Por Cláudio Silva*, Terra de Direitos
Vanderlei Matos da Silva trabalhava na empresa multinacional Del Monte Fresch Produce Brasil LTDA (Del Monte), uma das maiores empresas de produção e comercialização de frutas do mundo. Iniciando seu contrato em abril de 2005, o trabalhador tinha como função, auxiliar no preparo da solução de agrotóxicos utilizado para ser borrifado sobre a lavoura de fruticultura da empresa Del Monte.
Vanderlei residia na comunidade de Cidade Alta, no município de Limoeiro do Norte, cerca de 200 km de Fortaleza/CE. Esse município está localizado na Chapada do Apodi, atualmente marcada pela presença de grandes empresas do agronegócio produtoras de frutas para exportação. É nessa região, abastecida pelo Rio Jaguaribe e o aquífero Jandaíra, que a empresa Del Monte estruturou suas fazendas.
A partir de julho de 2008, o trabalhador passou a sentir fortes dores de cabeça, febre, falta de apetite, olhos amarelados e inchaço no abdômen. Em agosto do mesmo ano esses sintomas se agravaram, obrigando o empregado a se afastar do serviço. Em 30 de novembro, menos de três meses após o agravamento de suas condições de saúde, veio a falecer com diagnóstico de Insuficiência Renal Aguda, Hemorragia Digestiva Alta e Insuficiência Hepática Aguda.
Embora a Empresa realizasse exames de saúde semestrais, o resultado desses exames nunca chegou às mãos do ex-empregado ou de sua companheira, contrariando o art. 168, § 5° da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Durante o período em que trabalhou a Del Monte cometeu diversas irregularidades e ilegalidades: trabalhava sob jornada exaustiva, pois além das oito horas diárias, a qual se alternava entre os períodos noturno e diurno, eram necessárias pelo menos duas horas para se locomover até o local de trabalho; seu horário de trabalho não era fixo, dependendo da demanda da produção, concluía a jornada às 2h30 da manhã, outras vezes às 6h.
Depois da trágica perda, Maria Gerlene Silva dos Santos, viúva de Vanderlei, ingressou com ação na Justiça do Trabalho (Reclamação Trabalhista nº 0129000-52.2009.5.07.0023, que tramita na Justiça do Trabalho em Limoeiro do Norte, Ceará). Nessa ação se pede que Justiça condene a Del Monte: 1. Ao pagamento de horas extras; 2. Ao pagamento das horas de trajeto (horas in intinere), ou seja, o tempo de deslocamento do trabalhador de casa para a empresa, prevista na legislação trabalhista; 3. Que o reflexo dessas horas sobre as verbas trabalhistas; 4. À indenização por danos materiais e morais, causados pela morte do trabalhador.
Além da questão das horas extras, que são parte do contexto das jornadas exaustivas dos trabalhadores da fruticultura, a discussão fundamental é sobre a relação (nexo de causalidade) entre o trabalho exposto ao contato com agrotóxicos e a morte do empregado.
Após um longo processo – quase cinco anos – a Justiça do Trabalho de Limoeiro do Norte condenou a empresa Del Monte ao pagamento das horas extras e verbas trabalhistas devidas, além de indenização pelos danos morais e patrimoniais. Os valores podem ultrapassar R$ 350 mil. Dessa decisão, a Del Monte apresentou recurso que aguarda julgamento pelo Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região, localizado em Fortaleza.
A longa luta por justiça…
A ação foi iniciada em maio de 2009, mas apenas em agosto de 2013 se tem decisão em primeira instância. Em parte, a demora do processo se deve a uma longa investigação do Ministério Público do Trabalho sobre a morte do trabalhador. Esse procedimento (Inquérito Civil nº 000379.2009.07.003/4) foi muito importante para que se chegasse a conclusões sobre a relação entre o trabalho com agrotóxicos e a morte do empregado.
