Por Marcelo Zelic*, Viomundo
Nem bem assentou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Adams, Advogado-Geral da União já retomou a ofensiva para implementar a portaria 303 da AGU, tal qual deseja a bancada ruralista. Ele sequer deu tempo para que a sociedade e o Estado brasileiro reflitam em seus outros poderes o decidido pelo STF na demarcação da Raposa Serra do Sol e suas implicações para os direitos humanos no Brasil.
O STF definiu pela não vinculação das 19 condicionantes deste caso a outros processos de demarcação de terras indígenas. Afinal, são 241 povos existentes no Brasil, cada qual com suas situações específicas, não só cultural, mas também territorial, pois viveram em épocas diversas e de distintas formas os processos de violência e esbulho de suas terras, sendo este um processo permanente no Brasil.
Ao reconhecer a diversidade e individualidade destes povos, a Justiça brasileira se expressou a favor de um conceito plural de evolução em sociedade, reafirmando por ampla maioria, que apesar de atípica, a decisão levou em conta também o dever, enquanto nação, de nos relacionarmos povo a povo para construir um ambiente de respeito às garantias constitucionais dos indígenas brasileiros e a demarcação de suas terras.
Os Pataxó na Bahia, por exemplo, tiveram duas aldeias inteiras exterminadas com a inoculação proposital do vírus da varíola, fato denunciado no Relatório Figueiredo de 1968. Em 1988, as terras eram fazendas, cuja origem violenta nunca foi apurada, apesar das denúncias publicadas em jornais da época apontarem políticos de grandes patentes como beneficiários do ocorrido, onde até chegou-se a falar em genocídio.
O mesmo Estado brasileiro que realiza a Comissão Nacional da Verdade e as caravanas da Anistia não deveria tratar a questão indígena de forma a educar a sociedade, deixando-a mais aberta e receptiva aos direitos indígenas? Sendo todos iguais perante à lei não é correto reconhecer o igual direito à reparação dos Pataxó por terem sofrido violência praticada pelo Estado para a tomada de suas terras?
Além da questão do direito originário às terras do povo Pataxó, é somado o dever de reparação por parte do Estado, o que demonstra o acerto do voto do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, que aponta como o caminho de efetivação da justiça o cuidar de cada caso sem pasteurizar cada situação como defende o ministro da AGU na portaria 303.
O ministro Luís Adams, em matéria publicada no G1, expressa a posição do governo Dilma? Ou é uma posição pessoal, parcial e açodada? Diz ele:
“[A decisão] reforça a portaria da AGU. O que a portaria é, é uma orientação técnica do advogado-geral à área jurídica dizendo que, na interpretação da norma constitucional, na aplicação da norma constitucional, nós temos que observar as condicionantes. Então, em todos os casos que venham à análise do advogado-geral, ou do advogado público ou do procurador, ao atuar nos casos, eles têm que observar o precedente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, aliás, é a regra geral. Nós fazemos isso em todos os casos”, explicou Adams.
A portaria 303 da AGU já foi motivo de muito protesto por índios e não-índios. Muitos povos indígenas têm se manifestado nos últimos meses em Brasília, enquanto terras indígenas são retomadas em vários estados, buscando encerrar a demorada definição judicial de suas demarcações.
Se o Ministério da Justiça desmarcou uma reunião no Senado onde discutiria a questão das demarcações de terras indígenas, para aguardar a decisão do STF, por que o ministro Luís Adams estica a corda desta forma tão logo terminou o julgamento da Raposa Serra do Sol?
Fazendo coro ao ministro Adams contra os direitos indígenas, o senador Ruben Figueiró (PSDB-MS) publicou em seu site que:
“a chula desculpa para não comparecer ao debate na Comissão de Agricultura do Senado seria aguardar a decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito dos embargos declaratórios à Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima.”
E segue destilando ameaças ruralistas ao governo:
Os produtores rurais assinalaram aguardar pela ação governamental apenas até o final de novembro. Decepcionado, repito, com a fuga do ministro da Justiça da audiência no Senado para discutir o impacto das demarcações de terras indígenas na agricultura brasileira, a minha esperança é a de que a Presidência da República, pelas posições que sempre acreditei da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, e do ministro Gilberto Carvalho, puxe a orelha do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. A não ser – o que não creio – que o governo deseje a contundência de um conflito fundiário entre brasileiros índios e não índios [grifos em negrito são meus].
Se houver coerência na palavra da ministra Gleisi Hoffmann, da Casa Civil da Presidência da República, a portaria 303 da AGU não deverá ser reapresentada, uma vez que em 05/08/2013 em audiência no Congresso, ela afirmou que, apesar da ansiedade, adotaria as condicionantes conforme decidido no STF:
“Todos aguardamos com ansiedade as decisões do Supremo Tribunal Federal, índios e não índios, mas todos os brasileiros com responsabilidades devidas em relação ao futuro do país. Foi esse entendimento que fez com que o governo, ao buscar alinhamento jurídico nas ações dos advogados nas questões indígenas, optasse por adotar as condicionantes depois e conforme a decisão do Supremo” [grifos em negrito são meus].
