CEBs e Pastorais Sociais, duas paixões de padre Roberto, por Frei Gilvander Luís Moreira

Por Frei Gilvander Luís Moreira*, para Combate Racismo Ambiental

Divinópolis, em Minas Gerais, se tornou cidade do divino, da luz e da força divinas, também porque é terra de Adélia Prado e do padre Roberto. Este enquanto viveu, no meio do povo, a partir dos pobres, semeou amor e paixão pelas Comunidades Eclesiais de Base e pelas Pastorais Sociais. Unindo-nos no mutirão que visa recordar os ensinamentos e a práxis de padre Roberto, peço licença para falar um pouco de duas grandes paixões do padre Roberto: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais Sociais.

Padre Roberto amava animar a caminhada do povo interpretando a Bíblia de forma libertadora. As CEBs, paixão de padre Roberto, são também continuadoras das primeiras comunidades cristãs narradas no livro de Atos dos Apóstolos.

A partir do livro de Atos dos Apóstolos, podemos dizer que as CEBs, tão incentivadas por padre Roberto, têm como pais e mães o grupo dos Helenistas. Estes eram judeus cristãos de língua e cultura grega, residentes em Jerusalém (provavelmente originários da diáspora), grupo profético, crítico em relação à Lei e ao Templo; são também os perseguidos e dispersados no dia da grande perseguição contra a igreja de Jerusalém, depois do martírio de Estevão (At 8,2), um dos sete diáconos. Os Helenistas formam um grupo missionário cheio do Espírito Santo, que “leva” – melhor dizendo, percebe o reino já acontecendo – o Evangelho aos samaritanos e aos gentios, construindo modelos diferente de ser Igreja. Depois da morte de Estêvão, um dos primeiros mártires entre os cristãos, os Helenistas se dispersaram, mas os apóstolos ficam (At 8,1). Nesta dispersão eles cumprem a ordem de Jesus em 1,8 (o que os apóstolos não fizeram): testemunhar o evangelho por toda parte até os confins do mundo. Eles anunciam a palavra por toda à parte: Filipe, aos samaritanos e ao eunuco etíope (At 8,5-40); outros do mesmo grupo, aos gregos (At 11,19-21).

No livro de Atos dos Apóstolos, uma grande seção é dedicada aos Helenistas – At 6,1ss até At 15,35 -, com os relatos intercalados dos atos de Paulo (At 9,1-31) e os de Pedro (At 9,32-11,18), tem sabor de novidade original. Os atos dos Helenistas compreendem inclusive o Concílio Ecumênico de Jerusalém, pois este acontece em função dos clamores da igreja de Antioquia, uma igreja da periferia, do meio dos injustiçados, fundada pelos Helenistas.

A igreja de Antioquia é filha, em parte, da perseguição desencadeada com o martírio de Estêvão (At 8,1b). A perseguição gerou dispersão. Os primeiros cristãos Helenistas tiveram que fugir para não serem eliminados também. Assim chegaram à Samaria, a Antioquia e até aos confins da terra, Roma.

É importante observar que existe uma unidade em Atos dos Apóstolos no relato da missão de Jerusalém a Antioquia (At 6,1-15,35). Nestes nove capítulos temos uma unidade com identidade própria, dedicada à escolha, missão e legitimação dos Helenistas. Não se trata de uma unidade puramente intermediária ou de transição. A coerência literária e teológica de At 6,1-15,35 começa com uma assembléia geral em Jerusalém, onde o grupo dos sete Helenistas é constituído (At 6,1-7), e termina com outra assembléia geral, o “Concílio Ecumênico de Jerusalém”, onde é confirmada a posição teológica da Igreja de Antioquia (At 15,1-35).

Usamos a palavra Helenistas com a letra maiúscula para referir-nos ao grupo especifico iniciado com os sete Helenistas do qual se fala em At 6,1-7. Lucas apresenta também este grupo como o dos discípulos mais fiéis ao Jesus histórico. A palavra helenistas com letra minúscula designa unicamente uma característica cultural: língua (e cultura?) grega.

