‘Estamos caminhando para um extermínio “legal” dos indígenas’, diz dom Erwin

dom erwinNayá Fernandes – Jornal O São Paulo

Dom Erwin Kräutler, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e bispo na prelazia do Xingu concedeu uma entrevista ao O SÃO PAULO, quando estava em Altamira, Estado do Pará, onde passa a rodovia Transamazônica. Ele foi recebido pelo papa Francisco, no último dia 04 de abril, para uma audiência cujo tema principal eram as violações aos direitos indígenas no Brasil.

O bispo, que, junto ao assessor teológico do Cimi, padre Paulo Suess, entregou ao Papa um documento com um relatório sobre a questão indígena no Brasil, foi convidado por Francisco para uma colaboração estrita na elaboração de uma nova encíclica sobre ecologia.

JOSP – Como o senhor avalia o interesse do Papa e da Igreja em todo o mundo pela questão indígena brasileira?

Dom Erwin – O Papa disse em seu discurso aos bispos do Brasil, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, que a Amazônia é um “teste decisivo para a Igreja e a sociedade brasileiras”. Penso que o mesmo pode ser dito a respeito da questão indígena, que nos desafia a todos e requer uma resposta de compromisso da Igreja para com esses povos, sempre colocados de escanteio e considerados pelo sistema econômico como “supérfluos” e “descartáveis” (Cf. DAp 65) porque “não produzem”.

JOSP – Mesmo com apoio de parte da mídia e todas as manifestações, o “genocídio silencioso” dos povos Guarani e Kaiowá, no Estado do Mato Grosso do Sul, continua. Quem deve assumir esta causa para que tenha um fim?

Dom Erwin – Esse caso já brada aos céus. Quanto tempo já passou e nada foi resolvido! Falta vontade política. Quantos indígenas têm que morrer ainda até que os parâmetros constitucionais sejam cumpridos. A razão de tanta demora em solucionar a questão são os interesses do agronegócio, é a soja, é a cana de açúcar, é o boi, que, para os governos federal e estadual, são sinônimos de progresso e desenvolvimento.

JOSP – Petróleo, açúcar, gado, hidrelétricas, mineradoras são algumas das ameaças aos indígenas. Mas, poderíamos detectar uma ameaça principal?

Dom Erwin – O problema subjacente à marginalização dos povos indígenas é um conceito equivocado de desenvolvimento. Se desenvolvimento é entendido apenas como crescimento econômico e aumento das exportações, aí, o índio é considerado estorvo, obstáculo, empecilho e atrapalha. Por isso, ele tem que desocupar suas terras, cair fora. Se ele defender os seus direitos, corre risco de vida e um povo todo é ameaçado em sua sobrevivência não apenas cultural, mas também física. Aí acontece o “genocídio silencioso”. Se, ao contrário, entendemos desenvolvimento como melhor qualidade de vida para todos, então os indígenas são valorizados e sua sabedoria milenar considerada uma riqueza para todo o Brasil.

JOSP – O papa Francisco o chamou para contribuir em uma encíclica sobre ecologia. O senhor poderia detalhar um pouco mais o conteúdo e objetivo da encíclica?

Dom Erwin – O Papa me falou no dia 04 de abril que pretende escrever uma encíclica sobre a ecologia e já encarregou o cardeal africano Peter Turkson, presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz, a preparar um esboço. Ainda não há detalhes. O Papa apenas frisou que o tema será abrangente e incluirá “também a ecologia humana”. Falei então para ele que a Amazônia, devido à sua vocação específica no planeta Terra, não poderia faltar nesta encíclica como também os povos indígenas deveriam ser lembrados. Disse ainda a ele que, no dia anterior, havia prometido minha contribuição nesse sentido ao cardeal Turkson. Aí o Papa agradeceu minha disponibilidade de colaborar.

JOSP – Poderíamos dizer que o Brasil caminha para um extermínio legal indígena?

Dom Erwin – Lamentavelmente, se os rumos não mudarem, estamos caminhando para um extermínio “legal”. As Portarias 419/11 e 303/12 e o Decreto 7957/13 do Poder Executivo, as Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) 215/00, 038/99 e os Projetos de Lei 1610/96 e 227/12, do Poder Legislativo, e o instrumento das “Suspensões de Segurança”, do Poder Judiciário, vão nessa direção. Creio que a mais perigosa ameaça aos povos indígenas é a PEC 215, em que a bancada ruralista quer arrancar do Executivo a prerrogativa de demarcar áreas indígenas que é um processo técnico que exige estudos antropológicos, etnológicos, cartográficos, para determinar se uma área é terra indígena ou não. Esses estudos não podem ser submetidos a uma votação no Congresso. Pior, essa bancada ruralista quer mudar a Constituição Federal em relação aos povos indígenas. Essa onda anti-indígena no Congresso Nacional é um tremendo retrocesso e arranha a imagem do Brasil no exterior.

JOSP – E sobre a não demarcação de terras indígenas nos últimos anos. Que prejuízos esta ação do governo tem causado e pode causar nos próximos anos?

Dom Erwin – A paralisação das demarcações perpetua conflitos e violências contra os povos indígenas. A demarcação de todas as áreas indígenas no Brasil deveria ter sido concluída já em 1993, pois a Constituição Federal de 1988 estabeleceu o prazo de cinco anos para esses procedimentos. Das 1.046 áreas indígenas no Brasil apenas 464 são homologadas ou registradas ou então declaradas como tais. Quer dizer apenas 44,3% do total. Uma área indígena não demarcada escancara as portas para todo tipo de invasão, conflito e violência.

