pelo projeto Reportagem Pública, em parceria com a Rede Brasil Atual.