O clamor das viúvas helenistas (At 6,1) chegou aos corações de membros da comunidade cristã de Jerusalém e suscitou uma re-organização com a implementação de novos ministérios, dando cidadania aos Helenistas, antes marginalizados pelo grupo dos apóstolos. O Espírito de Deus soprou quando o poder foi partilhado e democratizado. A chave que destrancou as portas para a missão entre os gentios foi a criação de novos ministérios, os Sete Helenistas.

Aqueles que haviam sido dispersos desde a tribulação que sobreviera por causa de Estêvão, espalharam-se até … Antioquia” (At 11,19). Este versículo faz a conexão com 8,1.4: a perseguição que gera a dispersão dos Helenistas. O cristianismo foi levado a Antioquia pelos Helenistas expulsos de Jerusalém. Assim o Movimento de Jesus se enraíza em lugares antes excluídos. Aqui aparece uma novidade: em Antioquia os missionários pregavam aos gregos com muitas conversões. A notícia de que pregaram somente para os judeus (At 11,19) é desmentida por At 11,20.

Quem anuncia o evangelho em Antioquia? Alguns cipriotas e cirineus, cativados certamente pelos Helenistas. Chegando a notícia à Igreja de Jerusalém, enviaram Barnabé para confirmar a fé da comunidade. Em seguida, Barnabé vai a Tarso buscar Saulo. Assim uma igreja iniciada por Helenistas vai pouco-a-pouco incomodando a igreja de Jerusalém e muitos membros desta vão passando por uma processo de conversão, Pedro, por exemplo.

O êxito em Antioquia foi grande, com o apoio de Barnabé e Saulo. Foi lá que, “pela primeira vez, os discípulos receberam o nome de cristãos” (At 11,26). Os primeiros seguidores de Cristo eram tão parecidos com Cristo que o povo começou a exclamar espontaneamente: “É a cara dele!” São semelhantes a Cristo, são “outros Cristos”. Por isso são Cristãos. Esse “pela primeira vez… chamado de cristãos” revela um salto de qualidade e uma perspectiva muito nova na igreja de Antioquia, algo inexistente até então.

Através do Rosto da Igreja de Antioquia (At 13,1-3; 14,26-28) podemos vislumbrar a fisionomia das Igrejas lideradas pelos Helenistas.

Rastreando as entrelinhas de At 13-14 percebemos os seguintes traços no rosto da igreja de Antioquia, que são características das igrejas dos Helenistas:

a)      Fundada por Helenistas, seguidores do protomártir Estêvão.

b)      Dirigida por cinco profetas e mestres (Barnabé, Simeão, chamado o Negro, Lúcio, da cidade de Cirene, Manaém, companheiro de infância do governador Herodes, e Saulo – 13,1). Em Antioquia estava uma igreja de profetas e mestres; não se fala da existência de “presbíteros” em Antioquia (como na Igreja de Jerusalém – At 15,2).

c)      Uma igreja orante, não-preconceituosa e comunitária, onde os conflitos eram discutidos e de forma democrática se deliberava sobre as atitudes a serem tomadas.

d)     Essencialmente missionária e itinerante; Incrível como seus missionários viajavam! Se formos enumerar os lugares por onde os missionários Helenistas estiveram evangelizando dá uma grande lista. Por exemplo, Antioquia, Chipre, Salamina, Pafos, Lida, Icônio, Listra, Derbe, etc. Lucas faz questão de mostrar os/as protagonistas das primeiras comunidades cristãs sempre em movimento, indo para onde o Espírito sopra e agindo conforme o Espírito inspira agir.

e)      Corajosa que não se deixava intimidar pelas perseguições.

f)       Direção multicultural e diversificada. Temos a presença de negros (Simeão, por exemplo, possui um nome aramaico, com o apelido latino de Níger que o identifica como negro); cipriotas (Barnabé é um levita originário de Chipre (At 4,36); Lúcio, nome latino, é procedente do norte da África (Cirenaica); gente que conviveu com Herodes durante a infância (Manaém, por exemplo – cf. At 13,1); e Saulo, um fariseu convertido de Tarso.

g)      Libertadora com opção pelos marginalizados e excluídos. Por isso Estevão, Paulo e Barnabé são expulsos pela elite… (cf. At 13,50).

