Douglas Belchior, em Negro Belchior
Passados três meses do pico das manifestações que levaram milhões de brasileiros às ruas a partir das demandas pela redução das tarifas em diversas capitais e médias cidades do país, me pergunto: o que restou da indignação nacional e internacional com a violência policial dirigida aos jovens universitários em seu legítimo exercício cidadão e até a jornalistas, alguns gravemente feridos? E o que restou da reflexão pouco difundida de que a polícia, alvo de crítica pelo uso da força naquele contexto, é a mesma que promove a morte violenta e cotidiana nas periferias do país? O texto do doutor em Antropologia Social pela Universidade do Texas – Austin, Jaime Amparo Alves, escrito para aqueles dias, é saborosíssimo.
Permita-se a provocação!
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Por Jaime Amparo Alves*
“Há esperança, mas não para nós” (Kafka)
As imagens da Polícia Militar espancando os jovens da classe média em seu cívico direito de ocupar as ruas e praças têm causado indignação e horror. Nada tem sido mais perturbador do que ver nos jornais pessoas ensanguentadas, correndo sob balas, jatos de pimenta no rosto, ou sendo varridas das ruas a pauladas. Talvez o exemplo mais perturbador da truculência policial sejam as fotos da jornalista da TV Folha, Giuliana Vallone, atingida no olho por uma bala de borracha. O ultraje foi tão grande que o fotógrafo Yuri Sardenberg mobilizou artistas globais para a campanha “ Dói em Todos Nós”, um protesto da chamada sociedade civil contra a selvageria policial. De repente o país descobriu a existência de uma polícia violenta, covarde, incompatível com o estado democrático de direitos. O Brasil acordou! Acordou? Quem estava dormindo, afinal?
Acompanhei a campanha com indiferença. Não despertou em mim nem a solidariedade de profissão com a jornalista agredida nem a condição comum de sermos brasileiros “com muito orgulho e com muito amor”. Nem mesmo a frustração comum com o sistema politico-partidário do país foram suficientes para despertar uma empatia com a campanha. É que o registro mental que tenho desde quando me entendo por gente é do corpo negro brutalizado nas favelas, nas prisões, no caveirão. A campanha falhou em me sensibilizar não porque eu desconsidere o sofrimento das vítimas da polícia nas ruas do país – para além da cor da pele ou das ideologias que sustentam – mas porque me falta o registro do terror policial no corpo branco e nas áreas nobres das nossas metrópoles. O que está em questão aqui é a intensidade (e persistência) que faz da morte negra uma banalidade e da vitimização branca uma tragédia.
Por que as agressões aos jovens brancos, do asfalto, comovem milhões de brasileiros e o assassinato diário de jovens negros pelas forças policiais não vale vinte centavos? Por que se é negado o luto às mães negras nas favelas brasileiras onde o estado não apenas mata mas também destrói corpos negando a possibilidade da elaboração da dor? Não reclamo a originalidade da crítica (afro)pessimista `as noções mesmo de Direito, Lei e Justiça, mas vale a pena repeti-las no contexto presente: é porque a morte negra é absolutamente irrelevante do ponto de vista dos direitos humanos e imprescindível do ponto de vista da democracia. A agressão aos brancos é uma agressão ao estado democrático de direitos. A morte negra é precisamente o parâmetro pelo qual se define tal estado democrático de direitos. Em outras palavras, a morte negra cumpre essa função explicitada nos últimos protestos: porque necessária para a definição mesma da ordem pública, ela marca o território civil onde o protesto é permitido e onde a agressão policial é vista como aberração, desvio anti-democrático. Como pôde a polícia ter coragem de lançar gás lacrimogêneo nos jovens brancos de classe média? Jesus Cristo!
Não quero desconsiderar o mérito dos protestos juvenis por mais direitos e pela expansão da democracia participativa. Quero estar do lado certo quando a história relembrar o momento presente e o meu lado é o do poder popular. Mas esta hora em que a direita – “forte e raivosa” como diz Douglas Belchior – está nas ruas mobilizando consigo uma classe média branca ressentida com as politicas sociais dos últimos dez anos, exige uma reflexão sobre o que se entende mesmo como poder popular e movimento social. A dificuldade em articular uma linguagem que dê conta do que estamos vivendo reside precisamente na alegria de ver o país nas ruas e na frustração de ver a pauta negra – pelas ações afirmativas, contra o genocídio e o encarceramento em massa – invisibilizada. O que o silêncio em torno do assassinato de 272.422 negros nos últimos dez anos – como revela o Mapa da Violência/2012 – tem a nos dizer sobre os limites e possibilidades de agendas de lutas coletivas como a que se vê agora?Pode-se dizer que a agenda dos movimentos sociais foi sequestrada pela direita e portanto não é apenas a agenda negra que está invisibilizada. Verdade. Mas não seria o caso do sequestro atual ser também uma reiteração em larga escala do que o movimento negro enfrenta em tempos de “normalidade”?
