“Transposição do Descaso”

O TEMPO – Onde foi prometida água corrente e em grande volume, hoje, há um cenário de abandono e desperdício de dinheiro público. A faraônica e questionável obra de transposição do Rio São Francisco, iniciada pelo presidente Lula, em 2007, como solução para a seca do nordeste, se transformou no maior retrato a céu aberto de descaso e má gestão do governo petista. São mais de dois anos de atraso atá agora em relação ao cronograma inicial e pelo menos R$ 3,5 bilhões gastos acima do previsto. Esses e outros inúmeros problemas foram registrados de perto pela reportagem O TEMPO durante 17 dias em uma viagem de exatos 5.036 km, ora pelo asfalto ora por estradas de terra, cruzando 16 municípios em três estados – Pernambuco, Paraíba e Ceará. Em boa parte dos chamados eixos Leste e Norte da transposição, onde desde 2011 era para estar passando por canais de concreto a água do Velho Chico, vê-se mato, obras comprometidas pela ação do tempo e desinformação da população local, a maior vítima de promessas políticas não cumpridas. Este especial retrata não só o abandono das obras, como também a vida sofrida do sertanejo naquela região.

Obra tem atraso, falhas técnicas e desperdício de dinheiro

Por Rodrigo Freitas

SERTÃO NORDESTINO. Há dois anos, a paisagem seca do sertão poderia ter começado a mudar, caso o governo federal tivesse cumprido a promessa de entregar as obras de transposição do rio São Francisco em 2011, conforme havia sido previsto pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde o início dos trabalhos, em 2007, não faltaram percalços, abandono de construtoras e denúncias de superfaturamento.

O resultado disso, hoje, é uma obra incompleta, com trechos semiprontos que ligam o nada ao lugar nenhum, além de uma desconfiança do sertanejo sobre a real eficácia da faraônica obra, idealizada ainda nos tempos de império, e que desde que foi anunciada, com toda pompa e circunstância, nunca foi unanimidade entre os especialistas.

A transposição do Velho Chico é composta por dois eixos (Leste e Norte), que partem de Pernambuco e seguem em direção ao Ceará e à Paraíba, num primeiro momento. De acordo com o projeto, o trecho Leste terá 217 km de extensão, sairá da barragem de Itaparica, entre Petrolândia e Floresta, no sertão pernambucano, e chegará a Monteiro, na Paraíba. Já a parte Norte da transposição terá, ao todo, 260 km de canais e barragens: de Cabrobó (PE) a Cajazeiras (PB).

No papel, o projeto de levar a água do São Francisco aos rincões do semiárido parece muito prático e de fácil aplicação. O grande problema é que a má gestão do governo vem fazendo com que construtoras abandonem os canteiros de obras. Trechos que já estão prontos sofrem com a impiedosa ação do tempo. O sol forte na região já rachou parte do concreto em alguns locais. Em outros, onde apenas o terreno foi recortado, o abandono dos trabalhos gerou o crescimento da vegetação onde passará o futuro canal. Onde há obras de fato, o ritmo de trabalho é sempre lento.

Represas e barragens, que terão papel fundamental para fazer a água correr por efeito de gravidade, ainda são um mero escopo em terrenos pedregosos e arenosos. Em alguns pontos, elas sequer foram começadas. Em outros, apenas a terra foi remexida, causando uma transformação no cenário – da caatinga para um mar de poeira.

Hoje, em boa parte dos dois eixos, o canal serve apenas como ponto de passagem para espertos bodes e cabras que tentam encontrar alimento em meio à vegetação seca da caatinga. Nenhuma gota d’água passa por ali.

R$ 4,73 bi eram o custo da obra previsto pelo governo federal em 2007, quando a obra começou, ainda na gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva

R$ 8,2 bi são o total atualizado de gastos com a transposição do Velho Chico, de acordo com as projeções mais atualizadas do Ministério da Integração Nacional

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Damião e Maria do Socorro tentam, a todo custo, encontrar alguma água para usarem na propriedade onde moram, na cidade de Serra Talhada, no sertão pernambucano (Foto: Douglas Magno)
Damião e Maria do Socorro tentam, a todo custo, encontrar alguma água para usarem na propriedade onde moram, na cidade de Serra Talhada, no sertão pernambucano (Foto: Douglas Magno)

Desespero: Homem fura poço e acha água suja 

Enquanto a água não chega ao sertanejo, o sertanejo tenta chegar até a água. Em Serra Talhada, em Pernambuco, perto do canal do eixo Leste da transposição do rio São Francisco, quem mora na zona rural tem se virado como pode para conseguir o líquido.

À beira de uma ponte sobre mais um rio que secou, está Maria do Socorro Batista, 42. A mulher está cabisbaixa, parecendo pensar na vida. Metros abaixo, o marido dela, Damião Aleonildo Ferreira, 49, cava um poço. A água até que foi encontrada, mas é acinzentada. Aquela foi a única forma que o casal achou para matar a sede dos animais que ainda tenta criar.

