Democracia de efeito moral

85C06613066EB059F36DF549F48EB55684D2664F9722C8D53BBEB7BA1AEB7E25Por mais estranha que pareça a afirmação de que vivemos a continuidade entre ditadura e democracia, os movimentos sociais apontam nesta direção com razão

Edson Teles*, professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – Carta Maior

Cinquenta anos após o Golpe de Estado de 1964, comandado pelos militares e com o apoio dos empresários, latifundiários, de setores da igreja e das famílias proprietárias da grande mídia, tem sido comum ouvirmos o discurso dos movimentos sociais de que vivemos uma ditadura em plena democracia.

Aparentemente, tal constatação seria resultado de uma análise superficial do atual contexto político e social do país. Afinal, ditadura é o regime político no qual se autoriza a tortura, assassinato e desaparecimento de opositores, convive-se com a ausência de direitos, a censura, as cassações e toda sorte de perseguições e violências por parte do Estado. Já a democracia, contrariamente, é o regime de respeito às diferenças, de acesso aos direitos, das políticas de inclusão social e da justiça.

Na história do Brasil, estas diferenças entre a ditadura e a democracia estariam ainda mais evidentes. Apesar de não ter ocorrido uma ruptura profunda que marcasse a transição de um regime a outro, o país viveu a mobilização de milhões de brasileiros para pedir o fim da ditadura durante a campanha das Diretas Já!, construiu uma nova constituição, democrática e com acesso a direitos de vários segmentos específicos da população, teve nos últimos 20 anos no comando do governo federal três presidentes que foram vítimas diretas do regime militar.

Além de todos estes passos na consolidação da democracia, o Estado reconheceu que torturou, matou e desapareceu o corpo de seus opositores, indenizou famílias de vítimas fatais e os perseguidos diretamente atingidos, criou ou recuperou lugares de memória do passado violento e instituiu a Comissão Nacional da Verdade.

Ora, do ponto de vista institucional e do projeto de construção de um regime de cidadania e de participação política, com o reconhecimento de sua história visando que uma ditadura não volte a ser instalada no país, o Brasil parece ser um modelo de democracia.

Somado a isto, pudemos experimentar o desenvolvimento da economia e das políticas sociais na última década, com a inclusão de vários setores ao mundo do consumo e do trabalho e o crescimento da agroindústria, do mercado financeiro e de determinados segmentos do empresariado nacional, além de aporte do Estado em setores estratégicos, como energia e infraestrutura. É claro, dirão os que estão fora da lógica dos movimentos sociais, que há problemas e conflitos ainda em aberto sobre qual democracia seria a melhor e isto é parte constitutiva de uma boa evolução de nossas instituições e do regime político.

Diante deste quadro, por que os movimentos sociais insistem em relacionar a democracia com a ditadura? Por que não conseguem entender que esforços estão sendo feitos no sentido de efetivar direitos e de diminuir as diferenças sociais? Ou ainda que, na medida do possível, os governos procuram criar as condições necessárias para se evitar as graves violações de direitos humanos assistidas cotidianamente nas periferias, no campo e nas ruas em disputa?

Quanto mais longe dos postos de gestão da vida das populações e dos palácios e escritórios da administração do Estado, quanto mais distante dos centros urbanos e econômicos, e quanto mais próximo das periferias e das classes populares, mais escutaremos os movimentos relacionarem a ditadura com o atual regime político e mais próximo parece nos encontrarmos dos significados dos 50 anos do Golpe de 1964.

Para tentarmos compreender algo sobre este fenômeno, propomos não a volta aos acontecimentos de março de 1964, mas ao lento e pouco debatido processo de transição entre a ditadura e a democracia, iniciado ainda em meados dos anos 70, com a Abertura lenta, gradual e segura anunciada pelo governo do general Geisel, por um lado, e com a campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita coordenada pelos Comitês Brasileiros pela Anistia.

Os governos militares, a partir de 1974, empreendem as primeiras medidas para garantirem uma transição controlada. Este foi o ano no qual mais opositores assassinados tiveram seus corpos desaparecidos. Com o projeto de Abertura não bastava sequestrar e matar, mas era preciso não deixar provas dos crimes. Os últimos suspiros da luta armada foram completamente aniquilados e mesmo as organizações de esquerda que não optaram por esta via foram alvos da política de extermínio.

Do ponto de vista das instituições, em 1977, decreta-se o Pacote de Abril com o fechamento do Congresso, o mandato de 6 anos para as futuras eleições a governador, a garantia dos senadores biônicos (indicados pelo general presidente), entre outras medidas visando antecipar o processo sucessório dos militares aos civis.

No ano seguinte, ao mesmo tempo em que parte do AI-5 (Ato Institucional número 5, de 1968) passa a integrar a Lei de Segurança Nacional (LSN, vigente até hoje e utilizada recentemente contra ativistas das manifestações de junho de 2013), ironicamente retoma-se o habeas corpus (suspenso em 1968) diante do grande número de corpos desaparecidos. Estavam criadas as condições para se negociar com as novas forças que comporiam a democracia as condições da transição.

Os familiares de presos políticos e movimentos de direitos humanos lançam a campanha nacional pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, que demandava não só a libertação de todos os presos políticos, como a volta dos exilados e banidos, a apuração das circunstâncias das mortes, a localização dos desaparecidos e a punição aos responsáveis. Foi uma das maiores mobilizações de oposição à ditadura, tendo recepção nos mais variados segmentos sociais e políticos.

Em contraste com o movimento pela anistia e sabendo do risco ao controle do processo de transição, os militares utilizam-se do discurso dos dois demônios, cuja tese argumentava sobre a existência de dois setores radicalizados, os militantes da luta armada e os agentes dos porões da ditadura, na tentativa de igualar a luta de resistência com a barbárie da tortura e dos assassinatos comandados pela cúpula das Forças Armadas. Sob esta lógica, autorizava-se o surgimento da ficção de uma posição de consenso, que supostamente reconheceria a história recente do país, mas somente com o intuito de superar seus excessos.

Assim, o governo militar do general Figueiredo enviou um projeto de anistia ao Congresso Nacional sob a chancela da “reconciliação da família brasileira” e do esquecimento com o objetivo de superação da violência. Dentro de um legislativo de senadores biônicos, sitiado por um governo que estourava bombas em bancas de jornais e sedes de movimentos sociais e que recentemente havia assassinado Vladimir Herzog, Santo Dias e promovido a Chacina da Lapa. A lei aprovada falava em crimes conexos aos atos políticos, claramente visando impor a ambiguidade que permitiria ao regime militar e à futura democracia a leitura de benefício aos lados radicalizados em guerra.

Coloca-se em ação a memória vencedora da transição, representante de um consenso ficcional, construído sob o silêncio do pacto pela redemocratização em oposição aos corpos desaparecidos, assassinados e torturados. Replica-se a ideia dos dois demônios, em democracia, com a leitura de ainda ocorrer um conflito entre a memória das vítimas, revanchista e que tudo quer lembrar, e a dos militares, violenta e adepta do esquecimento da violência do Estado. Ora mobilizando um aspecto, o da lembrança, ora outro, o do esquecimento, se constrói o silêncio sobre o passado, com a ausência de escuta dos movimentos sociais.

Se a este momento inaugural da democracia somarmos o Colégio Eleitoral e a Constituição de 1988, temos um estado de direito em que os crimes da ditadura foram silenciados em favor da consolidação da governabilidade e a participação dos movimentos sociais trocada pela ação de representantes dos novos partidos autorizados pela transição acordada (pacto denunciado pelo, à época, deputado federal Lula, durante a sessão de promulgação da nova constituição, em 1988).

A democracia nasce sob a suspensão de direitos: os crimes de graves violações de direitos durante a democracia não foram apurados (não o são até hoje) e o primeiro governo civil foi indicado por um colégio eleitoral de cerca de 500 parlamentares integrantes de um legislativo sitiado pelas leis autoritárias do regime ditatorial.

A nova constituição mantém as polícias militares, a concepção de que segurança pública é contra um inimigo interno – este variando entre ‘bandidos’, militantes do MST, craqueiros, jovens negros e pobres, vândalos, terroristas, a depender do contexto – e, de modo absurdo, a presença das Forças Armadas na vida cotidiana do país, seja em sua influência política, seja nos morros cariocas ou em outros espaços civis.

Por incrível que pareça todos os principais passos do Estado de Direito no tocante às políticas de memória se guiaram pela lógica dos dois demônios e da governabilidade. Desta forma, a Lei dos Mortos e Desaparecidos, de 1995, a Comissão de Anistia, de 2002, e a Comissão Nacional da Verdade, de 2012, surgem sob o discurso de “promover a efetiva reconciliação nacional” (como pode ser lido na lei da Comissão da Verdade, cujo projeto foi enviado ao Congresso Nacional em 2010 e aprovado em 2011).

Parece-nos que o Brasil vive uma experiência que, apesar de não ser única no atual mundo globalizado, apresenta-se de forma modelar e com uma eficiência pouco vista em outros lugares do planeta. É como se estivéssemos diante de um laboratório de tecnologia de governo para lidar com os dilemas políticos e sociais no século XXI. Testa-se no país algo que poderíamos chamar de democracia de efeito moral.

Aprimora-se os direitos e as políticas públicas ao mesmo passo em que se aprofunda as diferenças de classe e articula-se uma onda autoritária de controle da ação política, seja por meio do investimento nas formas repressivas das polícias e na utilização das Forças Armadas na segurança pública, seja pelas propostas de criação de leis de criminalização dos movimentos sociais sob a ideia de que temos manifestantes pacíficos e outros que são vândalos – para estes, bombas de efeito moral!

É por isto que nesta democracia se investe em efetivas políticas de inclusão, como as cotas, concomitante à autorização da prática de extermínio dos jovens negros e pobres das periferias por parte do braço armado do mesmo Estado que produz as políticas sociais.

Passados 50 anos do golpe militar de 1964 temos uma lógica de governo que aposta na política do possível expressa, no caso das ações de memória acerca da ditadura, pelo bloqueio dos atos de justiça e de efetiva democratização do Estado e de suas instituições. Por outro lado, para os movimentos sociais, o que não deveria ser possível em uma democracia é a impunidade da tortura sob o argumento de que a anistia, aprovada em 1979 e renovada na Constituição de 1988, seria fruto da “reconciliação nacional”, como o fez o Supremo Tribunal Federal em maio de 2010.

Por mais estranha que pareça a afirmação de que vivemos uma continuidade entre ditadura e democracia, faz todo sentido os discursos dos movimentos sociais que apontam nesta direção.

Não se trata aqui de estabelecer uma indistinção entre democracia e ditadura. Nem mesmo de negar ou desprezar os tímidos avanços conquistados – como são os casos das comissões de indenizações e a da Verdade. Ao contrário, trata-se de termos pleno conhecimento de que sob a superfície do discurso de uma governabilidade consolidada e exemplar, encontramos formas de agir cuja astúcia é serem autoritárias sob um viés democrático.

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*Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010)

Créditos da foto: Mídia NINJa

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