Por Centro de Trabalho Indigenista
A agenda de petróleo e gás do governo segue atropelando direitos humanos e ambientais. Sem qualquer comunicação oficial, os povos indígenas afetados, com raras exceções, não têm conhecimento sobre os blocos ofertados pela ANP e consequentemente não têm oportunidade de discutir e se manifestar a respeito dos impactos das atividades de exploração e produção sobre seus territórios ou em áreas contíguas a eles.
Em junho deste ano, o Conselho Nacional de Política Energética autorizou a realização da 12ª Rodada de Licitações de blocos exploratórios de gás e petróleo, ofertando 240 blocos em sete bacias sedimentares terrestres para a exploração de recursos convencionais e não-convencionais. Em quatro destas bacias – Acre-Madre de Dios (Acre e Amazonas), Paraná (Paraná e São Paulo), Parecis (Mato Grosso) e Paranaíba (Maranhão, Piauí e Tocantins) – os blocos, quando não colidem com os limites de Terras Indígenas (TIs) ou distam menos que 10 km destas, se sobrepõem a áreas com processos de regularização fundiária em curso, em fase de identificação ou correção de limites.
Como se não fosse necessário transparecer e discutir os possíveis conflitos socioambientais provocados pelos futuros empreendimentos de petróleo e gás nas regiões em que pretendem ser instalados, a Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) se limitou a divulgar a localização dos blocos exploratórios no Pré-Edital de Licitações para a Outorga dos Contratos de Concessão para Atividades de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural, uma publicação técnica e direcionada aos possíveis empreendedores. Os mapas constantes no pré-edital não apresentam a localização de TIs e Unidades de Conservação (UCs) afetadas, e omitem que os blocos incidem sobre áreas definidas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) como de prioridade extremamente alta para a conservação; sobre demandas de criação de UCs em curso (como a UC Campinaranas do Rio Ipixuna, afetada pelos blocos AC-T-08 E AC-T-09 na Bacia Sedimentar do Acre-Madre de Dios, que tramita em fase de análise no ICMBio e já tem inclusive área proposta de 307.763 ha) [link para mapa com proposta de UC]; e sobre UCs já estabelecidas. Além disso, a delimitação dos blocos apresentada demonstra que a ANP desconsiderou algumas das recomendações feitas pela Funai em resposta à consulta quanto à incidência e afetação dos blocos sobre territórios indígenas.
Soma-se a estes problemas o fato de que um dos objetos de exploração desta rodada de licitações, os chamados recursos não convencionais, segundo a própria ANP, carecem de atenção por parte da sociedade no que tange aos riscos ambientais de sua exploração e explotação. Este assunto foi objeto de nota por parte da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, e da Academia Brasileira de Ciências, que solicita a moratória da exploração e explotação de recursos não convencionais e a suspensão da 12ª Rodada de Licitações, por ainda não haver conhecimento técnico e procedimentos seguros que garantam a ausência dos riscos e danos ambientais que têm sido verificados em outros países. Dentre os impactos nas áreas de produção de recursos não convencionais como o gás de folhelho (shale gas, em inglês), destaca-se o comprometimento de recursos hídricos superficiais e subterrâneos por contaminação e/ou superexplotação, o alto índice de emissão de metano e outros gases de efeito estufa, a contaminação de solos por metais pesados e elementos radioativos, e a falta de regulamentação para o emprego de substâncias químicas utilizadas no método de faturamento hidráulico (fracking, em inglês). No atual estado da arte, a exploração de recursos não convencionais na Bacia do Paraná, por exemplo, traria sérios riscos para a integridade do Aquífero Guarani, recurso estratégico para o país e para a humanidade como um todo.
