Oiara Bonilla – Amazônia Real
Na primeira semana deste mês foi realizada a Semana de Mobilização durante a qual indígenas de todo o Brasil manifestaram seu repúdio aos atuais ataques direcionados à legislação indigenista e, mais especificamente, à Constituição Brasileira que, em seu artigo 231, lhes garante o direito à terra e à autodeterminação.
Enquanto isso, na sexta-feira (04), a Presidente estava no Paraná, onde anunciava um investimento de 5 bilhões de reais para armazenamento de grãos no estado. A coincidência dessa mobilização e desse evento revela a contradição que vivem as populações tradicionais no Brasil hoje.
Enquanto ainda estão lutando pela terra e pelo cumprimento do que está garantido na Constituição, esses mesmos direitos, conquistados a duras penas, há apenas 25 anos, estão sendo hoje ameaçados pelos interesses ruralistas no Congresso. Aqueles que conseguiram ter suas terras devidamente demarcadas batalham agora para conquistar mais autonomia, tanto politicamente, quanto em relação ao próprio mercado e às políticas públicas, estas ainda fortemente marcadas pela tutela e pelo assistencialismo.
Em diversas terras indígenas de todo o país estão sendo implementadas experiências inéditas e ousadas de gestão territorial e manejo de recursos naturais. Inicialmente apoiadas por organizações não governamentais e pelas organizações indígenas e, mais recentemente, também validadas pela política do próprio órgão indigenista nacional, estas experiências, diversas e originais, têm dado resultados surpreendentes. Elas apontam novos meios para pensar a gestão de terras e recursos naturais que não estejam fundamentados na expropriação fundiária e, muito menos, na devastação socioambiental e no esgotamento dos recursos naturais.
É o caso, por exemplo, do que está sendo construído pelos índios Paumari, no Estado do Amazonas. Os Paumari são um povo de aproximadamente 1.300 pessoas, falantes de uma língua da família Arawá, que vivem nos afluentes e nos lagos do médio curso do Rio Purus. É crucial lembrar aqui que alternativas econômicas vêm sendo buscadas por estes povos há tempos, em uma região fortemente marcada pela violência do sistema do aviamento econômico que vigora, com mais ou menos intensidade, desde a época da borracha.
No mês passado, os Paumari da região dos rios Tapauá e Cuniuá (Terra Indígena do Lago Manissuã, Terra Indígena do Lago Paricá e Terra Indígena do Rio Cuniuã) realizaram a primeira despesca de pirarucu manejado de sua história.
Exímios pescadores e grandes conhecedores do mundo aquático, os Paumari iniciaram o projeto de manejo do pirarucu há cinco anos, em parceria com a Operação Amazônia Nativa (Opan), a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Federação das Organizações Indígenas do Médio Purus (inicialmente em um consórcio que incluía a Visão Mundial e que, em uma segunda etapa, contou com o apoio da Conservação Estratégica e do Instituto Piagaçu).
Após um longo trabalho participativo e colaborativo entre índios, indigenistas, biólogos, antropólogos, técnicos e engenheiros de pesca, que incluiu ações de diagnóstico, mapeamentos, vigilância territorial, definição de regras coletivas de pesca e de uso de recursos pesqueiros, e aprendizado de contagem de peixes, os Paumari finalmente alcançaram a grande meta no último mês de agosto: obtiveram a autorização da Superintendência do Ibama para a primeira despesca do pirarucu manejado, que aconteceu poucas semanas atrás e foi um grande sucesso.
Foram cinco anos de trabalho intenso que, finalmente, rendeu os primeiros frutos. Destaca-se dessa experiência não só a ambição e a originalidade, mas o verdadeiro desafio que o projeto representou: o de viabilizar a gestão dos recursos pesqueiros dentro de terras indígenas, por seus próprios habitantes, implementando práticas sustentáveis que, simultaneamente, autonomizaram a população em relação aos comerciantes e pescadores aos quais estavam ligados, historicamente, por dívidas e por relações de empregamento.
De fato, há mais de dois séculos, os Paumari estão inseridos em estreitas redes de dependência econômica e relações de endividamento com comerciantes fluviais e patrões de barcos de pesca que, em troca de mercadorias e alimentos, ganhavam fácil acesso aos recursos pesqueiros da região.
O risco de romper com essas relações era, de certa forma, o de “cortar” os Paumari “do mundo”, interrompendo, não só os circuitos de troca econômica nos quais estavam inseridos, mas também isolando-os de suas conexões com o mundo dos brancos (que envolvem, até hoje, relações comerciais, de compadrio e de parentesco, etc.). Mas o projeto conseguiu ir além.
Além do sucesso em termos econômicos e ambientais – a última contagem realizada pelos Paumari, mostrou uma recuperação de 100% dos estoques de pirarucu nos lagos reservados – trata-se da demonstração de que processos de parceria e colaboração entre povos tradicionais, organizações da sociedade civil, organizações indígenas e órgãos governamentais é possível e desejável. Implicando diversos tipos de atores, envolvendo tipos distintos de conhecimentos (tradicionais, científicos, antropológicos, políticos,etc.) chega-se a um resultado que permite, inclusive, superar situações historicamente e sociologicamente complexas e difíceis de desentranhar.
Este é apenas um exemplo, entre muitos, do que os povos indígenas vêm realizando em suas terras, devidamente demarcadas e protegidas. Na região do médio Purus, os povos Apurinã e Jarawara também estão construindo, cada um a sua maneira e escolhendo seus próprios rumos, seus projetos de gestão territorial.
Se a demarcação e a garantia do usufruto pleno das terras é a condição fundamental para que um povo possa viver digna e autonomamente, é preciso hoje, mais do que nunca, ressaltar que a pressão sobre estas terras e sobre estes povos é tal, que essa garantia é apenas o começo de uma longa caminhada.