O Brasil Acordou
É por isso que o grito “O Brasil acordou” é totalmente irrelevante para a população negra em seus encontros mortais com a polícia brasileira. Na verdade o slogan é tão irrelevante quanto a cantilena dos direitos humanos, da participação cidadã, ou da defesa da democracia. “Para quem vive na guerra a paz nunca existiu”, responderia Mano Brown com sua voz inconfundível. A máquina de guerra do Estado brasileiro mata e continuará matando os negros sem que tais práticas se convertam em ultraje nacional nem para a direita nem, nem para o centro, nem para a esquerda.
Os slogans da Polícia da Caatinga na Bahia (“Pai faz, Mãe cria e Caatinga Mata!”), de São Paulo (Deus dá a luz a Rota apaga”) e do BOPE no Rio (“Homens de preto qual é sua missão, entrar na favela e deixar corpos no chão”) são ilustrativos do lugar que ocupam corpos e geografias racializadas no discurso da ordem e da democracia. O fato de Sérgio Cabral (PMDB), Geraldo Alckmin (PSDB) e Jaques Wagner (PT) serem eleitos, reeleitos e não sofrerem nenhum processo de impeachment mesmo com milhares de mortes em suas mãos dão uma dimensão não da permissividade, mas da utilidade da morte negra para a existência branca. Se o Estado cria as condições para tais mortes, a chamada sociedade civil sanciona e lucra com elas uma vez que o assassinato de negras e negros perpetua a dominação e confere privilégio racial.
Doesse em todos nós, como quer fazer crer a campanha da ‘sociedade civil’ contra a violência policial, a vitimização branca nas mãos da polícia não seria tratada como a aberração de quem acordou agora para uma realidade vivida diuturnamente pela gente negra. É aqui que a solidariedade política encontra os seus limites: os brancos têm uma “impossibilidade cognitiva” para entender a experiência negra e portanto a especificidade da condição negra se perde nas pautas universalistas ou se invisibiliza nas agendas autoritárias.
Não que os negros e negras não estejam lutando nas praças pela redução das tarifas dos transportes públicos, por um SUS mais forte, e pela educação pública, gratuita e de qualidade. Estão!. Mas onde estavam os brancos quando a gente negra estava chorando seus mortos nas favelas brasileiras? Onde estavam os milhares de manifestantes quando do terror policial nas periferias de Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, para nomear as três maiores cidades do país? Pois bem, o privilégio branco não se dá apenas nos aspectos econômicos, mas na definição mesma da dor doível, da “vida vivível” e da “morte chorável” – em uma tradução livre dos termos de Judith Butler.
Dois exemplos adicionais para um ponto final: a) em um texto comovente Douglas Belchior narra sua frustração e revolta ao ver a bandeira da Uneafro-Brasil ser arrancada de suas mãos e queimada em uma passeata no centro de São Paulo. Belchior localiza na direita ‘forte e raivosa’ as tentativas de silenciar a agenda do movimento. Certo, mas não custa lembrar que as contínuas ações das entidades negras contra o terror policial raramente encontram eco nas esquerdas organizadas. A favor da direita pode se argumentar que ela tem os campos bem demarcados: anti-negro, anti-pobre, anti-mulher, anti-gays, anti-vida. Mas no caso da esquerda, se põe para nós negras e negros o preço a pagar “para não fragmentar a luta de classes”.
b) Enquanto ocorria uma manifestação na periferia de São Paulo, no último dia 23 de junho, policiais da Rota assassinaram três pessoas em suposto confronto. A Rota é a polícia intocável do governador tucano Geraldo Alckmin. O que os dois casos têm em comum? Elas apontam para o limbo em que se encontra a gente negra: entre uma pauta invisibilizada nas ruas e a morte invisibilizada na periferia. Ta aí porque a dor não “dói em todos nós”. Em todos nós os cambaus, cara branca!
*Jaime Amparo Alves, jornalista, ativista do movimento negro e doutor em Antropologia Social, Universidade do Texas, Austin. Atualmente é Professor Visitante da Universidad Icesi, da Colômbia, disciplina Geografias de la Violencia.
Creditos: Charge (1) Latuff