Roberto Antonio Liebgott, Cimi Regional Sul Equipe Porto Alegre
Os povos indígenas no Brasil acompanham à distância os preparativos da V Conferência Nacional de Saúde Indígena. Digo a distância porque as conferências locais, que deveriam se constituir em espaços primordiais de debates, avaliações e definições de propostas a serem encaminhadas para a etapa nacional, acontecem sem a efetiva participação das comunidades e de suas lideranças. Aliás, na maioria das regiões do país, as etapas locais vêm sendo realizadas longe das aldeias, geralmente em hotéis ou sedes da FUNASA/SESAI, como ocorreu no Rio Grande do Sul por ocasião da conferência local do Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI – Litoral Sul.
Os lugares das reuniões, quando geograficamente distantes das comunidades, geralmente são espaços impróprios pela sua artificialidade, uma vez que em nada lembram as realidades onde vivem os povos indígenas. As comunidades, em sua maioria, estão submetidas a condições inadequadas de sobrevivência pela ausência de saneamento básico, assistência médica, de ações preventivas que poderiam impedir as mortes de crianças por viroses ou doenças relacionadas a verminoses (parasitoses), como ocorre atualmente.
O fato de as etapas locais da V Conferência Nacional de Saúde Indígena ocorrerem distante das aldeias é ainda mais grave porque impede que aquelas pessoas, as que vivenciam cotidianamente os graves problemas decorrentes da desassistência, participem das discussões, avaliações e apresentem suas críticas e propostas.
Há, ao que parece, certo temor dos gestores públicos em se aproximar das comunidades indígenas. Talvez seja o medo de se depararem com a inegável realidade de fome, com a escassez de água potável, com a disseminação de doenças, especialmente em comunidades situadas no Amazonas, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rio Grande do Sul.
Para exemplificar essa triste realidade, pode-se recorrer às informações divulgadas pelo DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena do Mato Grosso do Sul, relativas ao período compreendido entre 2010 e 2012. Naquele estado, 118 crianças morreram ao nascer, outras 208 crianças foram a óbito antes de completar o primeiro ano de vida e 87 morreram antes dos cinco anos.
Esses números correspondem a índices muito superiores aos verificados na média nacional, que são de 23 mortes para cada mil nascidos. Lideranças indígenas do Conselho da Aty Guasu denunciam que a mortalidade infantil está inserida no contexto de uma política de Estado, que promove o genocídio silencioso dos povos Guarani e Kaiowá.
Os dados orçamentários do DSEI/MS corroboram com este argumento, pois apontam que, dos 60 milhões de reais disponibilizados em 2012 para a saúde indígena em Mato Grosso do Sul, 90% foram destinados ao pagamento de RHs (Recursos Humanos). Ou seja, a maior parte deste montante de dinheiro é direcionada para pagamento dos profissionais de saúde, e apenas 10% é reservado para a compra de medicamentos, equipamentos, assistência efetiva e continuada nas áreas indígenas, formação dos agentes de saúde, bem como para a implementação de ações e serviços voltados à prevenção das doenças.
Em âmbito nacional, os dados do Ministério do Planejamento denunciam que a execução orçamentária nas ações em saúde indígena, durante o ano de 2012, foi deplorável. Na rubrica Saneamento Básico foram previstos R$ 67.986.192 e gastos somente R$ 86.403,00, um percentual irrisório de 0,13%. Na ação de Estruturação de Unidades de Saúde para Atendimento à População Indígena, dos R$ 26.650,00 previstos, apenas R$ 2.318.188, foram executados, o que corresponde a 8,7%. Também na rubrica Promoção, Vigilância, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena, os recursos orçamentários destinados, na ordem de R$ 708.000.000, não foram totalmente liquidados, restando, de seu montante, 15%, o que corresponde a R$ 102.563.699,00, recursos que pod eriam ter sido utilizados para ações de combate a mortalidade infantil, por exemplo.
A situação não parece ser diferente no ano em curso. Em 2013, os dados da execução orçamentária disponibilizados pelo Programa Siga Brasil do Senado Federal revelam que, de janeiro a setembro, a rubrica Saneamento Básico não executou um único centavo dos R$ 59.400.000 autorizados. Nas demais rubricas os dados orçamentários revelam a inoperância da Secretaria Especial de Saúde Indígena e nos dão a dimensão da nefasta negligência dos gestores da política de atenção à saúde dos povos indígenas. Os dados revelam que, transcorridos nove meses, o governo utilizou apenas R$ 1.983.003 dos R$ 40.000.000 destinados a Estruturação de Unidades de Saúde para Atendimento a População Indígena. Na rubrica Promoção, Vigilância, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena foram executados R$ 540.563.372 dos R$ 838.000.000, um pouco mais de 60%.
Quando os gestores da política de Atenção à Saúde Indígena enchem a boca ao falar que há dinheiro para a atenção em saúde, deveríamos denunciá-los pelo mau uso deste dinheiro e por atentarem contra a vida, não apenas de indivíduos isoladamente, mas de comunidades e povos, pois não investem os recursos em ações fundamentais, especialmente em saneamento básico, uma das mais recorrentes demandas apresentadas pelas comunidades. Sem saneamento básico não há possibilidade de que as demais ações e serviços em saúde, a exemplo da prevenção das endemias, tenham qualquer possibilidade de êxito.
Os dados orçamentários são reveladores de que a política de atenção à saúde das populações indígenas é ineficiente, inaceitável e pode ser caracterizada como criminosa uma vez que, por causa dela, centenas de crianças morrem a cada ano. Os dados da mortalidade infantil registrados em Mato Grosso do Sul são alarmantes e configuram, como alertaram as lideranças indígenas do Conselho da Aty Guasu, um lento e doloroso processo de genocídio. E infelizmente não se trata de uma realidade isolada, e sim de uma grave situação que atinge diversos povos indígenas na atualidade.
O Ministério Público Federal, ao tomar conhecimento dos dados orçamentários, de sua pífia execução e das informações de que crianças morrem pela ineficiência ou omissão dos gestores públicos, pode abrir uma ampla investigação para apurar as denúncias e, sendo estas comprovadas, exigir que tais gestores sejam exonerados de seus cargos e, se for o caso, processados e condenados.
Num país em que vidas de crianças indígenas valem menos do que um boi no pasto, somente medidas exemplares trarão esperanças de que os direitos humanos podem prevalecer sobre interesses políticos, econômicos e mercantis.