Por Joana Salém Vasconcelos, em Diário Liberdade
Em uma madrugada de 1812, no condado de York, um grupo de mais de 70 operários assaltou as dependências da indústria têxtil na qual trabalhavam e destruíram todas as máquinas que puderam com marretadas.
Foi uma das maiores ações do movimento dos “quebradores de máquinas” que se espalhava pelos distritos industriais da Inglaterra. O objetivo era, por um lado, chamar a atenção para as condições aviltantes de trabalho e, por outro, atacar física e economicamente seus patrões, corporificados nas máquinas. O inspirador daquele assalto era Ned Ludd, operário britânico que no século anterior havia destruído uma máquina de costura após ser repreendido pelo patrão. Outros grupos em outras cidades industriais da Inglaterra produziram ações semelhantes durante as décadas de 1810 e 1820. No entanto, a proposta luddista perdeu força em meados do século XIX, depois que passou a ser punida de modo particularmente cruel.
O Estado britânico acirrou a legislação repressiva e passou a perseguir, prender, torturar e executar centenas de integrantes do movimento. Ao mesmo tempo, os luddistas perderam espaço com a diversificação tática do movimento operário: o surgimento dos sindicatos e o fortalecimento dos cartistas em 1830 colocaram em cena a luta por direitos políticos e pela participação operária no parlamento.
Alguns anos depois, os luddistas foram caracterizados por Marx como um proto-sindicalismo compreensível, mas que definitivamente mirava o alvo errado. O problema essencial do capitalismo não eram as máquinas, mas precisamente a propriedade privada das máquinas e as relações sociais de produção. Destruir máquinas, portanto, não caminhava nenhum passo em direção à transformação do sistema, além de atrair as forças militares contra a classe operária.
O fenômeno dos black blocs é recente no Brasil. Suas origens remontam ao fim dos anos 1970 na Alemanha, quando grupos anarquistas despontados dos protestos contra a energia nuclear empregaram métodos criativos de autodefesa contra a repressão policial. Preconizavam a tática da ação direta espontânea e da ocupação auto-organizada de espaços urbanos. Concebiam-se também como um movimento estético. Reinventados nos anos 1980, estabeleceram uma identificação visual com as roupas escuras e os rostos encapuzados, protegidos dos olhares policiais, propagando a destruição física dos símbolos do capitalismo globalizado. Disseminaram-se com a onda antiglobalização nos anos 1990, denunciando o neoliberalismo nas cúpulas da OMC e do G-8.
Os black blocs têm dividido opiniões na esquerda brasileira. Defendê-los pelo direito democrático à manifestação? Atacá-los por afastar as massas dos protestos das ruas? Defendê-los por ousarem destruir os símbolos do capitalismo globalizado? Atacá-los por facilitar a ação dos policiais infiltrados?
Penso que são como luddistas do mundo pós-industrial. Ao invés de destruírem as máquinas, atacam as instituições financeiras e os templos do consumo. Suas motivações são justas, mas a tática mira o alvo errado.
A juventude das periferias urbanas sofre com violência policial cotidiana, com desaparecimentos forçados, com quatro horas diárias de ônibus lotado, com racismo, com padrões culturais elitistas, com a exploração econômica do subemprego e da informalidade e com uma educação pública deteriorada. Essa é a verdade factual. Que os protestos de junho tenham despertado a iniciativa de grupos de jovens revoltados contra toda essa violência, decididos a se manifestar de maneira irremediável, isto também é plenamente compreensível.
Porém, quebrar agências bancárias e carros importados sequer arranha o volumoso patrimônio privado das empresas atacadas e tampouco aponta para qualquer mudança estrutural ou momentânea. Isso porque, na tática black bloc, falta um elemento fundamental de qualquer luta coletiva: a política.
Sem a política, a luta coletiva tende a ser engolfada pela cultura liberal e individualista que respiramos todos os dias. Sem a política, qualquer manifestação adquire contornos imediatistas e difusos: o ato radicalizado se torna um fim em si mesmo. Na melhor das hipóteses, tem o mesmo efeito de uma sessão de terapia, aliviando tensões interiores e pessoais. Sem política, caímos no jogo anárquico do mercado, imprimindo à luta o princípio da livre iniciativa. A tática fica desprovida de estratégia, condenada à mera repetição. Atos, violência, prisões, atos, violência, prisões, atos, violência, prisões…
Política é planejamento, organização, tática que acumula para uma determinada proposta estratégica. Por isso, condenar os black blocs como inimigos ou fetichizá-los como artistas de vanguarda não aponta para a questão essencial, que permanece sem resposta: como organizar a revolta?
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*Professora, historiadora formada na USP e Mestra em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP.