Por Bruna Bernacchio, em Outras Palavras
Das cerca de 4 mil pessoas presentes no ato paulistano da Semana de Mobilização Nacional Indígena na noite de quarta-feira (2/10), mil eram índios. Facilmente se reconheciam os filhos da terra: tribos guaranis inteiras, espalhadas em quatro ou cinco agrupamentos. Lideranças indígenas, casais de mãos dadas, mulheres carregando seus bebês no colo (do começo ao fim) e muita, muita criança. Em menor número, e menos visíveis para as câmeras que procuravam penas e nudez, estavam povos tradicionais dos quilombos, como o do Vale do Ribeira.
As faixas expunham o que os levava ali: direitos indígenas, demarcação de terras. Contra a PEC 215, que transfere aos parlamentares a decisão sobre a demarcação das terras indígenas e dos povos tradicionais; e a PLP 227, que permite que terras já homologadas sejam exploradas por empreendimentos de energia e minérios.
Os índios da etnia tupi-guarani vivem nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Lutam atualmente para manter suas terras e recuperar outras: as Terras Indígenas Jaraguá, na beira da Rodovia Bandeirantes, onde houve manifestação quinta-feira passada (26); a Tenondé Porã, na zona sul da Grande São Paulo; e a Terra Indígena Boa Vista do Sertão de Promirim, em Ubatuba. Segundo informações da Comissão Guarani Yvyrupa, as terras já foram aprovadas pela FUNAI e depende apenas de Portaria Declaratória expedida pelo Ministério o início da demarcação.
A atmosfera é de tensão. Saindo do MASP em passo marcado, com a força de meio milênio de resistência, os manifestantes foram crescendo em número e unidade. A presença do Estado vestido de farda provoca faíscas. Logo no início, o artista pixador Djan Ivson Silva recusou revista e foi arrastado, espancado e preso. “Fascistas, fascistas!” – a multidão tentava impedir. “Calma, gente, tem criança aqui!” – cuidava. Momentos depois, o major da operação disse à repórter da Rede Brasil Atual que “não é proibido ter spray, mas é proibido resistir”. E onde os black blocks vão, a polícia vai atrás.
Com o som ritmado circulando entre todos, o chocalho de espantar sombras se demora junto aos batalhões. Uma mulher de cabelos longos e brancos desce de sua bicicleta: “Eles são os donos do Brasil, os verdadeiros donos do Brasil! Vocês sabem disso, né?” – exclamava, procurando alguma reação por trás das fardas. Os guarani entoavam cantos e repetiam sons da floresta, mistério vivo no concreto da cidade. Gritos de tom, altura e ritmo variado mantinham o passo justo da marcha. Já entrando no fluxo, os sons eram timidamente experimentados pelos caras-pálidas. As cores de pele se misturaram naquela noite.
Ao longo do percurso, até a autoridade policial se desfez em forma de robôs desleixados. Eram as lideranças indígenas, com fluidez silenciosa e precisa, que indicavam o caminho. Trânsito bloqueado, companheiros das Jornadas de Junho trajando a camiseta do MPL (Movimento Passe Livre) ajudavam com a direção e organização. Outros sinalizavam para carros de vidros escuros darem meia volta. O sentido da rotina virado ao contrário. Somente os ônibus passavam.
Vazio, o cimento virou leito de alguns. Flores-cimento de liberdade. O passado sendo curado por brancos que abriam caminho aos tupinambá. O destino era o Parque Ibirapuera. Monumento à vista: os donos da terra correram a ocupar a estátua dos bandeirantes – por quem foram “descobertos” e massacrados. Reescrevem a história nas pedras.
Os bandeirantes sucumbem ao vermelho sangue, faixas, pixos, bandeiras. “Meio ambiente com a gente!”, ouve-se lá em cima. Contra a PEC 215 e Belo Monte! Poucas palavras são ditas: união, poder do povo. Celebração em dança e brincadeira. Crianças correm entre pessoas que ficam por ali, sentadas mais algum tempo. A polícia se mantém afastada. O ato termina em paz – até a próxima luta.