Além disso, a Procuradoria do Trabalho e os advogados/as da viúva do trabalhador se valeram de diversas pesquisas, principalmente as que integram o “Estudo epidemiológico da população da Região do Baixo Jaguaribe exposta à contaminação ambiental em área de uso de agrotóxicos”. Esse estudo foi produzido pelo Núcleo Tramas (Trabalho, Meio Ambiente e Saúde para Sustentabilidade), ligado ao Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, coordenado pela professora Dra. Raquel Maria Rigotto, que também contou com o apoio de dezenas de pesquisadores de diversas instituições acadêmicas e governamentais.
A decisão proferida condenou a Del Monte a diversas obrigações, representando uma significativa vitória para os trabalhadores rurais submetidos ao contato com agrotóxicos em grandes empresas do agronegócio de frutas. Porém, a Justiça Brasileira ainda está muito aquém das expectativas de celeridade. A longa espera por decisões judicias gera, em si, um profundo sentimento de injustiça.
A decisão: um importante precedente para os/as trabalhadores/as de empresas de fruticultura
A decisão da Justiça do Trabalho pode ser divida em duas partes. A primeira trata de horas extras e de trajeto (deslocamento casa-trabalho, em locais de difícil acesso ou desassistida de transporte público). Nessa questão, a empresa é obrigada a reconhecer mais duas horas extras trabalhadas diariamente, já que o empregado trabalhava revezando seus turnos ininterruptamente. Além disso, adicionou-se a jornada mais três horas e 30 minutos, que era o tempo gasto diariamente no trajeto de casa para trabalho. Essa situação é vivida por milhares de trabalhadores do agronegócio.
A segunda questão foi o reconhecimento que a morte do trabalhador foi motivada pelo ambiente de trabalho, ou seja, pelo contato com os agrotóxicos. Essa relação de causalidade obrigou a Del Monte ao pagamento de danos materiais (correspondente a pensão mensal no valor equivalente a 2/3 daquilo que o obreiro falecido receberia a título de salário mínimo, até a data presumida de expectativa de vida, no caso 72 anos. Estabeleceu-se ainda danos morais no montante de R$ 100 mil.
A empresa Del Monte interpôs Recurso Ordinário e aguarda julgamento pelo Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região, no Ceará.
O (mal) exemplo da Del Monte
A empresa Del Monte, afirma em seu recurso:
“Da função social da DEL MONTE: DEL MONTE representa uma força socioeconômica-financeira determinada, sendo uma grande fonte geradora de empregos, riquezas e impostos, que influencia, de forma decisiva, o desenvolvimento da região em que se encontra, sendo certo a partir dela se constroem relações de sobrevivência.” (…) Com a implantação da mão de obra assalariada permanente, a empresa pôde proporcionar aos diversos trabalhadores da região além de novas condições de trabalho, profundas mudanças nas condições e qualidade de vida tanto do trabalhador como de sua família. (…) A DEL MONTE tem consciência de que uma visão da propriedade como um direito absoluto não favorece o desenvolvimento da sociedade, ao contrário, cria abismos sociais e gera conflitos, por essa razão, conduz seus negócios em atenção à legislação vigente, pautando pela ética, colaborando com a comunidade e cumprindo a sua função social.”
Seria cômico, se não fosse trágico.
A Del Monte, com mais três empresas, controlam o mercado de produção de bananas do mundo e, sozinha, é considerada a maior produtora e comercializadora de frutas do planeta.
Esse poder econômico e político – de controlar o comércio de alimentos no mundo – se vale da exploração da força de trabalho e dos recursos naturais de países como o Brasil. Além do uso extensivo da mão-de-obra (que é remunerada a baixos salários), o uso extensivo de agrotóxicos (por exemplo, com uso da pulverização aérea) deixa um rastro de graves doenças, como câncer, arcado pelo sistema público de saúde.
