Acusado de vários crimes, Pinto Molina toma de assalto cinema para se dizer um dos 700 “exilados” do governo Morales, durante exibição de documentário que enaltece ex-presidente Sánchez de Lozada
Por João Perez, da RBA
São Paulo – “Imperialista!”. Este foi o melhor elogio que Um minuto de silêncio conseguiu arrancar dos espectadores da 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Não satisfeito em utilizar os 88 minutos de seu documentário para promover bovinas figuras do passado boliviano, o cineasta italiano Ferdinando Vicentini Orgnani trouxe na bagagem de mão o senador Roger Pinto Molina, foragido da nação vizinha por acusações de associação ao narcotráfico, contrabando, tráfico de armas e participação no massacre de camponeses.
Um minuto de silêncio é um filme para quem não tem problemas de gastrite e ostenta fígado forte. O cineasta maltrata a realidade dos últimos dez anos de história boliviana na busca de transformar algozes em vítimas. Quem conseguiu se aguentar na poltrona durante hora e meia de autoboicote à inteligência foi brindado com um extra que não está nos melhores DVDs do planeta: Organi trouxe à sessão da noite de sábado (19) na sala 1 do Espaço Itaú Augusta nada menos que Pinto Molina, que teve direito a microfone para se promover.
“Sou um dos 700 exilados do governo Evo Morales”, começou Molina, falando a uma plateia já muito esvaziada depois do fim da sessão, quando alguns dos espectadores deixaram a sala aos gritos de “imperialista”, com manifestações irritadas que classificaram o documentário de antidemocrático para baixo.
O oponente de Evo Morales não tem o charme de garota frágil-dócil-determinada de Yoani Sánchez, nem usa vestidinhos propositalmente gastos, o que seguramente lhe prejudica no intento de conquistar a América. Sua rechonchudez não casa bem com a imagem de quem diz ter sofrido uma imensa depressão no ano e dois meses que viveu na Embaixada do Brasil em La Paz, e seu sorriso, fixo no 75% de completude, evoca mais a Paulo Maluf que a Nelson Mandela.
Para quem não se lembra, Pinto Molina entrou no Brasil em 24 de agosto, em uma operação ilegal feita por funcionários da diplomacia brasileira em La Paz. A fuga pegou o Itamaraty de calças curtas, o que levou à demissão do ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota. O senador não tinha salvo-conduto para realizar a viagem da embaixada, território diplomático estrangeiro, até o aeroporto, de onde poderia deixar a Bolívia. As últimas informações do governo Dilma Rousseff são de que ele não será devolvido ao país de origem, embora possa ser orientado a buscar asilo em outra nação. Sempre de rosto rosado e paletó bem cortado, o parlamentar parece não ter ficado satisfeito em deixar a Bolívia e pretende agora usar a passagem por solo nacional para se promover. “A história me julgará”, disse aos que se dispuseram a ouvi-lo em São Paulo, onde se colocou como um defensor da liberdade.
“Não sabia o que fazer. Morri de vergonha de estar ali com a camisa da mostra”, confessou um funcionário da organização. Aparentemente, entre todos os que trabalham na realização do evento não havia ninguém que soubesse que Pinto Molina tomaria de assalto a sessão – embora o portal UOL informasse em reportagem publicada sete horas antes da exibição do filme que o senador estaria presente.
O anúncio, feito antes da exibição do filme, de que estava na sala o opositor de Evo Morales só poderia ter duas funções: preparação para o espírito para o que viria na hora e meia seguinte ou desistência prévia para evitar problemas cardíacos. Orgnani se valeu de uma produção cara – e do prestígio da mostra de São Paulo – para uma película que tenta limpar a barra de Gonzalo Sánchez de Losada, El Gringo Goni, presidente famoso por governar a Bolívia com um castelhano digno de novela da Globo.
Escolher um lado para retratar um documentário não é um problema. O cineasta erra quando maltrata a inteligência dos espectadores ao fazer uma produção absolutamente tendenciosa, cheia de buracos. Resumidamente, é um filme ruim, indigno de aparecer em uma mostra. Seu lugarzinho no mundo é Little Havana, em Miami, terra em que anticastristas seguramente sentiriam compaixão por seus expatriados irmãos bolivianos.
Orgnani se vale de dez ou quinze fontes para explicar como Sánchez de Lozada era um estadista moderno, que promoveu no país as melhores reformas liberais para garantir um Estado eficiente e a serviço das mais nobres causas sociais. São essas mesmas quinze fontes que explicam que os movimentos sociais foram os culpados pelas revoltas que derrubaram El Gringo, e não as privatizações e a venda a preço de banana do gás boliviano para os Estados Unidos. Assim como subestima a inteligência do espectador, subestima a capacidade de ação e de interpretação conjuntural do povo da Bolívia, jogando na conta dos líderes Evo Morales e Felipe Quispe toda a mobilização que culminou na queda de Goni, não sem que antes fossem os dois os responsabilizados pelas mortes de 27 pessoas – assassinadas pelo Exército comandado por…é…Goni.
