Prostituta que ousou defender direitos de milhões de mulheres considerava-se feminista, rejeitava ortodoxias e zombou até o fim da própria doença
Pela Revista Viração*
Gabriela Leite, a mais destacada lutadora pelos direitos das prostitutas brasileiras, morreu anteontem (10) de câncer, no Rio de Janeiro. Paulistana e de família tradicional, ela abandonou, com 22 anos, os cursos de Filosofia e Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) para imergir, por opção, na chamada Boca do Lixo, antiga região de São Paulo de grande concentração de garotas de programas, na década de 1970.
Hoje [em agosto de 2012], aos 61 anos, ela rejeita o termo “ex-prostituta” em suas apresentações. E com razão, pois Gabriela está muito ativa no movimento de defesa dos direitos das prostitutas, tendo fundando, inclusive, uma ONG em 1992, a Davida. Uma das principais conquistas até agora foi a inclusão, em 2002, da ocupação “trabalhador do sexo” na Classificação Brasileira das Ocupações (CBO), permitindo que prostitutas possam se registrar no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como autônomas, e garantir uma aposentadoria futura.
Autora do livro “Filha, mãe, avó e puta – A história de uma mulher que decidiu ser prostituta”, da editora Objetiva e que já foi transformada em peça teatral, Gabriela, que luta contra um câncer, acaba de ser uma das contempladas do Prêmio “Trip Transformadores 2012”. Foi uma homenagem ao fato de ter lançado, anos antes, a grife Daspu – uma provocação à luxuosa Daslu e, ao mesmo tempo, uma cooperativa de produção de roupas constituída por ex-prostitutas que não seguiram no mercado do sexo por conta da idade.
A seguir, você confere trechos da entrevista concedida à Agência Jovem de Notícias durante o 9º Congresso Brasileiro de Prevenção às DST e Aids, que aconteceu em agosto, em São Paulo (SP).
Quais são as perspectivas da regulamentação da profissão? O deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ) apresentou um projeto (PL 4211/2012) recentemente. Em que pé está?
Nós estamos juntos com o Jean Willys no projeto. Ainda não é o projeto que queremos, mas para passar agora tem que ser esse. Mas é difícil à beça, porque o Congresso está muito conservador. O projeto é a favor da casa de prostituição, desde que não tenha exploração do trabalho. Há uma nuance, porque a polícia pode chegar e dizer que a casa está explorando, mas não existe nada que especifique essa situação para contestar e ver se de fato houve a exploração. A questão é você saber onde tem exploração e onde não tem.
E qual é a definição da prostituição?
Nós somos a favor da prostituição como trabalho. Somos a favor do turismo sexual, mas contrárias ao tráfico de seres humanos e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Outra coisa é a prostituta adulta fazer sexo com estrangeiros. Não há nenhum impedimento legal em relação a isso. Se ela pode ganhar dinheiro fazendo programa com brasileiro, porque não pode, fazendo programa com um italiano? O taxista ganha dinheiro com o estrangeiro, a rede hoteleira ganha dinheiro com o estrangeiro, todo mundo ganha dinheiro.
Como você vê o movimento das profissionais do sexo em nosso País em relação aos outros?
Somos um dos países com o movimento mais forte, porque temos representações em 32 cidades do Brasil e muitos países da Europa. Às vezes, há uma associação somente em uma cidade, geralmente na capital do País. Recentemente, em Calcutá, na Índia, ganhamos um troféu de movimento mais moderno do mundo.
E como vocês lidam com o preconceito da sociedade?
É sempre fazendo ironia, como aconteceu com a Daspu, que dá uma visibilidade imensa. Acabamos de sair na revista Gol Linhas Aéreas, distribuída em todos os aviões da companhia, com o título A puta que pariu um sonho. Olha que maravilha, todo mundo que viaja de avião está lendo essa manchete. E acho que isso é uma luta contra o preconceito e vale mais que uma passeata.
Você acha que um dia a sociedade vai respeitar a prostituta como profissional?
Essa é a minha luta maior e acho que a luta das minhas colegas. A gente tem que acreditar nisso. O estigma e o preconceito existem em vários pontos, na pessoa que vive com Aids, nos homossexuais, nas travestis… Eu agora estou com câncer e percebi que existe um estigma com isso também. As pessoas não vivem com o diferente e temos que lutar contra isso, sempre, fazendo ironia. Esses dias, no restaurante, encontrei uma pessoa que não via há anos e eu estava usando um turbante. Comia perto da fila, quando a vi e ela gritou de longe “tá diferente, africanizou?” e eu falei “não, cancerizei”. Ela ficou tão sem graça (risos)!
Às vezes, muitas feministas falam contra as prostitutas e as tratam como vítimas. Como é a relação do movimento das prostitutas com o movimento das feministas?
É péssima. Sempre foi assim e em todo o mundo. As feministas – as ortodoxas, pois eu me considero feminista –, acham que a gente é vitima dos homens, do machismo, e tudo isso é muito simplista. Mas já existe uma linha do feminismo mais jovem, que dialoga com a gente. Mas uma vez eu estava nos Estados Unidos para conhecer o movimento feminista Bra-Burning, que queimou os sutiãs (na década de 1960). Quando me apresentei, falei: “Meu nome é Gabriela Leite, sou prostituta, sou feminista do Rio de Janeiro, Brasil”. Aí a presidente do movimento falou: “Você não é feminista. Prostituta não é feminista”, e eu disse que sim, e ela disse que não era. Ficamos assim até alguém interromper a discussão.
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* Participaram Ingrid Evangelista, Luana Viegas, Rafael Stemberg, Ramonna Abreu, Reynaldo Gosmão e Vânia Correia. Entrevista publicada originalmente em agosto de 2012.