Um dia, retornando para casa quando morava no Campo Limpo, fui parado por um punhado de viaturas policiais. O pessoal, com armas apontadas para mim, gritou para que saísse do carro e não mexesse um músculo mesmo que a vaca tossisse. Haviam recebido uma denúncia de espancamento e eu, por estar passando na avenida errada, na hora errada, era o suspeito. Muito tempo depois, quando a identificação foi negativa, acabei liberado.
Não foi a primeira vez, nem seria a última que fui parado lá por aquelas bandas. Nem que um cano de revólver futucou meu peito. Em uma das vezes, o policial ainda brincou: “fica tranquilo que estava travada”. Ahã, senta lá, Cláudia.
Quando meus amigos me contavam, indignadíssimos, de experiências de blitz em que eram parados e obrigados a soprar o bafômetro, pensava comigo mesmo o que aconteceria caso sofressem os esculachos que alguns conhecidos do Capão ou lá do Pirajussara sofreram. Não, não me entendam, mal. Não estava desejando o mal a ninguém, apenas percebendo que se o centro entendesse de verdade o que acontece na periferia, talvez a vida seria diferente. Ou talvez não.
Desta vez, foram jovens de 17 anos. Se perdeu a história, fique tranquilo, que amanhã ela se repete, com personagens mais novos ou mais velhos.
Um empresário foi morto após levar dois tiros na cabeça durante uma abordagem policial em um bairro nobre da capital paulista em julho do ano passado. Por proximidade com a realidade do centro, a repercussão foi muito diferente daquela que agora ocorre por conta de mortes na periferia. A história do empresário me fez lembrar a de outro homem – os dois tinham a mesma idade, 39 anos. Este foi encontrado enforcado pouco mais de duas horas após ter sido preso. Supostamente, era traficante e transportava cocaína. Supostamente, teria se enforcado usando um cadarço de sapato. Um policial afirmou que o acusado usou um pedaço de papelão para arrastar um cadarço que estava fora da cela a fim de se enforcar. Enforcou-se, supostamente, mas poderia bem ter passado para a posteridade como estatística de “auto de resistência”.
Já disse várias vezes e repito: ao contrário de outros países, o Brasil não consegue tratar suas feridas abertas na ditadura para que cicatrizem. Apenas as tapa com a cordialidade que nos é peculiar, o bom e velho, deixa-pra-lá, em nome de um suposto equilíbrio e da governabilidade. Dessa forma, o Estado não deixa claro aos seus quadros que usar da violência, torturar e matar não são coisas aceitáveis. E com a anuência da Justiça que, através do seu silêncio, manteve aqueles crimes impunes.
Nossa política para tratar dos abusos durante a ditadura prevê compensações financeiras para quem sofreu nas mãos do Estado. Seguindo a mesma linha, não me admiraria se o governo estadual ou federal anunciasse uma indenização à família do rapaz morto por “acidente” na Vila Medeiros. Afinal de contas, por aqui, paga-se e não se fala mais nisso. Para que remexer o passado, né?
Nada sobre rediscutir a filosofia e a natureza da corporação. Pois o problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre o papel, os métodos e o caráter militar da polícia em nossa sociedade. Setores da corporação estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram as regras. Outra parte sabe que a mesma sociedade está pouco se lixando para eles e suas famílias. Pagamos salários ridículos e exigimos que se sacrifiquem em nome do nosso patrimônio.
Parte da população apoia esse tipo de comportamento policial. Gosta de se enganar e acha que se sente mais segura com o Estado agindo dessa forma. Essas pessoas são seguidoras da doutrina: “se você apanhou da polícia é porque alguma culpa tem”.
E se não se importam com inocentes, imagine então com quem é culpado. Para eles, é pena de morte e depois derrubar a casa e salgar o terreno onde a pessoa nasceu, além de esterilizar a mãe para que não gere outro meliante. Enfim, mais do que um país sem memória e sem Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com o terror como principal ferramenta de ação policial.
A polícia é um instrumento. Nosso instrumento. Que reluz diante de nossa ignorância, refletindo quem somos de verdade. Uma sociedade com uma elite para a qual, do outro lado dos rios Pinheiros, Tietê e Tamanduateí fica o sertão ignoto, terra de ninguém. O que acontece lá, fica por lá, desde que a nossa segurança esteja garantida.
Afinal de contas, na maior parte das vezes os que morrem são pretos e pobres, inocentes, culpados, moradores, policiais.