O eterno domingo do índio e do fazendeiro

Eloisa Deveze – Um quê de Transgressão

É mais fácil achar agulha em palheiro que a turma dos fazendeiros deixar de tirar leite de pedra para impedir que povos indígenas tomem posse de terras que são suas legalmente.  Especializada em entulhar o poder judiciário com todo tipo de ação e recurso para mantê-los do lado de fora das cercas, ela ainda encontra um tempinho para convencer, ou, pelo menos, tentar, a opinião pública de que os índios são um bando de usurpadores que quer pendurar suas redes em propriedades alheias. Mas, ao contrário do que se possa pensar, eles lutam, basicamente, para se apossar da parte que lhes cabe por direito deste enorme latifúndio.

O  clima começa a esquentar quando o Ministério da Justiça, com base em documentos entregues pela Funai e  proprietário da área, declara que uma terra é indígena e pertence ao povo de uma dada etnia para  indignação do fazendeiro, que, por sua vez, entra com uma ação de reintegração de posse. Era de supor que uma determinação do Ministério, tomada no rastro de um longo processo de estudos, investigações e análises, deveria ser acatada e ponto. Ocorre o contrário. O fazendeiro indignado, como qualquer cidadão, pode contestar decisões legais porque, como esclarece o professor de Direito Washington Barbosa, a justiça trabalha com o direito e não só com a lei – uma entre outras fontes de direito. Ao ser acionada, entre em campo o juiz, que, após analisar os direitos do fazendeiro e dos índios, que, a propósito, tem direitos garantidos pela Constituição, defere a favor de um ou outros. E pronto: está deflagrado o conflito de terra, que dura anos nos tribunais e fora deles também. Tudo porque, ao meu ver, interesses econômicos e políticos se sobrepõem aos direitos indígenas.

Isso quando o senhor da terra não cai em tentação e alega que não põe fim às disputas porque o governo quer  lhe pagar  cerca da metade do valor de sua área pela desapropriação.

Tal argumento, aliás, chega a ser comovente.  Qualquer um que cortou um dobrado  para adquirir um pedacinho de chão é capaz de se colocar no lugar do fazendeiro que se vê obrigado, por determinação legal, abrir mão de seu território, e, ainda, amargar um  prejuízo danado por “vendê-lo” por uma quantia bem inferior.

Mas devagar com o andor. Quem, a princípio, toma as dores do queixoso se arrisca a comprar gato por lebre. É que, na verdade, ninguém sabe ao certo o preço real das terras e por uma simples razão: não há levantamento isento ou uma auditoria independente que defina o valor  de  cada propriedade. Nem, tampouco, sobre como ela foi obtida.  Ou seja, através de vias legítimas de aquisição ou da ocupação do solo, em especial,  em Mato Grosso, Goiás e Amazônia, que são regiões coalhadas de posseiros.

Sem falar em latifundiário que parece querer tirar proveito do ambiente explosivo, além da perfomance do governo, para fazer excelentes negócios com a desapropriação e/ou jogar mais areia nos processos de declaração, demarcação e homologação de terras indígenas.

Aparentemente, é o caso do ex-deputado Ricardo Bacha. Em entrevista concedida a jornalista Fernanda Kintschner, do jornal eletrônico Midiamax News, ele expôs um amplo leque de exigências para vender os 15 mil hectares  da Fazenda Buriti, situada entre Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti, em MS, que, além de serem pleiteados, pertencem aos índios da etnia terena, segundo o Ministério da Justiça, mas que ainda não foi homologada.

Buriti, aliás, ganhou manchetes no noticiário por ter, em maio,  sido palco de uma ação de reintegração de posse que provocou a morte do índio Oziel Gabriel, baleado pela Polícia Federal. Outro terena, em outra fazenda, levou tiro pelas costas alguns dias depois, mas, felizmente, sobreviveu.

Bacha, pra começar, disse que só vende a área por 225 milhões de Reais e em dinheiro – que, segundo ele, está avaliada nesse valor, e não em cerca de 115 milhões Reais, preço atribuído pelos especuladores.  Como se desconhece o preço real das terras, não dá pra saber quanto, de fato, elas valem no mercado.

Não bastasse, o ex-deputado e pecuarista também quer que a União, além da Buriti,  compre todas as fazendas, envolvidas em conflito na região, que estejam à venda. De acordo com ele, das 31 fazendas, apenas quatro  não estão com ocupações indígenas. A explicação para tamanha exigência é bem simples:  a compra da fazenda dele não vai ampliar, de fato, a Aldeia Buriti,  informou o advogado dos proprietários, Newley Amarilla, ao Midiamax, pois,  fisicamente, entre os dois mil hectares já demarcados e ocupados pelos terenas, e os 15 mil a serem resolvidos, há outras terras também em conflito” .

As condições de Bacha não terminam ai.  Ele que, aparentemente, disputa o posto de Todo Poderoso com o Timão, também só vende os 15 mil hectares da Buriti se puder adquirir terras em localização e na qualidade da atual. E, de quebra, aproveitou à entrevista para avisar: arrendamento, nem pensar!

Pode-se dizer, aliás, que tal repertório de exigências se afina, perfeitamente, com quem integra o time dos eleitos dos deuses, que, após entrar para a cena da política institucional, recebe tantas bençãos que acabam erguendo verdadeiros impérios. Para se ter uma ideia, o jornalista Alceu Castilho descobriu que entre 1996, dois anos antes de disputar o cargo de governador de MS pelo PSDB  e 2006, quando foi candidato  à Assembleia Legislativa pelo PPS, a quantidade de terras de Bacha saltou de 1.252 para 6.214 hectares, distribuídos em nada menos que 13 fazendas.  Estes dados, afirma Castilho, constam das declarações de bens entregues à Justiça Eleitoral, e foram, entre outros, revelados por Alceu em posts no blog Outro Brasil e também no seu livro Partido da Terra –  como os políticos conquistam o território brasileiro (Editora Contexto, 2012) – uma obra de tirar o chapéu.

Se o fazendeiro ampliou o seu território graças a um empurrãozinho dos deuses, ao seu tino comercial, e, portanto, mérito próprio, ou qualquer outro motivo é uma questão que cabe às autoridades competentes investigar, avaliar e dar o veredito.

O que eu sei é que os 293 povos indígenas tem o direito, garantido pela Constituição, de  tomar posse de suas terras e levar a vida sem ter de enfrentar jagunço e se defender de madeireiros e outros que invadem seus territórios para desmatar floresta, explorar toda sorte de recursos naturais etc. E, bem pior ainda, morrer ou ser morto porque as autoridades não encontram soluções eficazes para reduzir conflitos de terras.  Que o diga o terena Oziel, que, aos 36 anos,  levou bala e acabou partindo dessa para melhor por ter se atrevido a brigar com cachorro grande pelo seu povo.

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