O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) selou o fim de uma luta histórica de uma centena de famílias ribeirinhas da região oeste do Pará com a criação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Montanha-Mangabal, garantindo o reconhecimento de um território tradicionalmente ocupado há mais de 140 anos no Alto Tapajós. Se chegou com, no mínimo, meio século de atraso, certamente veio em um momento político surpreendente, considerando que as terras dessas famílias se situa em área de influência direta de barragens planejadas para integrar o Complexo Hidrelétrico do Tapajós. A história foi noticiada, nesta quinta, pela BBC.
Afinal de contas, para quem não sabe, Belo Monte foi apenas um aperitivo de um rosário de dezenas hidrelétricas que estão planejadas para serem construídas na Amazônia nos próximos anos.
Pedi para duas pessoas que conhecem de perto o Montanha-Mangabal para contarem essa história. Natalia Guerrero, jornalista e mestre em Geografia Humana pela USP, que cobre a luta dos ribeirinhos de Montanha e Mangabal desde 2008, e Mauricio Torres, doutor em Geografia Humana também pela USP. Sua dissertação de mestrado, “A Beiradeira e o Grilador“, foi o resultado de sua pesquisa sobre a comunidade, e analisa a trajetória histórica de oito gerações de ribeirinhos. Segue o texto:
O ano de 2013 foi um infeliz marco para a reforma agrária no Brasil. Os números são de tal forma constrangedores, que o governo acabou revendo suas próprias diretrizes e veio a público, em outubro, selar o compromisso de assinar cem decretos de desapropriação de terras para a criação de assentamentos, ainda este ano. De forma geral, como este blog muito bem acompanha, vivem-se tempos de intensa oposição ao reconhecimento dos territórios de povos e comunidades tradicionais.
No entanto, com esse quadro por cenário, uma região do Brasil acaba de ser palco de um corajoso ato contra a corrente. No oeste do Pará, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) reconheceu, por meio da criação de um Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), os direitos de uma centena de famílias ribeirinhas do Alto Tapajós a seu território, ocupado há mais de um século. A portaria de criação do PAE Montanha-Mangabal foi assinada em setembro, e a homologação das famílias beneficiárias foi concluída neste mês de outubro.
“Tenho muito orgulho de poder estar realizando e encerrando uma luta dessa, dando direito a quem tem”, afirmou à BBC Luiz Bacelar Guerrero Júnior, superintendente da SR-30, regional do Incra situada em Santarém, e que abrange o Oeste do Pará. Quando questionado se os interesses econômicos que pairam sobre o lugar foram um obstáculo na criação do assentamento, Bacelar foi taxativo: “Não dei ouvidos. Fiz o que tinha que fazer e pronto”.
Terras e águas de se cobiçar
A modéstia do superintendente não se aplica: o PAE Montanha-Mangabal está longe de ser um assentamento comum. Situado no município de Itaituba (PA), e abrangendo 54.443 hectares, distribuídos ao longo de quase 70 km da margem esquerda do Alto Tapajós, o projeto se insere em uma região marcada, historicamente, pelo assédio de diversos grupos econômicos – grileiros, mineradoras, madeireiros. Nos últimos anos, foi a vez de o governo federal voltar seus olhos às cachoeiras daquele trecho de rio, onde está prevista a instalação de barragens do Complexo Hidrelétrico do Tapajós.
Mas ali não há só terra e águas para negócio, há também território. Um território que vem sustentando o modo de vida de uma centena de famílias ribeirinhas há mais de 140 anos. É esse manejo centenário, associado à determinação do grupo em resistir às diversas ameaças sobre sua ocupação, que se expressa em algumas das matas mais bem preservadas do Alto Tapajós.
Nesse sentido, a criação do PAE Montanha-Mangabal vem selar o fim dessa longa luta, marcada por uma trajetória que oscila entre o emblematismo e a quebra de paradigmas.
