Grande parte do conhecimento do povo afrobrasileiro deve-se aos relatos orais, passados de geração em geração
Por Daniela Jacinto, em Cruzeiro do Sul
Documentos queimados, invasões de territórios, expulsões, ameaças. Os negros sabiam da dificuldade que enfrentariam ao serem proprietários de terras, mas quando ganhavam um pedacinho de chão de seu “sinhô” ou mesmo conseguiam comprar parte de terras que pertenciam a seus donos, faziam o que estava ao seu alcance para garantir esses direitos às futuras gerações. Com o tempo, os vestígios de suas histórias foram sendo apagados, as senzalas destruídas, algumas prefeituras, câmaras e cartórios sofreram incêndios e assim grande parte do conhecimento do povo afrobrasileiro deve-se aos relatos orais, passados de geração em geração.
Vivem, ainda nos dias de hoje, marcados e com medo.
Os descendentes do escravo alforriado José Joaquim de Camargo são receosos e desconfiados, e confessam que temem morrer. Eles sabem que estão mexendo com “muita gente importante”. Já receberam proposta para vender a escritura de suas terras e também já ouviram alguns “alertas” para pararem com isso. “Querem encobrir a nossa história”, desabafa Luiz Carlos Batista de Camargo, bisneto do escravo alforriado.
A família conta que é difícil, mas está unida e quer que pelo menos sua história seja conhecida. Se não é possível resgatar a história de todos os negros, eles sabem que essas peças que a família está juntando podem representar a luta de seu povo, já que o que estão passando não é diferente do que muitos já vivenciaram.
Luiz Carlos conta que enquanto seu bisavô era vivo todo mundo respeitava suas terras, mas depois é que as invasões começaram, e por consequência o apagão histórico. “As pessoas foram ficando, ganhando posse e vendendo essas posses, muitas delas já passaram para mais de 10 proprietários”, conta Luiz.
A sorte da família foi acreditar nas histórias contadas de geração em geração e por fim terem encontrado a escritura na Cúria Diocesana, bem guardada, graças à orientação que o escravo alforriado havia recebido.
A família Camargo levou anos pesquisando, indo de cidade em cidade, visitando cartórios, em busca de informações e documentos. Conseguiu juntar muita coisa, mas outro tanto ficou perdido, já que muitos papéis viraram cinzas. “Minha avó por parte de mãe também era descendente de escravo, mas não conseguimos reunir informações porque pegou fogo no local onde eram guardados os documentos em Angatuba”, relata Luiz.
Por conta dessas questões, os descendentes do escravo alforriado José Joaquim de Camargo conhecem muitas histórias sobre sua família, algumas facilmente comprovadas com documentos, como por exemplo a escritura datada de 2 de novembro de 1874, quando o negro considerado de confiança conseguiu comprar, por 400 mil réis, uma parte das terras de propriedade do seu sinhô, o capitão Jesuíno de Cerqueira Cezar.
Outros relatos já são mais complicados de provar, pois não constam em lugar algum, como por exemplo o fato de ter muito dinheiro escondido nas terras da região, a questão dos escravos reprodutores e uma das poucas senzalas da região que estaria em uma propriedade em Salto de Pirapora. “Obter esse tipo de comprovação demanda tempo e dinheiro e ninguém tem interesse em financiar uma coisa como essas. Quem estuda história em Sorocaba e região faz por amor mesmo porque não existe interesse econômico”, observa o professor e pesquisador da história regional e dos negros, Carlos Carvalho Cavalheiro. É por esses mesmos motivos – financeiro e também de pesquisa histórica – que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não consegue terminar o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que garantirá à família os seus direitos.
Carências no caminho
De acordo com a antropóloga Paula Elaine Covo, analista em reforma e desenvolvimento agrário do Incra e que está acompanhando o processo dos quilombolas representados pela família Camargo, não é possível estabelecer um prazo para a finalização do RTID. “Começamos os levantamentos antropológicos, fizemos alguns levantamentos para fazer a planta do território, demos uma olhada na situação documental e cartorial deles, mas tem várias situações que causam essa demora”, explica.
Entre essas situações, a primeira, afirma Paula, é que o Incra não está conseguindo obter informações consistentes. “Tem alguns detalhes um pouco confusos que precisam ser conversados com a comunidade. Existe um trabalho de campo a ser feito e de escritório, não é questão de simplesmente juntar documentos. Essa é uma impressão errada que as pessoas têm do nosso trabalho”, diz.
Paula argumenta que esse procedimento é naturalmente demorado. “É muito minucioso, além disso existem algumas situações próprias do funcionamento do setor público. Nós não temos os recursos o tempo todo, do jeito que a gente quer. Às vezes não temos oportunidade de nos deslocarmos a campo, temos de esperar orçamento para fazer algumas coisas”, conta.