h)      Rompe definitivamente com a Sinagoga (e o Templo, antes de 70 d.C.) e vai aos gentios com liberdade total.

i)        Liderança e Protagonismo das mulheres. Maria, Lídia, Priscila, Dâmaris, quatro virgens profetisas, filhas de Filipe e tantas anônimas e muitas silenciadas. A missão dos Sete Helenistas abre mais espaço para a liderança e o protagonismo das mulheres. Claro que a instituição dos presbíteros e da primazia dos Apóstolos tendia a marginalizar as mulheres, concentrando a liderança das comunidades nas mãos de homens. As mulheres puderam continuar tendo importância e voz ativa somente nas comunidades cristãs onde continuou o profetismo.

j)        Projeto organizado e vivido a partir da “casa”. O espaço da casa era o espaço da comunidade cristã distinto do espaço do Templo. Quem presidia era o chefe local, cabeça da comunidade eclesial, que se reunia em sua casa. Os Atos começam em uma casa (At 1,13; 2,1), de casa em casa vai se irradiando e terminam com o apóstolo Paulo em uma casa alugada testemunhando o reino de Deus (At 28,31). Atos dos Apóstolos vai de uma casa em Jerusalém a uma casa em Roma.

     Dá para dizer que padre Roberto era um continuador dos Helenistas no meio do povo, a partir dos pobres. Filhas dos Helenistas e das Helenistas, as CEBs, paixão do padre Roberto, vão resgatando o novo escondido nas origens, rompendo barreiras, insistindo em re-inventar o jeito de ser Igreja, sem medo. Assim as CEBs vão celebrando as lutas, toda vida do povo. As mulheres não arredam o pé da luta, insistem em lutar por cidadania dentro da Igreja e vão presidindo celebrações, liderando a partilha da Palavra na hora da homília (palavra grega que significa diálogo, conversa), abençoando, batizando, presidindo casamentos e criando novos ministérios que respondem às necessidades novas do povo de Deus. Honrando nossos pais e mães Helenistas, as CEBs continuam gritando: “Desistir da luta, jamais!” “Nós somos povo de Deus, igreja viva!”

Quatro pontos, vivenciados pelas CEBs e pelas Pastorais Sociais são imprescindíveis para um agir ético de forma a contribuir para o processo de transfiguração das igrejas e da sociedade. Pensar e agir

a) a partir do empobrecido – Karl Marx dizia que “o lugar social determina o lugar epistemológico”, ou seja, nossos olhos, em última instância, não estão no nosso rosto, mas nos nossos pés. Pensar e agir a partir do empobrecido – pobre, mulher, negro, indígena, criança, idoso, deficiente físico e/ou mental, governado, divorciada, mãe Terra, irmã água, biodiversidade, outra religião/igreja etc – do enfraquecido, do pequeno –  é encarnar a regra de ouro.

b) de forma coletiva e participativa – Ninguém é dono da verdade, que deve ser uma busca conjunta. Envolver a todos na participação é vital. Discernir em mutirão.

c) a partir de toda a biodiversidade – Superar assim o antropocentrismo. Agir eticamente exige nutrir encantamento, veneração e respeito por todos os seres vivos. A luz e a força divina permeiam e perpassam tudo. Somos um elo vivo da grande rede da vida. Tudo no universo tem a ver com tudo em todos os pontos. Há uma inter-retro-dependência.

d) a partir de um modelo econômico justo e sustentável ecologicamente. Isso implica elevar a Economia Popular Solidária ao status de Política de Estado e coluna mestra da sociedade. Ser vassalo da idolatria do mercado e do capital é algo imoral e só aprofunda a crise das instituições.

As Pastorais Sociais e as CEBs estão mostrando como é possível transfigurar a sociedade e as igrejas ao fazer Política de baixo para cima e de dentro para fora. Agem eticamente, ao defender a realização de reforma agrária, reforma urbana, reforma educacional, ao priorizar a agricultura familiar casada com a agroecologia, ao exercer o poder de pressão para que seja construído o Estado que queremos e precisamos.

