O primeiro presidente da Funai na era Lula ficou no cargo um semestre. Segundo ele os empreendedores e produtores rurais no Brasil não são contra os povos indígenas e o reconhecimento de seus direitos
Eduardo Aguiar de Almeida foi o primeiro presidente da Funai da era Lula. Ficou no cargo um semestre, de fevereiro a agosto de 2003. É indigenista, jornalista e agricultor. Como técnico indigenista, foi formado pela Funai em 1979 e trabalhou entre os Karajá, Munduruku, várias etnias da Bahia, várias etnias de Roraima e do Oiapoque (Amapá). Diz que perseguido junto com dezenas de colegas pela gestão do coronel Nobre da Veiga em 1980 e depois anistiado em 1993, “mas virtualmente posto na geladeira e virtualmente forçado a me exonerar em 1995”. “Sou hoje um pequeno agricultor-criador, residindo em minha pequena propriedade rural no interior da Bahia”.
Segundo ele, na entrevista abaixo, “os empreendedores e produtores rurais no Brasil, não são necessariamente ou ideologicamente contra os povos indígenas e o reconhecimento de seus direitos”. Uma distinção, portanto, se faz necessária: “não se pode confundir o discurso ideologizado e radical de algumas lideranças oligárquicas e capitalistas do campo com o conjunto dos chamados produtores”. O momento, no entanto, é delicado, e, para Almdeia, “o Brasil mergulha, como vem ameaçando fazer, num fosso obscuro e é bem possível pensar que isso vai gerar tensões absurdas”.
CartaCapital: O que está acontecendo hoje, como explicar esse ataque aos direitos indígenas?
Eduardo Aguiar de Almeida: “O que está acontecendo”, quero crer, é uma grave e lamentável cooptação ideológica e política de parte importante da esquerda brasileira por setores os mais reacionários, conservadores e excludentes da sociedade brasileira por razões que, às vezes, parecem claras e, às vezes, enigmáticas. De um lado há um equívoco tremendo, primário, de alguns dirigentes políticos dos Governos Lula e Dilma em que consideram que é preciso tratar bem o agronegócio e outros setores que geram divisas para o país e acham que para isso é necessário, indispensável, na prática, negar direitos adquiridos, inclusive constitucionais, de povos indígenas e quilombolas, e assim, também, garantir a governabilidade com maioria num Congresso composto desproporcionalmente por forças conservadoras, etc. Na verdade, não é bem assim. Os empreendedores e produtores rurais no Brasil, não são necessariamente ou ideologicamente contra os povos indígenas e o reconhecimento de seus direitos, sobretudo os territoriais. Grande parte dos empreendedores rurais, mesmo muitos grandes e médios, quer apenas produzir, auferir renda líquida de sua atividade, se defender contra as oscilações econômicas e não conflitam com direitos indígenas e quilombolas. Não se pode confundir o discurso ideologizado e radical de algumas lideranças oligárquicas e capitalistas do campo com o conjunto dos chamados produtores. Quanto aos parlamentares, sabemos também que nem todos os integrantes da bancada ruralista são radicais e ideologizados. De outro lado, há enigmas no ar, sim. Não sei dizer se ligados a fatos e compromissos políticos de pouca visibilidade pública, como financiamento de campanhas.
CC: Qual a ameaça dessas mudanças legislativas (PEC 215, PLP 227) para o futuro?
EAA: Vejamos: a PEC 215 e o PLP 227 teriam entrado em pauta lá atrás, talvez ainda no governo FHC, quando, em tese, o ruralismo oligárquico radical estava no poder, mas só agora, já na terceira gestão da chamada “era Lula”, doze anos de poder do Partido dos Trabalhadores, são tocados incisivamente no Congresso. Em parte, ainda estou respondendo à primeira pergunta. Claro, ambas as iniciativas legislativas consagram a lógica perversa e retrógrada do colonialismo de 500 anos, da sociedade racista, excludente, autoritária. Seus propositores e agitadores acham campo para tocar essas coisas. Eles entendem que um governo que distribui renda, reduz a pobreza, retoma o crescimento do PIB e afirma o país no exterior fazendo vistas grossas à questão democrática e aos direitos humanos, é um governo deles. A ideia d e “Brasil Grande”, mesquinha e inadequada no mundo atual de tantas emergências democráticas e ambientais, e de um desenvolvimentismo a qualquer custo, superado, empolga e une reacionários e pretensos esquerdistas deslumbrados. Se iniciativas como essas e outras passam, o Brasil mergulha, como vem ameaçando fazer, num fosso obscuro e é bem possível pensar que isso vai gerar tensões absurdas, com efeitos imprevisíveis, mas seguramente nada bons.