A ainda imatura regulamentação ambiental específica para a etapa de concessão de blocos exploratórios favorece que estes potenciais conflitos sejam gestados. Atualmente, o processo de delimitação dos blocos a serem outorgados para exploração é definido pela Resolução CNPE nº 08/2003, que determina a exclusão de áreas com restrições ambientais dos blocos a partir de manifestações de órgãos estaduais responsáveis pelo licenciamento ambiental e gestão de UCs. A estas manifestações soma-se o parecer técnico a ser elaborado pelo Grupo de Trabalho Interministerial de Atividades de Exploração e Produção de Óleo e Gás (GTPEG), instituído no âmbito do Ministério do Meio Ambiente e composto por técnicos do MMA, IBAMA e ICMBio, responsável por avaliar os impactos e riscos ambientais e conflitos com os diferentes usos do território em que as atividades serão desenvolvidas. Durante esta etapa, não há qualquer regulamentação legal que indique a obrigatoriedade da participação da Funai e de outros órgãos competentes ao caso, e tampouco que suas recomendações sejam consideradas, cabendo-lhes participar apenas durante a fase de licenciamento das atividades, quando há legislação específica. Durante a etapa de definição de limites dos blocos, as avaliações de impactos socioambientais ficam então exclusivamente a cargo do GTPEG, que não tem competência técnica para se manifestar a respeito de impactos sobre territórios indígenas.
O Parecer Técnico nº 03/2013 do GTPEG, que aponta os riscos da exploração de recursos não convencionais e demais problemas ambientais mencionados anteriormente, parece ter sido desconsiderado pela ANP. Além de considerações técnicas, o GTPEG aponta falhas graves no próprio processo de aprovação do leilão: “Em 7 de agosto de 2013 o GTPEG foi surpreendido com a publicação, no Diário Oficial da União, da Resolução CNPE n° 6 de 25 de junho de 2013, que autoriza a realização da 12ª rodada de licitações de blocos para a exploração e produção de petróleo e gás natural. Ressalta-se que a publicação da aprovação da rodada antes do parecer da área ambiental federal é contrária ao estabelecido pela Resolução CNPE n°08/2003” (grifo nosso).
Valendo-se desse conjunto fragmentado de protocolos, nomeados como “Diretrizes Ambientais”, a ANP oferece uma falsa imagem aos empreendedores de que os blocos ofertados estão livres de restrições ambientais e conflitos territoriais, e será durante a etapa de licenciamento, quando os blocos serão recortados, as atividades de exploração e produção limitadas e conflitos territoriais instaurados, que as empresas se darão conta de que compraram gato por lebre. Tais conflitos poderiam ser desde já evitados caso houvesse entendimentos e procedimentos mais qualificados para a delimitação dos blocos que serão outorgados em leilão. Com isso, menos do que fomentar a indústria de petróleo e gás no Brasil, a condução deste processo pela ANP tem fomentado insegurança jurídica entre os investidores e entre os povos indígenas, que terão seus pleitos territoriais ameaçados e inflados os conflitos fundiários já em curso no Brasil.
O que se vê é a repetição dos atropelos do governo quando da atuação da GEORADAR na região do alto Juruá (empresa contratada pela ANP para a realização de levantamentos sísmicos na Bacia Sedimentar do Acre-Madre de Dios), conduzindo àquela vez, assim como desta, uma agenda de petróleo e gás que viola o que preceituam normas internacionais das quais o Brasil é signatário – como a Convenção 169 da OIT, que aponta em seu artigo 7º que“os povos interessados (…) participarão da formulação, implementação e avaliação de planos e programas de desenvolvimento nacional e regional que possam afetá-los diretamente”; e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que expressa em seu artigo 19 que “os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem”. Mesmo com sucessivas manifestações dos povos indígenas, como a Carta Declaratória sobre a Prospecção e Exploração de Petróleo e Gás no Juruá e a Carta Aberta dos Povos do Vale do Javari Sobre a Ameaça de Projetos Petroleiros no Brasil e no Peru, a ANP não envida nenhum esforço de informar, discutir e estabelecer dialogo prévio a respeito das ações que promove e seus impactos sobre as populações locais.
Com tantos atropelos, cabe questionar qual a legitimidade da ANP, no que tange à sua capacidade técnica e idoneidade, para gerir uma política ambiental de petróleo e gás. Como parte interessada, não deveria caber a este órgão decidir o que deve ser considerado dos pareceres técnicos emitidos pelos órgãos competentes e quais normativas legais que regem a condução do processo devem ser respeitadas ou não. Seus procedimentos têm acirrado o quadro de conflitos decorrente da agenda governamental de fomento a empreendimentos de infraestrutura com base na fragilização e desconstrução da legislação e dos órgãos responsáveis por defender os direitos dos povos indígenas. No afã de cumprir suas metas, põe na conta dos povos indígenas e de investidores riscos que poderiam ser evitados por meio de um processo transparente de consulta e diálogo, prevenindo potenciais conflitos.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Helena Ladeira.