Os Kaxinawá de Felizardo: Correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá

felizardo“Constantemente a Coordenação Regional do Juruá – FUNAI/ACRE recebe emails ou visitas de estudantes procurando informações sobre os povos indígenas da região do Juruá. (…)  O destaque hoje vai para a publicação “Os Kaxinawá de Felizardo: Correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá”. Obra do querido amigo, o antropólogo Marcelo Piedrafita Iglesias, como resultado de sua pesquisa de doutorado. Abaixo segue uma matéria postada no blog do Altino, em 2008, que trata sobre esta publicação e  resume muito bem esta obra”.

Os Kaxinawá de Felizardo

Do Blog do Altino, em CR Juruá

A tese de doutorado “Os “Kaxinawá de Felizardo”: “correrias”, trabalho e “civilização” no Alto Juruá”, do antropólogo Marcelo Manuel Piedrafita Iglesias, é o documento mais instigante que li nos últimos anos sobre o Acre. Foi apresentada em fevereiro ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Destacado colaborador deste blog, Marcelo Piedrafita teve seu trabalho aprovado com louvor ao obter o título de doutor em antropologia social. Trata-se de uma alentada pesquisa, que se torna imprescindível para quem queira conhecer a verdadeira história do Acre. O texto da tese, com 481 páginas, é ilustrado por mapas e fotos inéditas.

A foto acima, por exemplo, é de Felizardo Avelino de Cerqueira, aos 40 anos de idade. Foi obtida pelo antropólogo do álbum da familia Cerqueira. No verso da foto, lê-se: “Offereço à Irmã e Amiga Gersina. Cruzeiro do Sul, 30-10-1926. Felizardo Cerqueira”.

Ele nasceu em Vila Pedra Branca, no Ceará, a 29 de outubro de 1886. Com pouco mais de 17 anos, em março de 1904, acompanhado de uma turma de conterrâneos, deixou a cidade natal com destino ao Amazonas, passou por Belém e Manaus e desembarcou na confluência dos rios Envira e Juruá.

Naquele ano, trabalhou como seringueiro no rio Acuraua e na safra seguinte, de 1905, já como freguês de Ângelo Ferreira da Silva, começou a cortar seringa numa colocação de margem próximo ao sítio Lupuna, dividindo sua barraca com o seringueiro Francisco Gomes.

Em agosto de 1905, o ataque de cinco índios à sua colocação – seu companheiro em fuga foi alvejado por uma flecha, seus pertences foram roubados e sua casa incendiada – desencadearia uma seqüência de eventos que daria início, segundo Felizardo, à sua carreira como “catequista de índios”.

No barracão, para onde Francisco foi trazido e salvo pelo tratamento prestado por Ângelo Ferreira, a imediata reação dos demais fregueses foi planejar uma “correria” – matança organizada de índios. Após refletir, dado o “risco de ser responsabilizado pela defesa que constitui dos índios”, Felizardo proporia experimentar se era capaz de “entrar em contato” com os “selvagens”. Sua reação, culminando com a ousada proposta, é assim justificada num relatório inédito que deixou sobre os anos vividos no Acre.

– Eu, que por diversas vezes, vi chegarem grupos de peruanos e brasileiros, trazendo consigo índias e meninos e contarem que lá ficaram inúmeros índios mortos, não me sentia bem com tremenda cena desumana. Sentia dentro de mim, não sei o que, uma compaixão pelos pobres dos prisioneiros das selvas que foram criados com tanta liberdade e em dado momento fugir de súbito da sua felicidade que outrora gozavam, para se ver prisioneiros e cativos de seus algozes, que sem compaixão jogavam-lhes nos mais brutais trabalhos.

Felizardo tinha por hábito marcar suas iniciais (FC) no braço de homens, mulheres e crianças por ele “amansados”. Assim aconteceu com parte dos Kaxinawá e com outros índios que, enquanto Felizardo esteve em Revisão, ali chegaram, “pegos” em rondas da “polícia de fronteira” ou por circunstâncias de suas trajetórias pessoais.

Felizardo - FC


Nesta foto, captada pelo antropólogo Terri Vale de Aquino na Terra Indígena Kaxinawá, aparece o braço do velho Regino Pereira, com a marca FC, de Felizardo Cerqueira. Uma única menção a essa prática é feita por Felizardo em seu relatório:

– Eu tinha o hábito de marcar todos os índios com as letras FC e o número de ordem que fosse amansando.

Marcelo Piedrafita revela que Felizardo dá indicações em seu relatório de que os Kaxinawá foram o grupo junto ao qual suas ações de “catequese” obtiveram resultados mais consolidados – apesar de reconhecer que “em caso algum me foi tão difícil a catequese quanto esta tribu”. Ao contabilizar os resultados de seu trabalho como “catequista de índios”, Felizardo diria:

– Todos os índios que foram mansos por mim, que são superior a três mil, deixei-os na mais perfeita “Liberdade”. Não há prova concludente que desminta esta verdade”.

Mas o antropólogo Marcelo Piedrafita observa:

– Na carta enviada ao deputado federal José Guiomard Santos em 1955, em que solicitava seu apoio junto ao governo federal para a obtenção de uma pensão, Felizardo, diferentemente, especifica ter “catequizado” “para mais de trezentos índios”. Este número, cabe ressaltar, coincide com o total aproximado dos Kaxinawá que com ele permanecera após a diáspora no rio Envira, o acompanhara na mudança ao alto rio Tarauacá e com ele se estabeleceu e trabalhou no seringal Revisão.

Leia um trecho da tese de Marcelo Piedrafita. Os Kaxinawá acreditavam que Felizardo era possuidor de “poderes mágicos”, que permitiam-lhe esconder-se sem deixar rastro, passar sem ser notado e não ser alvejado por armas de fogo, atributos que davam confiança aos Kaxinawá ao se engajarem com ele nas atividades da “polícia de fronteira”. Clique em Um homem de “oração forte”.

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