Em repudio aos retrocessos e violações aos direitos territoriais garantidos pela constituição de 1988.
ADVOGADOS SEM FRONTEIRAS, integrante da Rede ASF – presente em 16 países, organização que trabalha pelo acesso à justiça e a proteção dos direitos humanos no mundo, em defesa dos grupos mais vulneráveis, diante das inúmeras violações aos direitos dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais no Brasil, vem, por meio desta NOTA PÚBLICA, expressar seu apoio à Mobilização Nacional Indígena, convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Mobilização Nacional Quilombola, convocada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas (CONAQ), que ocorrerão nos dias 30 de setembro a 05 de outubro de 2013, em diversos locais do país, pelo advento dos 25 anos da Constituição de 1988.
Os direitos territoriais dos povos indígenas e quilombolas estão garantidos no artigo 231 e 232 da Constituição e artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), respectivamente.
No entanto, as demarcações das terras indígenas e quilombolas não foram realizadas de forma satisfatória pelo Estado Brasileiro. Ao não se demarcar as terras, os direitos fundamentais não são exercidos, havendo violação ao direito à vida e à integridade física e cultural desses povos.
As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal favoráveis à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol dos Macuxi, Wapixana, Ingariko, Patamona e Taurepang de Roraima (2009) e a Terra Indígena Caramuru Catarina Paraguasu do povo Pataxó Hã Hã Hãe do sul da Bahia (2012), confirmam a garantia constitucional do direito à terra indígena.
Ocorre que a Suprema Corte, sem que houvesse ao menos o pedido neste sentido, criou 19 condicionantes para a demarcação. Juridicamente, questiona-se se a referida decisão poderia estabelecer condicionantes para o exercícios de direitos constitucionais, assim como a eficácia da referida decisão com efeitos a pessoas não integrantes na lide.
Não obstante tais condicionantes, a Advocacia Geral da União editou a Portaria n. 303, que determina que os órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta deveriam obedecê-las, considerando que tais condicionantes fossem aplicáveis a todos os casos. A referida portaria foi suspensa pelo Advogado Geral da União, mas o fato de sua publicação já demonstra de forma clara qual a tendência do Poder Executivo brasileiro no tratamento da questão das demarcações de terras indígenas.
É possível também observar um intenso ataque vindo do Poder Legislativo, no sentido de pretender alterar a competência do tratamento da demarcação de terras indígenas. Tramitam perante o Congresso Nacional as Propostas de Emenda à Constituição (PEC n. 215/2000 e PEC n. 38/1999) que, incluem dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas, estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei.
Por força do artigo 231, da Constituição Federal e artigo 67, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, tal competência é da União. A União, que nos termos do artigo 19, da Lei número 6.001/73, e do Decreto número 1775/96, atribui a concretização das demarcações à Fundação Nacional do Índio e ao Ministro de Estado da Justiça. Em seguida, a demarcação deve ser homologada pela Presidência da República.
No que tange as terras quilombolas, o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do ADCT é regulamentado pelo Decreto n. 4.887 de 2003. Registra-se , contudo, a investida contra os direitos quilombolas, pela interposição da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3297, pelo partido político Democratas (DEM), anterior PFL.
Ou seja, trata-se da mesma Frente Parlamentar da Agropecuária, também denominada ‘bancada ruralista’, que atua em prol de interesses do agronegócio. Cumpre-nos mencionar que para a 54a Legislatura (2011-2015), a Frente Parlamentar da Agropecuária fez o registro de 221 membros, sendo 208 deputados e 13 senadores. Portanto, verifica-se que mais do que um terço do Parlamento defende os interesses do agronegócio. Por outro lado, não há representantes indígenas no parlamento, estando tais povos submetidos à representatividade de parlamentares não indígenas que compõem à Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas.
Diante deste cenário, não é necessário grande esforço para a compreensão do que pretendem os que defendem a aprovação da PEC n. 215/2000. Caso retirada do âmbito do Poder Executivo, que o faz através de órgão indigenista especializado, os interesses da sociedade hegemônica nas demarcações de terras indígenas prevalecerão sobre os dos povos indígenas e quilombolas. Esta é, sem sombra de dúvidas, a maior das recentes investidas contra os direitos dos povos indígenas e quilombolas consagrados pela Constituição.
Os ataques aos direitos territoriais indígenas, por parte do Poder Legislativo, ainda podem ser observados com a PEC n. 237/2013, tratando do arrendamento de terras indígenas, constituindo flagrante inconstitucionalidade, pois as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis (art. 231, §4o).
No âmbito dos Projetos de Lei, podemos citar o PL n. 1610/1996, sobre mineração em terras indígenas; PLC n. 227/2012, que legalizaria latifúndios e assentamentos dentro das terras indígenas; PL n. 273/2008, que trata das rodovias, ferrovias e hidrovias localizadas em terras indígenas como áreas de relevante interesse público da União e, ainda, o PL n. 349/2013, de autoria da Senadora Kátia Abreu (PSD-TO), que tem como objetivo impedir que terras ocupadas por indígenas em processo de retomada sejam demarcadas ou continuem os estudos para constituição como Terras Indígenas.
Tais propostas encontram-se na direção do retrocesso das garantias constitucionais e na contramão dos avanços em âmbito internacional dos direitos dos povos e minorias étnicas, como a Declaração nas Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), a Convenção n. 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais (ratificada pelo Brasil em 2002 e promulgada pelo Decreto n. 5.040 de 2004) e jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Assim, salienta-se que qualquer medida legislativa e administrativa que afete diretamente a vida desses povos e seus respectivos territórios, deverá observar o direito à consulta prévia e à livre determinação, ou seja, o direito de decidir suas próprias prioridades no que concerne ao processo de desenvolvimento que os afete.
Diante das iminentes ameaças e violações pelo Estado Brasileiro aos direitos territoriais dos povos indígenas e quilombolas, garantidos pela Constituição de 1988, a Advogados Sem Fronteiras vem a público repudiar os Projetos de Lei e Propostas de Emendas Constitucionais citados acima, manifestando seu total apoio à Mobilização Nacional Indígena e Quilombola.
Isso porque, ao incluir a proteção dos povos indígenas e quilombolas no texto constitucional, justamente porque são minorias, o constituinte originário fez uma opção política por essa proteção. Ao fazê-lo, reservou, conscientemente, à União o papel de demarcação. Diferentemente, ao Congresso, que, por definição, atua de acordo com a vontade de uma maioria eventual, o constituinte reservou um papel excepcionalíssimo, de remoção temporária dos povos de suas terras (art. 231, §5o). Assim, uma alteração dessas competências somente pode ser interpretada como uma deturpação, uma tentativa equivocada de ignorar aquilo que o constituinte originário elegeu como sendo necessário ser protegido, o que seria um atentado à democracia e aos valores fundamentais.
A ASF se manifesta, ainda, no sentido de que a regulamentação e a observância dos procedimentos apropriados da consulta prévia, em conformidade com a Convenção n. 169 da OIT, deverá preceder toda e qualquer proposta ou ato, seja no âmbito legislativo ou executivo, que sejam suscetíveis a afetar os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
Caxias do Sul (RS), 30 de setembro de 2013.
Advogados Sem Fronteiras – ASF-Brasil