É aí que o diretor acaba por deixar claro que não nutre apreço especial pela Bolívia, mas pela causa do presidente caído. No processo de filmagem, não grava uma única entrevista com familiares de vítimas da violência daqueles dias fatídicos para o processo neoliberal na Bolívia, ou com participantes das revoltas, ou com integrantes de movimentos sociais. Nada. A história é contada por engravatados que fizeram parte da gestão Sánchez de Lozada. É narrada por brancos, em uma nação em que 60% se autoidentificam como indígenas.
Os chamados povos originários só ganham voz quando se levantam contra Morales. Se a história do massacre de 2003 é contada sob o ponto de vista dos massacrantes, são os massacrados que têm vez quando sofrem violência no governo do líder cocaleiro. É só para isso que os indígenas servem, na visão de Orgnani: para legitimar uma visão pré-concebida pelos brancos entrevistados por ele para acusar Morales de ser um grande interessado no tráfico de folhas de coca visando à produção de pasta-base de cocaína.
Sim, até aí chegamos: Um minuto de silêncio encampa a visão de que o presidente está disposto a desrespeitar os povos que vivem no Parque Tipnis, na região central do país, para abrir uma estrada que será um grande corredor exportador de drogas. O filme não tinha obrigação nenhuma de se calar frente à violência estatal do governo Morales contra indígenas, mas não precisava brigar tanto assim com os fatos, e deveria, no mínimo, tentar embasar melhor este ponto de vista, sustentado basicamente por dois jornalistas que estão para a Bolívia como Merval Pereira para o Brasil, sempre dispostos a vender como verdade definitiva histórias sobre as quais ouviram falar, sem apego a fatos que existam no mundo real.
Propositalmente ou não, Orgnani omite informações. Um caso chama atenção: quando se dispõe a falar da perseguição sofrida por opositores do presidente. O documentário se mostra alarmado pelo fato de a oposição ter controle de apenas um dos nove departamentos bolivianos, controle gradativamente perdido em eleições acompanhadas por observadores internacionais que nada viram de irregular. A derrapagem fatal, porém, vem quando o filme crava que centenas de desafetos de Morales estão no exílio. As imagens a ilustrar a perseguição são as da prisão do ex-governador de Pando, Leopoldo Fernández, amigo de Pinto Molina. O motivo da detenção é omitido do espectador, numa desonestidade intelectual lamentável: Fernández não foi preso porque o presidente não gosta dele, mas porque foi o responsável pelo massacre de 15 camponeses em setembro de 2008, crime pelo qual o parlamentar fugido para o Brasil também é processado. De resto, alguns dos que não suportavam o governo do líder cocaleiro deixaram o país por acusação de tráfico de armas e contrabando, e porque não encontraram eco na tentativa de incitar o racismo que quase levou a arrebentar o país cinco anos atrás.
“Esse documentário é igual a uma reportagem de Veja”, observou um espectador ao final da sessão, acrescentando que a revista da Abril é famosa pelo pouco respeito à veracidade. “Será que ele foi pago pelo Sánchez de Lozada?”, indagava outro do lado de fora.
Dentro, a tentativa de Pinto Molina de se defender provocou revolta em vários espectadores. Quando se questionou a organização da mostra por dar a palavra a um foragido da justiça, o diretor tomou o microfone e disse que era ele o responsável por convidar o rosado parlamentar. Orgnani foi então indagado sobre o desequilíbrio do filme, e sobre a falta de fontes mais respeitáveis a embasar seus argumentos. Defendeu-se dizendo que já fez produções em outros lugares, duas em seu país criticando o bufão premiê Silvio Berlusconi. “Morales tem o mesmo desprezo pela oposição que Berlusconi”, comparou, tentando em seguida desmerecer o pedido do interlocutor por uma apuração mais fiel aos fatos: “Tinha o mesmo entusiasmo que você sobre Evo Morales quando fui à Bolívia, cinco anos atrás.” Bem, se for uma questão de tempo, playboy, perdeu: conheço a Bolívia há dez. Voltamos a nos falar em cinco anos, então? Quem sabe, até lá, você tenha aprendido que Morales e Berlusconi não são a mesma pessoa, e que os indígenas bolivianos têm pensamentos mais complexos que aqueles que você soube suscitar.
Outras exibições
Para estômagos fortes, Um minuto de silêncio tem mais duas exibições na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: domingo (20), às 14h, no Cine Livraria Cultura 2, e terça-feira (22), no Espaço Itaú Frei Caneca 4.
Para uma realidade menos distorcida, Crise é o nosso negócio, de Rachel Boynton, está disponível em DVD. É uma produção que conta como a candidatura de Sánchez de Lozada foi arquitetada por uma empresa dos Estados Unidos, próxima à Casa Branca, para defender uma plataforma liberal e de privatização. Entre outras coisas, o espectador descobre que a mesma corporação andou trabalhando em candidaturas em solo brasileiro.