A Monsanto além do mito

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Transnacional foca atuação no Brasil e lança “nova” variedade de soja transgênica. Livro-documentário expõe sua relação com modelo agrícola que é preciso superar

Por Juliana Dias, editora do site Malagueta

O livro-documentário O Mundo Segundo a Monsanto, escrito pela jornalista francesaMarie-Monique Robin, em 2008, é uma daquelas leituras desconcertantes, que me fez uma leitora-investigadora, enquanto avançava com apetite por suas páginas. A autora foi cuidadosa e hábil ao compor o quebra-cabeça complicado com a saga da empresa norte-americana, pioneira na comercialização de produtos químicos e transgênicos.

Com precisão de datas, trechos de relatórios confidenciais, inúmeros estudos científicos, entrevistas, matérias de jornais, Monique cruzou informações para construir uma narrativa que está intrinsecamente ligada com a provisão de alimentos, a cultura, a sociedade, a economia, a política e a saúde há 112 anos, período de existência da empresa. E com vigor para prosseguir com longevidade seus domínios, cada vez mais perto, mais onipresente na terra, na mesa, no corpo. A obra, infelizmente, não é um dossiê maquiavélico do passado. Está se desenrolando vivamente.

Enquanto devorava seu conteúdo, reuni fatos atuais, que dão continuidade, ou reforçam, a rica contribuição de Monique para o debate sobre o sistema alimentar moderno. Localizei diversos trechos do livro sendo utilizados em discursos do presente. Trata-se de uma clara demonstração de que ainda há muita água para rolar debaixo dessa ponte, contaminada com a semente que supostamente salvará o mundo.

Monique não conseguiu entrevistar os atuais representantes da Monsanto. Não por falta de tentativa. Mas a empresa de St. Louis (cidade-sede da corporação) publicou nota, por meio de sua assessoria de imprensa, sobre o referido trabalho, limitando-se a descredenciar uma excelente investigação jornalística. “O projeto chamado O Mundo Segundo a Monsanto lança ataques contra a empresa e a biotecnologia e repete alegações que há muito tempo já foram descartadas por renomados cientistas internacionais. Tanto o livro quanto o vídeo extraem eventos de contextos específicos com o intuito de retratar a Monsanto de maneira desfavorável”, informa o release. Este texto é exatamente como Monique descreve a postura da empresa.

A nota expõe uma defesa dos venenos PCB (bifenilos ploriclorados), Agente Laranja e BST, argumentando que as empresas que fabricavam já foram vendidas; e se esconde na ciência para afirmar que, no caso dos PCBs, por exemplo, “o peso esmagador da evidência científica confiável estabelece que a exposição aos PCBs, exceto em níveis muito altos, não causa algum efeito adverso às condições da saúde humana”.

Outro ponto refutado pela companhia é sobre a sua possível relação com os casos recorrentes de suicídio dos agricultores indianos. A monocultura do algodão na Índia é cultivada, em grande parte, com o pacote tecnológico, que inclui sementes e fertilizantes da Monsanto. Para adquiri-los a cada safra (pois podem ser utilizados uma única vez), os pequenos produtores contraem dívidas, que muitas vezes não conseguem pagar com o lucro da colheita. O porta-voz da multinacional lamenta e retoma o discurso habitual: “Estudos científicos independentes realizados por renomadas entidades citam o endividamento como uma das principais razões para o suicídio”, mas argumenta que as causas desse problema não devem ser analisadas por fatores isolados. A mesma argumentação serve para tratar do sistema alimentar moderno, que não deve ser encarado apenas por um ângulo: o da biotecnologia, como sugerem os defensores dessa tecnologia, apontada como solução para prover alimentos em quantidades suficientes para uma população crescente, e ainda acabar com a fome.

Meio século em solo brasileiro: controvérsias

O ano de 2013 foi emblemático para a Monsanto. A empresa completou 50 anos no Brasil com o lançamento comercial no país das sementes da soja Intacta RR2 PRO, primeira tecnologia desenvolvida em solo brasileiro. Segundo o release da companhia, este será “o principal fator de crescimento da nova plataforma global de tecnologia para soja da Monsanto”. Ou seja, todas as apostas estão no chamado “celeiro do mundo”, sobre o qual Paul Roberts afirma que não é bem assim. E é para a China (o principal mercado mundial) que o Brasil vai exportar esse grão transgênico.

Três em um. É assim que Monsanto vende seu produto, supostamente revolucionário: “resultados de produtividade sem precedentes; tolerância ao herbicida glifosato proporcionada pela tecnologia Roundup Ready (RR); controle contra as principais lagartas que atacam a cultura da soja”. A justificativa quanto ao otimismo se deve ao fato de que o Brasil é o segundo maior produtor de transgênicos no planeta, perdendo apenas para os EUA.

A Monsanto espera substituir a tecnologia Roundup Ready (RR), presente em quase 90% das lavouras de soja do país, e cuja patente venceu em 2010.

A Monsanto do Brasil tem 36 unidades distribuídas por 12 estados brasileiros – Alagoas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul, São Paulo e Tocantins – e o Distrito Federal. São 19 unidades de pesquisa, 8 unidades de processamento de sementes, 2 unidades de produção de herbicidas, 3 unidades de vendas, 1 unidade de distribuição e 3 escritórios administrativos. Em 50 anos, a norte-americana avançou e montou uma base consolidada para seguir seus planos de salvar o mundo. “Quem os nomeou para esta divina missão?

Um plano para “salvar o mundo”

Da guerra à mesa, as invenções, ou apropriações, da Monsanto são apresentadas como soluções para salvar o mundo. No entanto, essa gigante da indústria tem força política, econômica e acadêmica para seduzir ao seu bel prazer e punir os que se opõe a sua marcha do bem (para quem?). Para alguns, está mais para anticristo do que para salvador. Depois de 50 anos, a Revolução Verde não acabou com a fome como havia prometido. E em 2013, a empresa mantém seu otimismo fanático de que pode redimir o ser humano de suas mazelas, como a fome e a desigualdade.

As promessas não foram cumpridas. Esse suposto salvador não tem plenos poderes. Ao contrário do que se espera de uma divindade, falhou. Mas continua com sua doutrina arrematando fiéis. A solução milagrosa é a biotecnologia. O alimento foi decomposto em nutriente e, agora, está resumido a um gene. Nesse sentido, o homem fica mais distante da natureza, dessa relação em que Graciliano Ramos tanto exaltou em sua obra, ou do que Michael Pollan alertou sobre a necessidade de olhar o alimento com a lente ecológica. Quem sabe o cidadão do século XXI poderá despertar como Jacinto de Tormes, personagem de Eça de Queiroz, em A Cidade e as Serras? O caso é apropriado para pensar a relação entre o homem e a modernidade.

Ao retornar a sua cidade natal, Tormes, em Portugal, o nobre e sofisticado Jacinto curou-se da frustração da moderna Paris do século XIX com uma refeição frugal: “E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo, assim, cada travessa, em louvores mais copiosos”. Ele se esbaldou com frango dourado assado no espeto, a salada que colheu na horta e o vinho produzido na região. Voltou às origens para reviver. Religou-se a sua terra enquanto havia tempo e revigorou-se. Se o alimento é tratado como um gene, como construir uma relação como esta descrita por Queiroz?

O oráculo Monsanto (que não tem cara, nem voz) apresenta a última palavra, literalmente, para redimir a humanidade do caos que está por vir: alimentar 9 bilhões de habitantes (previsão para 2050) com engenharia genética. Quem está disposto a crer para ver esse milagre?

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