CC: Como esse processo de força contrário aos índios se tornou tão poderoso e influente?
EAA: Em parte essa pergunta já está respondida acima. Acrescento apenas a lembrança de que o Programa de Governo colocado na campanha de Lula em 2002 se dizia calcado em um tripé, ou três “eixos”, que eram, em síntese: desenvolvimento econômico, distribuição de renda e aprofundamento democrático. Ainda em 2003, vimos o terceiro eixo ser solenemente enterrado vivo às escondidas. Sepultado sorrateiramente. De repente ninguém mais falada nisso. E foi isso mesmo que aconteceu. Não fizeram reforma política até hoje, não fizeram reforma agrária e ainda resolveram fazer corpo mole em relação a direitos humanos, direitos indígenas e coisas tais.
CC: O que pode ser feito? Ou o que deveria ser feito no Brasil?
EAA: A situação é muito grave. Aos poucos se nota que muita gente que apoiava o lulismo incondicionalmente, quase que religiosamente, começa a perceber que as manchas são muito mais agudas do que antes supunham. Há uma maioria de lideranças e consciência democrática e pluralista neste país, muitas com alguma influencia política que vem sendo despertada para essas questões e devem continuar a ser despertadas mais e mais. O movimento indígena, assim como outros movimentos étnicos, democrático-pluralistas e anti-racistas, que no Brasil enfrentam dificuldades grandes de articulação e mobilização em face das dimensões do país, da falta de apoio de mídia e das fracas alianças sociais, tem crescido e tende a crescer mais e mais, em tempos de internet, redes sociais, manifestações espontâneas e tudo o m ais. Os processos que envolvem os “muito oprimidos”, os “mais excluídos”, são quase sempre difíceis mesmo, mas acabam avançando, como agua mole em pedra dura. O que seria desejável e jogo sempre esperanças nesse sentido, é que a campanha presidencial e parlamentar do ano que vem ponha foco na questão dos direitos indígenas; ousem colocar esse tema no grande debate nacional. Se candidatos como Eduardo Campos e Marina Silva o fizerem com espírito público e democrático irão somar pontos, mostrar sensibilidade ao “clamor das ruas”, estou certo disso.
CC: Por que não conseguiu ir mais adiante enquanto esteve na presidência? Algum lamento, frustração?
EAA: Naquele contexto era realmente impossível ir mais adiante, tanto no tempo de permanência como, sobretudo, na gestão da política indigenista. Não havia chão, respaldo, o tapete estava puxado, o velho esquema da instabilidade mafiosa fora liberado para inviabilizar o cumprimento dos “Compromissos com os povos indígenas” que a campanha Lula 2002 havia acatado e publicado. O “Compromisso” era um documento bom, avançado, modéstia a parte, e a traição a ele é um fato a se lamentar. José Dirceu, Palocci e outros estavam de braços dados com ACM, Romero Jucá e outros tantos. Não surpreende que após minha exoneração o Governo tenha indicado um amigo de Romero Jucá para ocupar o cargo. Denunciada publicamente a jogada, o governo nomeou um anti-petista confesso, militante do PPS, e o manteve por longo tempo no cargo.
CC: E alguma esperança? Qual?
EAA: Acredito que há esperança sim. Tenho fé no povo brasileiro, na humanidade em geral. Quando Dilma assumiu, eu nutri esperanças, achando que pior do que estava não podia ficar; e acabou piorando. Incrível isso. Mas não há mal que dure para sempre. Os racistas e anti-indígenas estão subestimando o nosso mundo. A questão indígena hoje é tema importante nas Nações Unidas. Os povos indígenas do Brasil não estão sós neste mundo. Aliás, precisam, a meu ver, articular mais a nível continental e internacional. Da mesma forma, o conceito e a bandeira da democracia plural se ampliam no mundo e o Brasil, visto lá fora até como exemplo de país multiétnico simpático e cordial, não vai ficar imune a essa onda libertadora e humanista. De 2005 a 2007 tive a honra de cumprir mandato no Foro Permanente de Assuntos Indígenas da ONU e posso testemunhar que de início, via um entusiasmo quase unânime em relação a Lula e seu governo entre as lideranças e quadros do movimento indígena internacional. Em 2007 já se observava uma visível decepção e triste desilusão. Acho que a Presidenta Dilma e seu núcleo de poder têm diante de si a opção de cair na real, fazer profunda autocrítica, corrigir rumos enquanto é tempo, para não caírem no fosso da História.
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