Damião conta que a água para a família beber e cozinhar já tem sido comprada. “Quando chovia por essas bandas, moço, eu plantava feijão e milho. Agora, nem adianta botar roça aqui”, ia dizendo Damião, enquanto assentava mais um tijolo naquele poço de água visivelmente suja.

Enquanto isso, Maria do Socorro trata de completar as palavras do marido. “A gente tem vivido do Seguro Safra (R$ 170 mensais) e do Bolsa Família (R$ 70 por mês). Mas é bem pouco, viu?”, afirma.

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Em Floresta, portal do eixo Leste da transposição, sertanejos começam a deixar suas propriedades em busca de oportunidade e de vida mais digna. Casas abandonadas são rotina (Foto: Douglas Magno)
Em Floresta, portal do eixo Leste da transposição, sertanejos começam a deixar suas propriedades em busca de oportunidade e de vida mais digna. Casas abandonadas são rotina (Foto: Douglas Magno)

Paradoxo: Seca impera mesmo próximo da água

SERTÃO NORDESTINO. “Perto de muita água, tudo é feliz”. A frase é de Guimarães Rosa, em sua mais célebre obra, “Grande Sertão Veredas”. Lançado em 1956, o livro de literatura pós-modernista parece mais atual do que nunca quando colocado em paralelo com a seca prolongada vivida pelos nordestinos sertanejos. Há quase três anos, dizem eles, não chove de verdade na região. A secura da paisagem se revela em mais de 60 rios, contados pela reportagem durante a expedição ao sertão, que simplesmente deixaram de existir nos últimos tempos.

A gente sertaneja não reclama da vida nem questiona Deus. Apenas se entristece com a falta de chuva e a pouca água que há para resistir – sim, a palavra é esta – à vida ali. Resignadas, as pessoas, com o passar do tempo, aceitam meio à força “que o correr da vida embrulha tudo”, como escreveu o próprio Guimarães Rosa, e se agarram à esperança de um dia em que água farta não seja apenas mais um sonho distante ou promessa de candidato.

Enquanto o governo federal bate cabeça para colocar a obra em um ritmo capaz de concluir o projeto sem estender ainda mais o atraso, o que resta aos sertanejos é contabilizar os prejuízos de safras e mais safras em que eles puderam colher apenas o insucesso. A sobrevivência tem vindo por meio do Seguro Safra, uma soma mensal de R$ 140 disponibilizada pelo governo federal para tentar minimizar os danos impostos aos produtores pela seca incessante.

Sobreviventes. Em Floresta, no interior de Pernambuco, um paradoxo chama a atenção. Ponto de partida do eixo Leste da transposição, a cidade está próxima ao rio São Francisco. Ainda assim, 10 mil agricultores apenas sobrevivem, com histórias que parecem se repetir. Joões, manoéis, severinos, marias, pedros e tantos outros tentam, há anos, colher algo na terra seca. Mas os esforços têm sido em vão.

Mesmo sem a esperada água da transposição ou uma chuva decente, as mãos cheias de calos de Paulo Feitosa, 66, ainda tentam plantar na terra seca qualquer coisa que seja. Mas o esforço do homem está longe de ser recompensado.

“Já perdi aqui milho, feijão e arroz. Há pouco tempo, vendi 200 cabeças de ovelhas porque não tenho mais condições de manter a criação. Hoje, só restaram uns 50 bodes e cabras. É triste”, conta o homem, que, sem conseguir trabalhar na própria terra, andava pelas imediações do canal para, nas palavras dele, “gastar o tempo”.

Em junho passado, até que chuviscou. Mas ficou nisso. A água foi suficiente apenas para deixar folhas de alguns arbustos mais vivas – a chamada seca verde.

No sertão, é assim. Por vezes, o dia escurece e as nuvens ficam carregadas. Mas não chove. O tempo fechado serve apenas para diminuir um pouco do calor causado pelo sol escaldante que, naquele pedaço de terra, parece estar mais perto das pessoas.

Estiagem em números

Drama. Estima-se que mais de 12 milhões de pessoas sintam os efeitos da seca no Nordeste. Os problemas se espalham pelo interior de rigorosamente todos os nove Estados que compõem a região.

Prejuízos. O Conselho Nacional de Pecuária de Corte calcula que o Nordeste já tenha perdido 1 milhão de cabeças de gado nesta última estiagem, que já dura dois anos e meio. Metade morreu, e a outra metade foi abatida antes da hora ou mandada para outras regiões.

Desvalorização. Com os animais magros, um boi que valeria R$ 1.500 chega a ser negociado por R$ 100 na região.

Leia o especial em O TEMPO.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

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