Dourados, MS – Segundo tempo: a Aldeia Jaguapiru, a Anistia, o governo e um convite à cizânia

Tonico Benites na Aty Guasu em Jaguapiru, em 8 de agosto de 2013. Foto: Tania Pacheco
Tonico Benites explica a proposta do gonero à Aty Guasu, em 8 de agosto de 2013. À esquerda dele, o cacique Getúlio; à direita,  Marco Antônio Delfino de Almeida, do MPF. Foto: Tania Pacheco

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

No que chamei de ‘primeiro tempo’, falei do I Encontro Nacional Psicologia, Povos Indígenas e Direitos Humanos, aberto no mesmo dia em que, na Casa de Reza da Aldeia Jaguapiru, os Guarani, Kaiowá, Terena, Kadiwéu, Guarani-Inhandeva e Kiniknau recebiam o Secretário Geral da Anistia Internacional e seus diretores no Brasil e no Reino Unido. Essa visita, que começou pela manhã e terminou no final da tarde de 7 de agosto, mereceu um post rápido que, embora produzido em condições adversas, permitiu divulgar não só o encontro do cacique Getúlio e demais lideranças da Aty Guasu com Salil Shetty, como as falas de Valdelice Verón, do cacique Elpídio e do próprio Shetty. Para quem quiser (re)ver, o material está em MS – Lideranças Guarani Kaiowá, Terena e de outras etnias recebem Salil Shetty e outros membros da Anistia Internacional.

Assim como os organizadores do Encontro, quando aceitei o convite, meses atrás, eu não tinha como saber que o Secretário Geral da Anistia viria ao País nessa época, e que Átila Roque, diretor no Brasil, sugeriria a ele a visita aos Guarani-Kaiowá e outros parentes. Também não sabíamos (nem a Anistia) que o governo marcaria uma reunião em Brasília no dia 7, para apresentar a prometida proposta aos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, ‘roubando’ assim alguns participantes das primeiras mesas do Encontro. Mas o resultado de tudo isso foi eu ter o privilégio de viver, em Dourados, alguns dos mais ricos momentos que me aconteceram ultimamente.

Uma coisa é acompanhar e divulgar pela internet as decisões da Aty Guasu; vibrar com algumas informações, sofrer com outras. Muito diferente, entretanto, é pegar a estrada em Campo Grande, ainda de madrugada, na ansiedade de chegar. Dos dois lados dos 225 quilômetros até Dourados, à distância, pequenos aglomerados de árvores em meio à planura dos campos de terra nua, já semeados ou prontos para o serem pela monocultura dos monocultivos.

Como em relação a Marawãitsédé, às Serras do sul da Bahia e a tantos outros territórios desmatados e contaminados pelos agrotóxicos, a indignação só aumentava a urgência da chegada. Para Neyla Ferreira Mendes, Defensora Pública e amiga, e para mim, sequer havia a hipótese de guardar as malas no hotel. Deixamos as pessoas que viajavam conosco na Universidade, informamos que havíamos chegado e partimos para a Aldeia Jaguapiru. Sabíamos, através de Flávio, do CIMI, com quem Neyla mantinha contato por celular quando o sinal funcionava, que havíamos perdido, já, a visita a Dona Damiana, que conversou com Shetty frente às covas onde seus parentes estão enterrados. Assim, optamos por ir direto para a Aldeia de Jaguapiru e lá aguardar a turma da Anistia e do CIMI, que acompanhava os visitantes.

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A Casa de Reza da Aldeia Jaguapiru, onde a Aty Guasu se reúne. Foto: Tania Pacheco

A primeira visão da Casa de Reza será sempre algo inesquecível para mim. Em meio à estrada de terra com casas humildes, pouca vegetação e algumas árvores, aqui e acolá, ela de repente surgiu, imensa, perfeita no seu desenho, acolhedora de uma forma que eu depois descobriria poder ser ainda mais sentida no seu interior. Antes de entrar no terreno limpo ao seu redor, uma cerca delimitava o espaço de uma horta recém plantada, servindo ao mesmo tempo para segurar faixas de boas vindas à Anistia e em defesa dos direitos indígenas.

Íamos nos aproximando, quando fomos gentilmente paradas. Havia um ritual a ser cumprido, e ele aconteceu, como se repetiria depois com muito mais pessoas, quando os visitantes ilustres chegassem. Liderados pelo cacique Getúlio, cânticos foram entoados, ao som de chocalhos, enquanto o pequeno grupo de guerreiros se movia, se aproximava e se afastava, numa espécie de dança, a poucos metros de nós. À frente deles, como que marcando um limite, uma armação com um espécie de cocar de penas, aberto. Minha impressão era de que não se tratava exatamente de nos receber como visitantes, mas de ‘sentir’ quem éramos, antes de termos nossa entrada permitida na Casa, coisa que felizmente aconteceu em seguida.

A rápida espera pelos visitantes permitiu que eu gravasse uma pequena entrevista com Alda, que à noite se deslocaria para a Universidade, para abençoar a abertura do Encontro. Uma das lideranças das mulheres indígenas e casada com o cacique Getúlio, ela me falou da falta de segurança na Aldeia, que chegava ao temor de deixar filhos em casa a cada saída necessária. As ameaças e violências não se restringem aos assassinatos, como aconteceria na semana seguinte (na manhã de domingo, dia 11, achariam o corpo de um rapaz quase degolado na margem da estrada; na quinta, dia 15, seria a vez de uma moça que saíra para as compras na segunda, 12, encontrada morta e seminua no meio de um campo de soja). Nesse mesmo dia 7 da nossa visita a Jaguapiru, soubemos de uma menina que havia sido estuprada e estava grávida.