Como muitos extrativistas da Amazônia, a ocupação de Montanha e Mangabal remonta à exploração da borracha na segunda metade do século 19. Por meio da incorporação – barbaramente violenta – de mulheres indígenas à vida nos seringais, incorporou-se também uma matriz de conhecimento que permitiu a adaptação às condições impostas pela floresta, quando o comércio do látex cessou.
Desde então, os moradores daquele lugar testemunharam a ascensão e queda de diversas atividades econômicas, como o comércio de pele de felinos e o garimpo, iniciado em meados dos anos 1970. Nesse período, a criação do Parque Nacional da Amazônia, em 1974, significou a expulsão de muitas das famílias extrativistas que ali viviam. Concentradas rio acima, resistiram.
No início da década de 2000, a batalha foi contra uma empresa paranaense, autora de uma das maiores fraudes fundiárias já registradas. Por meio de uma sofisticada manobra jurídica, a empresa se declarou proprietária de 1.138.000 hectares na região de Itaituba, o equivalente a quase oito cidades de São Paulo. No meio da terra grilada, estavam as famílias de Montanha e Mangabal – ou os “invasores”, segundo declarava a empresa.
A resistência dos ribeirinhos permitiu a realização de uma extensa pesquisa genealógica que comprovou que os “invasores” tinham oito gerações, nascidas e enterradas naquele lugar. Com apoio do MPF, obteve-se a interdição da vasta área a qualquer pessoa que não fosse das famílias de Montanha e Mangabal. Uma interdição desse tipo, em uma área que não fosse de ocupação indígena ou quilombola, foi algo sem precedentes na história do Judiciário brasileiro.
Mas não era a última batalha. Para formalizar seu direito àquela terra, os beiradeiros passaram a reivindicar, então, a criação de uma Reserva Extrativista no local, instrumento que garantiria sua ocupação, bem como lhes daria acesso a créditos para agricultura e, até mesmo, melhores condições para demandar atendimento médico e escolar à comunidade.
Todos os estudos necessários à criação da unidade de conservação ambiental foram realizados a contento, mas a Resex não saiu. A minuta do decreto de criação, que deveria ser assinado pelo então presidente Lula, não foi mais longe que as mãos da então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. O motivo estava em um ofício do Ministério de Minas e Energia (MME), endereçado em 2008 à Casa Civil: “A Resex Montanha Mangabal causará interferência em qualquer uma das alternativas causadas visto que as alternativas estão inseridas na área proposta para a unidade de conservação. Desta forma, conclui-se que a unidade não deva ser criada”.
Frustrados em seus desígnios de reconhecimento, com a perspectiva de ter de abandonar seu território centenário, a resistência dos ribeirinhos de Montanha e Mangabal arrefeceu, mas não cessou. Ante a sequência de desrespeitos no andamento dos estudos para as barragens do Tapajós, uma aliança histórica foi selada com os vizinhos Munduruku, cujo território também sofrerá impactos com obarramento.
É nesse contexto que vem à tona a surpreendente notícia de criação PAE Montanha-Mangabal.
Terra para ficar
“É a primeira vez na história do País que o governo federal reconhece a ancestralidade da história daquelas comunidades e as trata como titulares de direitos fundamentais, em especial titulares de direito à terra”, disse à BBC Felipe Fritz Braga, procurador da República que deu início aos procedimentos no sentido do reconhecimento dos direitos das famílias de Montanha e Mangabal. Para o procurador, a coesão da própria comunidade teve importância fundamental nesse processo. “Montanha-Mangabal hoje tem uma existência política clara. Estiveram no Congresso Nacional há alguns anos e se manifestam regionalmente sobre políticas públicas. A criação do projeto agroextrativista é sem dúvida importante para a proteção do território, mas não é de fato uma criação – é, na verdade, um óbvio e devido reconhecimento”.
Para Ticiana Nogueira, atual procuradora da República em Santarém, a criação foi certamente um marco na luta pelo reconhecimento de territórios tradicionalmente ocupados. “O governo andou muito bem neste caso, que já tinha o devido reconhecimento judicial, uma vez que a área já era protegida por decisão judicial, mas carecia da decisão política final do governo federal.”