O “Estudo epidemiológico da população da Região do Baixo Jaguaribe exposta à contaminação ambiental em área de uso de agrotóxicos”, coordenado pela Profa. Dra. Raquel Maria Rigotto, aponta algumas consequências do agronegócio de fruticultura:
“1. O aumento em 100% dos agrotóxicos consumidos no Ceará entre 2005 e 2009, e de 963,3% dos ingredientes ativos de agrotóxicos comercializados no estado no mesmo período;
2. O consumo elevado da água nos cultivos;
3. A contaminação por agrotóxicos da água disponibilizada para consumo humano e das águas subterrâneas;
4. O lançamento pela pulverização aérea de cerca de 4.425.000 litros de calda contendo venenos extremamente tóxicos, altamente persistentes no ambiente e muito perigosos, no entorno de comunidades da Chapada do Apodi;
5. A exposição diária de trabalhadores do agronegócio a elevados volumes de caldas tóxicas – que inclusive já resultou em pelo menos um óbito e na identificação de alterações na função hepática de significativo contingente de trabalhadores examinados;
6. A constatação de que os agricultores no Ceará têm até seis vezes mais câncer do que os não agricultores, em pelo menos 15 das 23 localizações anatômicas estudadas;
7. A elevada vulnerabilidade da população, relacionada às irregularidades fundiárias, à precariedade das condições de trabalho nas empresas, à limitadas informação e assistência técnica aos pequenos produtores, às situações de ameaças e violência contra a organização comunitária e sindical, à ausência ou fragilidade de políticas públicas que fortaleçam a agricultura familiar e camponesa, bem como outras alternativas de trabalho e renda”.
Além disso, as greves ocorridas nos anos de 2008 e 2012 na Del Monte, nas fazendas da região da Chapada do Apodi, no Ceará, apresentaram, por meio das reivindicações trabalhistas respaldadas pela Procuradoria Regional e pela Justiça do Trabalho, as péssimas condições à que estão submetidos os empregados dessa empresa. Inclusive, fora ajuizada Ação Civil Pública em face da Del Monte, na qual exige que normas relativas à saúde e à segurança do trabalhador sejam tomadas. Na ação, o MPT requer multa pecuniária de R$ 5 mil por obrigação descumprida e R$ 3 mil por trabalhador encontrado em situação irregular, além da condenação da empresa ao pagamento da quantia de R$ 1 milhão a título de indenização pelo dano moral coletivo causado pela conduta da empresa.
Seria esta a “função social” da empresa que é considerada a maior produtora e comercializadora de frutas do mundo para municípios do semiárido brasileiro e seus empregados?
Próximos passos
A morte de Vanderlei Matos da Silva não pode ser em vão. Quantos trabalhadores e trabalhadoras passaram por essas situações? Quantos possuem (ou ainda irão desenvolver) doenças relacionadas ao trabalho com agrotóxicos? E os alimentos que comemos diariamente, como são produzidos e a que custos?
Essa luta por justiça deve gerar argumentos, precedentes exemplares e estudos, mas principalmente motivar resistências e ações da sociedade, principalmente dos trabalhadores/as submetidos a essas condições.
Nas próximas semanas deve ocorrer o julgamento do recurso da Del Monte, quando se espera que se mantenham as condenações.
Esse processo, juntamente com outros, deve ser mais um grito no clamor por justiça. O Judiciário e sociedade brasileira não deve mais aceitar que o país seja um depositário de venenos das grandes empresas. É preciso que se produzam alimentos saudáveis e de forma saudável, sob pena de casos trágicos como esse se tornarem uma brutal rotina, não apenas dos empregados do agronegócio, mas de toda sociedade que consome esses alimentos envenenados.
*Claudio Silva é advogado, integra a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares no Ceará e especialista em Economia e Desenvolvimento Agrário pela Universidade Federal do Espírito Santo/ Escola Nacional Florestan Fernandes.
Referências
– Estudo epidemiológico da população da Região do Baixo Jaguaribe exposta à contaminação ambiental em área de uso de agrotóxicos. Núcleo Trabalho Meio Ambiente e Saúde para a Sustentabilidade (TRAMAS), Fortaleza, 2010.
– Após ação do MPT, Empresa Del Monte é condenada por morte de trabalhador, em http://www.prt7.mpt.gov.br/noticias/2013/11-novembro/18_11_13_Empresa_Del_Monte_condenada_por%20morte_de_trabalhador.html acesso em 21.03.2014