Embora situadas a apenas seis quilômetros do centro de Dourados, a insegurança é total nas aldeias, principalmente depois que anoitece. De um lado, ‘criaturas’ que se aproximam com intenções variadas, das ameaças à consumação de diversas formas de violência, a começar pelas sexuais. De outro, indígenas que se deixam levar pelo desespero, buscando no álcool, no crack e na prostituição uma falsa saída para a situação de “confinamento”, como classificaria Anastácio Peralta, com quem eu conversaria pouco tempo depois.  A Aldeia Jaguapiru (de maioria Terena), assim como sua vizinha Bororó (de maioria Guarani e Kaiowá), são exemplos da mais total insustentabilidade e desrespeito humano. Cerca de 14 mil indígenas sobrevivendo em 3,5 mil hectares, que não só impedem que suas culturas e tradições sejam mantidas, como estabelecem um cenário para a desesperança; para os ‘suicidados’ pela nossa ‘sociedade branca’.

Aty Guasu recebe Salil Shetty no interior da Casa de Reza. Foto: Tania Pacheco
Cacique Getúlio e demais lideranças recebem Salil Shetty no interior da Casa de Reza. Foto: Tania Pacheco

Se essa é a saída para alguns, não significa, entretanto, que a dignidade, o orgulho, a força e a revolta estejam igualmente presentes. Na recepção a Salil Shetty e seus companheiros havia, ao mesmo tempo, acolhimento e majestade. Com certeza as figuras mais importantes ali não eram os membros da Anistia, mas aqueles que os recebiam, no chão de terra, sob o alto teto trançado, com as poucas cadeiras anarquicamente espalhadas, que fizeram com que a maioria de nós permanecesse de pé por horas e horas, começando pelo próprio Shetty, que dignamente recusava as ofertas para sentar, mantendo-se de pé como as lideranças indígenas.

Os depoimentos se sucediam, uns mais, outros menos fluentes, mas com algo em comum, sempre: a indignação. A discreta aparelhagem de tradução simultânea levava à equipe estrangeira da Anistia cada palavra. Das falas mais simples de uns à revolta mobilizadora de Valdelice Verón e do cacique Elpídio, que gravei e postei na matéria citada acima, assim como a resposta de Shetty. Se ele se emocionaria e indignaria com tudo o que ouvia e testemunhava ali, em mim existiam também outras emoções bastante contraditórias. De um lado, o orgulho pela dignidade com que se comportavam nossos parentes indígenas; de outro, uma revolta que beirava o ódio, ao pensar como eles vêm sendo tratados e desrespeitados, inclusive pelo próprio Estado, nas suas diversas instâncias. Aliás, a Presidente da República se dera igualmente ao luxo de não encontrar tempo para receber a Anistia, embora a audiência tivesse sido pedida três meses antes. Talvez tenha tido um compromisso com Kátia Abreu ou alguém da Famasul.

No dia seguinte, 8 de agosto, a Aty Guasu se reuniria para começar a examinar a proposta resultante da reunião de Brasília, envolvendo autoridades federais e estaduais, ruralistas e indígenas. Aparentemente, os chamados ‘produtores ruais’ estariam dispostos a aceitar ‘pagamento’ em TDAs (Títulos da Dívida Agrária), e isso viabilizaria a desintrusão imediata de alguns territórios. O governo federal enviara um porta-voz, que prestou alguns esclarecimentos, mas seria Tonico Benites quem de fato tomaria a frente dos trabalhos, em termos de explicações sobre as propostas e (espero!) seus perigos.

Ao estabelecer três Terras Indígenas (TI) como prioridades emergenciais – Buriti (em Sidrolândia e onde foi assassinado o Terena Oziel Gabriel), Sombrerito (em Sete Quedas, onde foi assassinado Dorival Benites, liderança Guarani-Kaiowá) e Ñande  Ru Marangatu (em Antônio João, também terra Guarani-Kaiowá) -, dados os atos de violência mais acirrada que nelas vêm ocorrendo, o governo deixou para as diversas etnias a escolha das TIs a serem em seguida demarcadas e homologadas.

Acontece que, resolvidas essas três, restam ‘apenas’ 50 outras TIs em litígio no estado. Segundo Anastáscio Peralta, representante indígena na Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), dessas 53 áreas, 37 são Guarani-Kaiowá, totalizando 18 municípios e 60 mil índios (ver lista das principais TIs Guarani que estão em processos diferenciados de homologação no final deste texto).

Nesse cenário, a proposta do governo parece menos uma prática democrática que uma lavagem de mãos com um convite à cizânia, na medida em que ‘gentilmente’ atribui aos povos indígenas a decisão quanto aos territórios a serem priorizados, principalmente considerando-se que há grandes diferenças e, até, rivalidades históricas, culturais e ‘espirituais’ entre eles.

Um dia depois, 9 de agosto, exatamente o Dia Internacional dos Povos Indígenas, o Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul seria procurado pelos familiares do cacique Getúlio, ameaçado de morte por jagunços dos chamados ‘produtores rurais’.

Para ver mais fotos, clique AQUI.

Depoimento de Anastácio Peralta:

Depoimento de Alda:

Listagem das Terras Indígenas Guarani em diferentes estágios de litígios:

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