JOSP – Belo Monte é um caso emblemático de desrespeito às populações locais em vista de um grande projeto. Como estão vivendo as populações afetadas?

Dom Erwin – Acabo de receber a notícia de que “a Justiça Federal obrigou a Norte Energia S.A. a cumprir uma das condicionantes indígenas da usina de Belo Monte, que trata da proteção territorial das Terras Indígenas impactadas pelo intenso fluxo de migrantes que a obra atraiu para a região. Essa condicionante está com várias pendências e, de acordo com o juiz Frederico de Barros Viana, a falta de proteção territorial pode ‘ocasionar prejuízos irreversíveis às comunidades indígenas afetadas pelo empreendimento hidrelétrico‘”. Essa medida judicial, lamentavelmente, chega tarde demais, pois o estrago já está feito. Todas as condicionantes elencadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) e a Funai (Fundação Nacional do Índio) deveriam ter sido cumpridas antes da instalação do canteiro de obras. O governo passou por cima de toda e qualquer legislação para dar início às obras e sempre mandou derrubar em tempo recorde qualquer liminar em favor dos índios, dos ribeirinhos, dos colonos que vivem na área atingida ou das famílias diretamente afetadas na cidade de Altamira. As comunidades indígenas já são desmanteladas e aplicar só agora medidas de proteção não passa de um paliativo póstumo. Belo Monte, para o governo, é indiscutível, doa a quem doer! Essa é a realidade nua e crua.

JOSP – E sobre os indígenas urbanos? Em São Paulo, por exemplo, os Guaranis no Jaraguá, à beira de uma rodovia, estão confinados a um espaço pequeno, sendo privados de sua dignidade. Como favorecer que eles mantenham sua cultura e tradição numa megalópole?

Dom Erwin – A questão dos índios urbanos dá dó. É um dos maiores problemas para toda a Pastoral Indígenista. Sabemos que é impossível aos índios manterem sua cultura num ambiente fora das suas aldeias. As influências que sofrem em cidades grandes ou megalópoles, como São Paulo, são negativas para uma comunidade indígena porque qualquer cultura é vinculada ao habitat tradicional de um povo e uma vez perdido esse laço com a terra permanecem apenas recordações “daquele tempo de aldeia”. A língua, que é expressão da cultura, em pouco tempo se perde. Os filhos que nascem na cidade não a falam mais. O que se pode fazer é reunir os membros deste ou daquele povo e ajudá-los em termos de habitação, educação, saúde, segurança. No mundo urbano, os índios quase sempre são estigmatizados, tratados como párias. Vivem numa “periferia existencial”, como nosso Papa Francisco se expressa.

JOSP – O senhor já relacionou o Pessach à migração indígena em busca da terra sem males?

Dom Erwin – Páscoa não é fato consumado, Páscoa é sempre caminho aberto. Conto uma história: Há milhares de anos, os índios viviam em terras doadas por Deus. Não se rebelaram contra Deus. Pelo contrário, sempre prestavam culto a Deus, dançaram e cantaram já de madrugada seus salmos milenares e Lhe agradeciam pelo sol que sempre nasce de novo. Muitos séculos passaram e um dia levantou-se o esquadrão de Caim e começou a matar um Abel atrás do outro. Alguns fugiram e passaram a viver no exílio, na imundície das beiras de estrada ou favelas. O esquadrão de Caim comemorou, pois, para ele, cada Abel é um demais. E Deus viu essa desgraça, ouviu o clamor dos índios, desceu, chamou os Caim e perguntou pelos índios. E os Caim se zangaram com Deus e responderam: “Acaso somos responsáveis por esses índios? Acaso somos guardas desses miseráveis que ocupam terras férteis que poderíamos explorar para plantar soja, cana de açúcar ou transformar em pasto?” Aí Deus exclamou: “Ouço o sangue de seus irmãos do solo clamar por mim” (cfr. Gn 4,10). E Deus enviou o seu Filho para salvar os índios. No entanto, o esquadrão de Caim matou também o Filho de Deus. Mas seu Sangue derramado despedaçou as armas do esquadrão de Caim, inaugurou uma nova era, tornou-se garantia de Vida, fez os índios saírem da casa da escravidão, ressurgirem das sombras da morte e retornarem jubilosos às suas terras. Aí celebraram a Páscoa e cantaram de novo os cânticos do Senhor.

JOSP – Paulo afirma que a terra “geme em dores de parto”. Estaríamos ainda numa sexta-feira santa ecológica? Ou já existem sinais de ressurreição?

Dom Erwin – Ontem à noite, celebrei na comunidade Santo Antônio de Cipó-Ambé, perto da cidade de Altamira. Falei da paixão e morte do Senhor, que recordamos nesta semana, não na perspectiva de uma interminável Sexta-feira Santa, mas em vista da Páscoa da Ressurreição. Sei que o nosso povo tem mais afinidade com a Paixão do Senhor do que com a Ressurreição, pois experimenta diariamente a cruz. Na merenda comunitária, depois da Santa Missa, alguns homens me falaram do igarapé Cipó, que já está com a água contaminada pelo novo lixão, uma obra planejada, “segundo padrões de primeiro mundo”, como fanfarreiam os construtores de Belo Monte. Esse igarapé é de vital importância para os colonos e suas famílias. A poluição do igarapé que perpassa a comunidade Santo Antônio é apenas mais um exemplo das gritantes agressões ao meio-ambiente que revelam o desrespeito ao nosso povo em suas necessidades mais elementares e resultam em menos qualidade de vida para as famílias. Mas, continuamos lutando pela Vida onde outros semeiam a morte.

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