João Paulo Barreto* – Amazônia Real
Educação indígena ou mesmo educação escolar indígena é assunto bastante complexo quando se fala em sistemas próprios de cada povo ou de como construir uma educação escolar indígena em um universo de diversidade cultural no mesmo território. Para alívio, a característica mais comum entre os povos seja a Oralidade como uma marca registrada de produção e de construção de conhecimento, mas ela implica uma série de outras práticas e fatores, que aqui não cabe discutir.
A institucionalização dos conhecimentos indígenas depara num desafio ainda maior, na medida em que, como expressa bem Justino Rezende, do povo Tuyuca:
“Muitos desses discursos entre os nossos sábios indígenas não são feitos apenas dentro de eventos grandes e públicos, mas são feitos nas conversas do dia a dia. Na roça enquanto cortam folhas de ipadu, folha por folha, enchendo o pequeno aturá, sentados de cócoras, exercitam sua paciência, meditam sobre o mundo que está ai e para onde vai a humanidade, para onde os homens e mulheres atuais pensam em caminhar e construir suas histórias. Esses pensamentos florescem quando se sentam nas casas rituais, comendo ipadu, fumando cigarro, passando um para o outro esses elementos geradores dos saberes. Os saberes novos surgem entre falas sérias intercaladas com gostosas piadas. As seriedades, brincadeiras, gargalhadas, apelidos são ingredientes que dão bom sabor aos ambientes dos saberes.”
Dentro dessa realidade é que se promove a Educação Escolar Indígena, onde valores e significados de cada povo estão em jogo. A liberdade de viver e pensar e a necessidade de organizar os territórios obrigam lançar mão dos modelos convencionais, do universo de conceitos objetivos ditos universais e alimenta uma Educação específica, intercultural e diferenciada de qualidade.
Fico pensando: qual seria o papel das instituições de produção e estudo dos conhecimentos indígenas? Na medida em que, o modelo de produção e de reflexão de conhecimentos indígenas é da ciência. Particularmente, me pergunto: o que seria um espaço para a Educação Escolar Indígena? Qual seria o papel, como um espaço de formação e de produção de conhecimento indígena?
A formação de especialistas indígenas, yai, kumu ou baya (no caso dos Tukano), e outras especialidades possui seu fundamento cosmológico e espaço próprio, onde o “corpomítico” é fundamento para a experiência cotidiana. Mais que isso, a formação dessas especialidades é específica em cada povo. Isto é, os Yanomamytêm seus fundamentos cosmológico específicos para formar seus especialistas, assim como, os Tukano têm os seus; ou seja, seus rituais de iniciação, suas regras alimentares, abstenção sexual e bahsesse próprios para esta finalidade. Assim cada povo constitui sua cosmologia própria para formar seus especialistas.
A provocação é, como conectar estas especificidades dos povos com os objetivos da instituição? Penso que, em princípio, essa iniciativa (escolas/instituto/universidade) seria um espaço de concentração de vários povos. Como um espaço democrático, ele pode oportunizar, por exemplo, a “reflexidade” sobre os conhecimentos indígenas, lançando mão dos métodos científicos, e assim, evidenciar conceitos, categorias de classificação de animais, vegetais especificamente indígenas.
Esta forma de estudo perpassa pela análise do sentido das narrativas míticas, produzindo texto com linguagem capaz de abrir um diálogo com a comunidade exterior, isto é, fora da aldeia. Tais produções podem levar a propositura de uma grade curricular de disciplinas como: Introdução à teoria dos conhecimentos indígena; Introdução ao estudo de narrativas indígena; Introdução ao bahsesse; Introdução ao bahsamori. Mas também introdução aos princípios de fermentação de caxiri, técnicas de construção de armadilhas, etc. Isso significa formar jovens estudantes indígenas capazes de refletir sobre os conhecimentos indígenas e não em especialistas indígenas nos moldes tradicionais.
De igual modo, esses espaços devem ser lugares de motivação para a formação de especialistas indígenas, abarcando a especificidade de cada povo, isto é, como uma profissão as especialidades yai, kumu ou baya (no caso dos Tukano) “reconhecimento público”, de fato e de direito. Assim, quem quisesse formar numa especialidade indígena teria a mesma oportunidade de quem quisesse formar nas áreas da “reflexividade” sobre os conhecimentos indígenas.
Nessa lógica, os espaços institucionalizados de ensino seriam ao mesmo tempo lugares de produção de pensamento filosófico e tecnológico indígena, bem como de um espaço de formação de especialistas indígenas. Assim sendo, acredito que os conceitos indígenas ficariam evidenciados e prontos para um diálogo intercultural com a ciência.
*Indígena da etnia tukano, nascido na aldeia São Domingos em São Gabriel da Cachoeira (AM). É graduado em Filosofia e mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).