Pouco a pouco, a notícia de criação do assentamento vai subindo o Tapajós, envolvida em orgulho e expectativa. “Eu vejo isso como resultado da nossa luta”, defende Simar Braga dos Anjos, uma das antigas lideranças mais ativas na luta pelo reconhecimento dos direitos das famílias de Montanha em Mangabal e pela cobrança da presença do Estado na garantia desses direitos. “Eu digo que dependemos, sim, do governo, mas não em termos de sobrevivência. Nada de cesta básica, essas coisas. O que o povo precisa lá é saúde, escola. O governo se esqueceu de nós ali. É isso que eu sempre cobro, e eu acredito que o assentamento nos dá mais condições de correr atrás disso”.
Mais um filho dessa comunidade do Tapajós, a situação de Tarsis Cardoso sinaliza um exemplo do tipo de consequências dessa falta de políticas públicas. O ribeirinho mudou-se para a sede de Itaituba há alguns anos para que a filha, Sâmila, pudesse seguir na escola. “Muita gente saiu por causa do estudo”, conta. Cardoso é da opinião de que as políticas são consequência da importância da ocupação de sua comunidade. “É uma forma de mostrar que há muitas gerações que nasceram e se criaram ali e que dependem dali pra sobreviver”, avalia o beiradeiro, que mantém fortes vínculos com a terra onde ainda moram seus pais.
Para a pequena Sâmila, de sete anos, os meses são muito longos quando se trata de esperar as férias escolares, oportunidade que tem para visitar o pedaço de rio tradicionalmente ocupado por sua família. É lá que pode se dedicar, junto com os primos e vizinhos do beiradão, a seus passatempos preferidos, como ouvir os bichos da mata, pescar e ouvir histórias dos mais antigos. “Ela gosta mais é de história de rio, que o pessoal conta”, relata Cardoso. “Às vezes ela fica na beira do rio, pescando, o pessoal passa [e diz]: ‘Olha, cuidado, outro dia o fulano falou que o bicho ia levando a mulher’. Ela fica só sorrindo.”
As histórias de que gosta Sâmila mostram como os aspectos daquele modo de vida têm uma relação muito forte com aquele território, tal como segue manejado até hoje pelas famílias de Montanha e Mangabal. “São centenas de pessoas que sabem pescar, lavrar terra, coletar frutas que a floresta oferece para nós. São memórias dos parentes enterrados. Ali existe uma história muito bonita”, diz seu Simar.
Vídeo realizado para a BBC por Minguarana Producciones:
A esquizofrenia do governo – Em maio de 2012, Mauricio Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), corporação pública ligada ao Ministério de Minas e Energia (MME) ofereceu uma especial demonstração de desrespeito ou ignorância em relação às comunidades tradicionais de Montanha e Mangabal. Ao falar dos projetos pretendidos para as barragens de São Luiz do Tapajós e Jatobá, Tolmasquim aludiu à inexistência de “ocupação humana” nos locais de pretensão das obras.
Pouco mais de um ano depois, o mesmo governo federal não só admite a existência da comunidade tradicional de Montanha e Mangabal como lhes reconhece formalmente o direito a quase 70 km ao longo das margens do rio Tapajós que seriam inundadas e devassadas por uma barragem.
Terá o governo decidido parar de reproduzir o discurso do colonizador – revisitado nos tempos da ditadura militar – da “terra sem homens”? “Sem homens” porquanto se relega à condição não humana toda uma população, claro. Poderão os povos e comunidades tradicionais dessa região contar com o respeito do governo com relação às convenções e tratados internacionais dos quais é signatário? Esperamos não assistir, nos próximos dias, ao cancelamento da portaria de criação do PAE Montanha-Mangabal alegando-se uma tecnicalidade qualquer. Com esse histórico, seria de uma violência extremamente atroz, mas pouco surpreendente.