O ministro Luís Roberto Barroso em seu voto, acompanhado pela maioria do STF, assentou: “a decisão proferida não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas’. Assim cai a portaria 303 da AGU como procedimento padrão. É conforme esta decisão que deve se pautar a Casa Civil e a Secretaria Geral da Presidência, afastando os ímpetos tratorísticos da Advocacia Geral da União.
A demarcação das terras e sua desintrusão, a recuperação das áreas degradadas, o respeito à consulta prévia aos índios e às suas posições quanto ao desenvolvimento de projetos e mineração em suas reservas, o respeito à cultura e o manejo sustentável de suas terras, bem como a reparação das violências do passado (sendo alguns casos objeto de estudo na Comissão Nacional da Verdade), são atitudes que proporcionam e estimulam a sociedade a avançar na democratização do país, a respeitar os direitos indígenas.
O voto do ministro Barroso valoriza essas atitudes, que convergem para o fortalecimento da democracia, quando, por exemplo, esclarece que “não se pode confundir a mineração como atividade econômica com formas naturais praticadas nas quais a coleta se configura um modo de vida”.
Já o campo ruralista busca protelar as demarcações, para sobrepor o direito de propriedade aos direitos originários dos povos indígenas, apresentando cenários de conflito violento entre as partes, chantageando o governo através de prazos — final de novembro–, quando ocorrerá o esgotamento do limite da paciência ruralista, conforme dito pelo Senador Figueiró, tentando impor o medo e a desestabilização do Congresso por meio da obstrução da pauta, uma lógica de solução dos problemas inadequada a uma democracia e muito distante do que foi proferido no plenário do STF.
A solução do conflito é cumprir a Constituição, é expandi-la para a prática de suas leis na sociedade, de modo a educar os brasileiros e as brasileiras ao respeito à diferença. Assim, demarcar o quanto antes as terras indígenas é reafirmar direitos, é fortalecer direitos humanos e democracia, por isso é a forma de enfrentarmos de forma cidadã este problema.
Há um mês o Instituto Socioambiental (ISA) publicou artigo em que abre algumas gavetas do governo:
O governo federal mantém parados 21 processos de demarcação de Terras Indígenas (TI): 14 aguardam a assinatura de decreto de homologação pela presidenta Dilma Rousseff e outros sete a portaria declaratória do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. As áreas somam quase dois milhões de hectares.
Três destas áreas estão na Bahia, uma delas do povo Pataxó. Demarcá-las de forma simultânea — só falta o ato de assinatura das autoridades brasileiras– é promover mecanismos de não repetição, é educar a sociedade a não matar índio para tomar suas terras, que esta população tem direito igual de existir e usar a terra de forma diferente do que a que usamos como agricultura. E é, fundamentalmente, efetivar a reparação deste passado sombrio.
O governo tem a faca e o queijo para continuar a deslocar o eixo deste conflito para a legalidade. E, como mostra artigo publicado no Correio Brasiliense, recursos em caixa para essas demarcações existem. Se forem usados, será um grande avanço para a superação destes conflitos:
“Dos R$ 89 milhões previstos no orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) para demarcação e regularização de terras indígenas no país este ano, menos de 10% saíram dos cofres até agora. Apenas R$ 7,3 milhões foram efetivamente pagos, já considerando os restos a pagar (empenhos de anos anteriores quitados no atual exercício). Embora os recursos destinados a resolver problemas fundiários que envolvem essas comunidades tenham aumentado quase seis vezes este ano em relação a 2012 — quando o montante foi de apenas R$ 16,9 milhões —, a lentidão na execução das ações se reflete na crise atual da política indigenista brasileira.”
Reapresentar a portaria 303 da AGU, como quer o ministro Adams, ceder à bancada ruralista como “exige” o senador puxador de orelhas ou manter na gaveta a demarcação destas 21 terras, enfraquecerá mais ainda os direitos humanos no Brasil, que vive de vitórias efêmeras, como a proibição de uso de balas de borracha em manifestações públicas e despejos, que não durou um mês e meio nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo e sequer a portaria da Secretaria de Direitos Humanos chegou a ser aplicada nos demais estados da federação. É preciso efetivar os direitos originários dos povos indígenas do Brasil e desligar o trator da portaria 303 da AGU.
A questão indígena, pela fragilidade histórica desta população em ter seus direitos reconhecidos em nossa sociedade, é a régua que mede a situação e os rumos do respeito aos direitos humanos no Brasil. Dependendo do caminho que o governo decidir seguir, poderemos ter décadas de lutas e avanços colocados de lado.
*Marcelo Zelic é vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Coordenador do Projeto Armazém Memória.