Por Felipe Recondo, Mariângela Gallucci e Roldão Arruda, no O Estado de S. Paulo
Brasília e São Paulo – O Supremo Tribunal Federal confirmou nesta quarta-feira, 23, a validade das 19 salvaguardas que haviam sido adotadas em 2009, durante o processo que definiu a demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. A Corte deixou claro que a decisão não tem efeito vinculante. Segundo o ministro relator, Luís Roberto Barroso, ela não se estende automaticamente a outros julgamentos envolvendo disputas de áreas reivindicadas por grupos indígenas.
Na prática, porém, as 19 salvaguardas referentes à Raposa deverão orientar daqui para a frente todas as decisões do poder público em relação a outras demarcações. Ainda nesta quarta, o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, anunciou que, tão logo seja publicado o acórdão do Supremo, voltará a vigorar automaticamente a Portaria 303, com orientações sobre o cumprimento das 19 salvaguardas. Editada em 2012 pela AGU, a portaria foi arquivada em decorrência de protestos de índios e organizações não governamentais em todo o País.
De acordo com Adams, embora não tenha efeito vinculante, a decisão tem efeito orientador. “Todos os ministros disseram que a decisão é um precedente jurisprudencial, que orienta futuras decisões, inclusive em cortes inferiores”, disse ele ao Estado. “Sou obrigado agora a orientar a área jurídica a acompanhar a jurisprudência dominante”, afirmou.
De fato, o próprio relator ressaltou durante o julgamento de ontem que a ausência de vinculação formal não impede que a jurisprudência construída pelo STF possa ser seguida pelas demais instâncias. Elas funcionariam como diretrizes. “A decisão ostenta a força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País”, explicou Barroso.
Novas regras. De maneira geral, as 19 salvaguardas adotadas pelo STF estabelecem uma espécie de novo estatuto para as demarcações e devem provocar descontentamento no meio indígena. Uma das condicionantes impede, por exemplo, a ampliação de terras indígenas já demarcadas – a menos que sejam compradas pelo poder público ou pelos próprios índios. Segundo Barroso, sem essa salvaguarda estaria se criando um ambiente de insegurança jurídica.
Dentre as condicionantes também aparecem a permissão para que as Forças Armadas instalem bases nessas áreas sem necessidade de consulta prévia às comunidades indígenas e a proibição de que índios explorem riquezas minerais sem autorização prévia do Congresso. Outra condicionante diz que a demarcação não pode ser feita sem consultas prévias a todos os entes federativos envolvidos, o que significa ouvir a prefeitura, o Estado e outras instituições públicas.
“Se o Supremo estivesse preocupado apenas com a demarcação da Raposa, por que incluiria essa condicionante na decisão de 2009? Ela deixa claro que eles estavam estabelecendo normas para outros casos”, disse Adams. “Não é a primeira vez que o Supremo julga um caso com decisões sem efeito vinculante que acabam sendo adotadas porque abrem precedente.”
O julgamento de ontem tratou de embargos apresentados pela Procuradoria-Geral da União, pedindo esclarecimentos, contestando as mudanças e também a autoridade da Corte para definir normas nessa área.
Contrário. O voto do relator foi acompanhado pela maioria dos integrantes da Corte. Os únicos a votarem contra foram o presidente, Joaquim Barbosa, e o ministro Marco Aurélio Mello. “O tribunal extrapolou, traçou parâmetros abstratos e alheios ao que foi proposto na ação originária. Agiu como verdadeiro legislador”, disse Barbosa.
Para o advogado Raul do Valle, coordenador da área política do Instituto Socioambiental e defensor dos interesses indígenas, a decisão do STF não autoriza a AGU a recuperar automaticamente a Portaria 303 de 2012. “A Corte derrubou o fundamento principal daquela portaria, que era a concepção de súmula vinculante”, disse ele. “Segundo o STF, as decisões só valem para o caso da Raposa. Pode não estar cristalino, mas quem acompanhou com atenção o que foi dito sabe que esse foi o leito principal da decisão.”