Sempre no início do ano, afirma Paula, os funcionários do Incra não têm como fazer muito trabalho de campo. “Por dependermos do repasse de verbas. E nós não temos apenas Os Camargo, temos 48 processos na superintendência. Cada um é um problema, temos muitos problemas e questões a serem vistas e equipe pequena”, desabafa.
Reflexos da senzala
Morar em um lindo casarão, com 12 cômodos e muito espaço para brincar. Que criança não gostaria de viver em um local como esse? Luiz Carlos Batista de Camargo e sua irmã Neri contam que adoravam. No quintal tinha um enorme pau de madeira, onde tapavam o rosto para contar até 10 e sair atrás dos outros, que estavam escondidos. Mal sabiam que era um tronco onde muita gente já tinha apanhado.
Também era comum as crianças brincarem entre correntes e algemas, maiores e mais grossas que as da polícia. Sabiam que ali tinha sido uma senzala no passado, algo que para eles soava bem distante. Por serem brancos, nunca desconfiaram que bem ali, o seu bisavô tinha vivido durante anos como escravo.
Quando cresceram um pouco seu pai começou a contar as histórias da família, mas ninguém sabia que aquele pedaço de chão, em que viviam de favor, era propriedade deles. Isso porque não havia documentos. Tinham, então, de dividir o espaço com outras duas famílias, também de trabalhadores da fabricante de cimentos Votoran.
Em Salto de Pirapora ainda está preservado um casarão da época dos escravos, e conforme Luiz é semelhante a esse que ele nasceu. O casarão está em uma propriedade situada no bairro dos Pires, e é muito conhecido naquela região por ainda manter ali uma senzala. A reportagem foi até o local e viu o casarão antigo, que provavelmente teria sido a residência do sinhô. Ao lado há um anexo que hoje é usado para guardar ferramentas. Os descendentes de José Joaquim de Camargo dizem que ali era uma senzala, mas usada para a reprodução de escravos. A senzala dos trabalhadores, não se sabe se está num local mais afastado dentro da propriedade ou se foi demolida. “Esse casarão foi dos Pires de Camargo, que tinham grau de parentesco com a gente, mas eles venderam suas terras”, explica Luiz.
Entre os diversos relatos sobre as histórias dos negros que conhece, Luiz conta que Salto de Pirapora era um local onde ocorreu muita reprodução de escravos.
Prática da reprodução
Luiz conta que seu bisavô mesmo era um escravo reprodutor. “Com o fim do tráfico de escravos, os senhores obrigavam os negros a se reproduzirem. O senhor que escolhia os parceiros. Às vezes a senzala já tinha casais formados, mas se o senhor mandava, a escrava tinha de se deitar com outro, o que gerava muita tristeza”.
O relato faz sentido. De acordo com pesquisas históricas, houve uma série de leis publicadas a partir de 1850 voltadas à inibição do tráfico, inclusive entre províncias, mas com o aumento das lavouras, os proprietários precisavam de mais escravos. A prática da reprodução foi comum e perdurou até depois da Lei do Ventre Livre, de 1871, que considerava livre todos os filhos de escravas nascidos a partir da data da lei. Isso aconteceu porque era permitido aos senhores cuidar das crianças até os 21 anos e assim teriam mão de obra de graça até essa idade. “Meu bisavô teve muitos filhos antes do casamento. Ele era alforriado mas obedecia o patrão. Soube de uma história que certa vez ele teve de levar crianças para vender e tinha filhos dele ali junto e as crianças foram tudo chorando”, conta Luiz.
José Joaquim de Camargo era de muita confiança do capitão Jesuíno. “Ele era capataz e era ele quem comprava e vendia escravos. Ele também surrava os escravos mandado pelo senhor, se não fizesse isso era punido”.
Pedreira na propriedade
Como era alforriado, José Joaquim recebia por seus serviços e guardava as economias com o propósito de comprar terras. Conseguiu, mas tudo foi tirado da família. “Faz uns 70 anos que uma pedreira arranca pedras da nossa propriedade. Somente no ano passado o faturamento foi de cerca de 4 bilhões, enquanto nós estamos com parentes sem casa, outros vivendo em barraco e se sustentando através da reciclagem”, lamenta Luiz, que reclama da demora do Incra em emitir o RTID.
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Na reportagem anterior, publicada no domingo passado, dia 23, foi publicado que João Fernandes, tataraneto de José Joaquim de Camargo, disse que seu parente teria ajudado na construção da Capela da Penha, no entanto a informação saiu incorreta. A Capela da Penha foi construída com mãos escravas, mas não pelo escravo proprietário daquelas terras.
Uma nova informação divulgada na sexta-feira para a reportagem dará continuidade à série de matérias, que terminaria este domingo, porém se estende até o dia 6 de abril.