As CEBs e as Pastorais Sociais consolam os aflitos e afligem os consolados. Misturam cotidianamente fé e política, sagrado e profano, pessoal e social, céu e terra. Sem dualismos, buscam cultivar a unidade que há de reinar na imensa vastidão dos infinitos pontos que entrelaçam a vida.

As CEBs e as Pastorais Sociais constituem-se ambientes de relações propícias, em que os negros, historicamente escravizados e oprimidos, resgatam sua consciência de herdeiros da liberdade, reforçam sua autoestima e dignidade, cultivam suas raízes culturais e podem se sentir povo amado por Deus. Da mesma forma acontece com os indígenas, com as mulheres, os sem terra, deficientes, favelados, amasiados, divorciados, recasados etc. Nas CEBs e nas Pastorais Sociais todos os injustiçados são considerados “convidados de honra” à mesa da partilha, a eucaristia.

Como Pastorais Sociais temos: Pastoral Operária, Pastoral do Povo de Rua, Conselho Pastoral dos Pescadores, Pastoral dos Nômades, Pastoral da Mulher Marginalizada, Pastoral do Menor, Pastoral da Saúde, Serviço Pastoral dos Migrantes, Pastoral Afro-brasileira, Pastoral Carcerária, Comissão Pastoral da Terra, Pastoral da Sobriedade, Pastoral da Pessoa Idosa e Setor da Pastoral da Mobilidade Humana.

As Pastorais Sociais têm como objetivo “contribuir, à luz da Palavra de Deus e das Diretrizes Gerais da CNBB, para a transformação dos corações e das estruturas da sociedade em que vivemos, em vista da construção de uma nova sociedade, o Reino de Deus”.

Inspirados/as também por padre Roberto, devemos estimulava as pastorais sociais da Fé e Política, da Saúde, da Educação, dos Menores, dos Encarcerados, dos Moradores de Rua, dos Idosos, da Mulher Marginalizada, dos Negros, da Moradia, da Juventude (consciente e atuante), enfim, urge estimular os cristãos a que encampem a luta pela justiça, cada um no campo onde melhor possa se sentir útil. Pois “…se alguém diz que tem fé, mas não tem obras, que adianta isso?Por acaso a fé poderá salvá-lo? Por exemplo: um irmão ou uma irmã não tem o que vestir e lhe falta o pão de cada dia. Então alguém de vocês diz para eles: “Vão em paz, se aqueçam e comam bastante”; no entanto não lhes dá o necessário para  o corpo. De que adianta isso? Assim também é a fé: sem obras é completamente morta.” (Tiago 2,14-17) 

O profeta Amós, apaixonado em defesa da justiça, inspirado por Deus, advertia os poderosos de seu tempo: “Eu detesto e desprezo as festas de vocês; tenho horror dessas reuniões. Ainda que vocês me ofereçam sacrifícios, suas ofertas não me agradarão, nem olharei para suas  oferendas gordas. Longe de mim o barulho de seus cânticos, nem quero ouvir a música de suas liras. Eu quero, isto sim, é ver brotar o direito com a água e correr a justiça como o riacho que não seca.” (Amós 5, 21-24)

Inspirado pelos profetas e profetisas, pelos Helenistas de Atos dos Apóstolos, com alegria, recordamos um pouco de duas paixões do padre Roberto: as CEBs e as Pastorais Sociais.

Padre Roberto percebia que nas CEBs e nas Pastorais Sociais, as pessoas cristãs podem, efetivamente, ser luz no mundo, sal na comida e fermento na massa, como nos pede o Evangelho. Mas atenção! A luz incomoda as trevas, o sal incomoda a comida, assim como o fermento incomoda a massa.

Enfim, obrigado padre Roberto por ter cultivado no nosso meio paixão pelas CEBs e pelas Pastorais Sociais. Perdemos apenas sua presença física. Você padre Roberto, agora, partilha vida em plenitude. Vive eternamente e ternamente no infinito mistério de amor, que é Deus, e vive em nós também. Seguiremos, com a graça de Deus, seus ensinamentos e seus exemplos. Padre Roberto! Presente em nós!

Belo Horizonte, MG, 21de fevereiro de 2013.

*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail:[email protected] – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis – facebook: Gilvander Moreira

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