Por Cristiane Faustino¹, para Instituto Terramar
Para além da população da capital, Fortaleza, e dos conhecidos centros urbanizados de Aracati, Beberibe, Cascavel, Trairí, Itapipoca, Camocim, e outros, a costa do Ceará é habitada, também, por comunidades tradicionais, inclusive em diferentes territórios desses citados municípios, e dos próprios municípios costeiros que estão na Região Metropolitana de Fortaleza (São Gonçalo do Amarante, Caucaia, Eusébio, Aquiraz, Pindoretama e Cascavel).
Estudiosas afirmam que nos 573 quilômetros da costa do Ceará habitam pelo menos 110 comunidades tradicionais. Essas comunidades compõem parte significativa das populações que na história do Ceará construíram assentamento nos territórios costeiros. Através do encontro entre povos indígenas, sertanejos imigrantes e negros refugiados, formaram comunidades pesqueiras, indígenas, camponesas e quilombolas. Grupos sociais que na luta política para garantir sua existência constroem também identidades, seja em torno de seus modos de trabalho e vida, ou em torno de suas condições étnicas e raciais.
Por aqui poderíamos citar rapidamente: Ponta Grossa, Cumbe, Pontal do Maceió, Assentamento Coqueirinho, Canto da Barra, Jardim, Volta, Prainha do Canto Verde, Povo Jenipapo-Kanindé, Povo Tapeba, Comunidades Quilombolas do Boqueirão, Cercadão, Porteiras e Serra do Juá, Comunidade de Capim Açú, Emboaca, Povo Tremembé de Itapipoca, Comunidade de Caetanos de Cima, Assentamento Maceió, Curral Velho, Espraiado, Tatajuba, Xavier e muitas outras.
Essas comunidades se diferenciam das culturas urbanas em vários aspectos, sendo um dos mais importantes a relação com os ecossistemas e a biodiversidade. Na interação direta com a terra, as águas, a fauna e a flora, presentes nos ambientes costeiros, constroem culturas: trabalho e relações econômicas, expressões artísticas, religiosidades, relações de gênero e geracionais, organização comunitária e o próprio cotidiano. A pesca artesanal e a agricultura camponesa, exercidas por homens e mulheres, estão entre as principais formas de trabalho que esses grupos elaboraram na construção de seus modos de vida. Se instituindo como sujeitos históricos essas populações constroem tradicionalidades.
Vale explicar que aqui, tradicionalidade, não é uma reverência ao passado, mas refere-se ao acúmulo da experiência dessas comunidades, sua importância e legitimidade no presente. Portanto, não significa atraso e nem paralisação da história. As comunidades tradicionais tem dinâmica histórica própria no tempo e espaço, e destacam por produzir baixo impacto ambiental. Por isso, é tão notório o fato de que, diferente dos centros urbanos, os territórios vividos por essas populações conseguem manter os ambientes naturais conservados.
A atualidade das comunidades tradicionais se reflete na sua existência real e legítima em si mesma. Seus acúmulos de conhecimento e habilidades em ocupar e usar os ambientes de modo não predatório são, sem dúvida, bens preciosos e urgentes para a humanidade, que tem na questão ambiental um de seus maiores desafios. Nas comunidades tradicionais costeiras, o uso, ocupação e conservação dos ecossistemas, por exemplo, é fundamental para suprimento de alimentos e água, para a proteção costeira e manutenção do valor estético, simbólico e histórico que marca a zona costeira.
O reconhecimento das comunidades tradicionais se confirma, também, nas conquistas democráticas da Constituição Federal de 1988, e na institucionalização de políticas públicas direcionadas, tais como a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais e as políticas voltadas para povos indígenas e comunidades quilombolas. Em âmbito internacional há também importante arcabouço institucional que reconhece e legitima as populações e comunidades tradicionais, como, por exemplo, a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais que, dentre outras, afirma para essas comunidades o direito de decidir sobre os territórios que constroem. Por outro lado, também é marca de nosso tempo a negação e/ou a baixa implementação dessas e de outras conquistas.
Entretanto, também refletem a atualidade, e legitimidade dessas populações, as lutas que realizam para continuarem existindo frente às pressões das políticas e projetos econômicos que pressionam esses modos de vida, prejudicam a qualidade dos ambientes, geram problemas sociais e expropriam os territórios tradicionais. A Campanha pela Regularização dos Territórios Pesqueiros realizada pelo Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais, a luta indígena e quilombola por seus territórios ancestrais, comprovam a necessidade e vontade dessas populações de continuarem existindo.
Lutas que, tomando como referência as comunidades tradicionais costeiras no Ceará, nos ensinam pelo menos três ordens de questões:
1) não é porque parte da sociedade vive, por querer ou sem querer, em ambientes urbanizados e bairros precarizados, com quilômetros de automóveis estendidos pelas largas e estreitas ruas expelindo combustíveis queimados e nos impedindo de circular pela cidade, elevados níveis de violência urbana, segregação racial e outras desigualdades assustadoras, que todas as pessoas e grupos sociais querem, ou precisam querer isso para si. O que é, no mínimo, legítimo;
2) que querem construir sua própria história; que não gostariam de trocar seus modos e relações de trabalho por empregos controlados e precarizados que acolhem uns poucos e deixa a maioria de fora; que não desejam e nem acham que seja o melhor caminho destruir os ambientes naturais; e que têm direito e legitimidade de querer tudo isso. O que é, obviamente, justo;
3) que nós, os “outros”, que tanto valorizamos e necessitamos também da natureza, precisamos compreender, e temos o direito, ou senão a obrigação, de reconhecer e legitimar essas demandas. E que o Estado tem o dever de zelar pelo exercício desses direitos coletivos. E isso é, no mínimo, democrático.
[1] Membro da Equipe do Terramar e atual Relatora do Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma Dhesca Brasil.